segunda-feira, 29 de setembro de 2008

Mágico instante de um descanso


111.


As mãos carregam as marcas de sangue e morte. Frescas e mornas do calor desse sumo que ainda lhe pinta a calejada pele. A idade de Sabiano é desconhecida por todos os que o acompanham. Dir-se-ia possuir tantos demónios a habitar nas entranhas do seu carácter, tantos infernos a temperar-lhe os gestos e as barbaridades, que por cá já deve andar faz muito tempo. Depois desenha os seus actos de malvada e insana crueldade com a mesma naturalidade com que a fresca chuva do Outono cai nas paisagens abertas do leito do Mondego, junto a Montemor. Para si vai dizendo, quando as suas vozes lhe permitem alguma comunicação com o pouco de Raimundo que ainda lhe vai permanecendo, que o cansaço é tanto, as desesperadas e incontroláveis ordens são tão violentas, que só desejaria conseguir acabar com a sua vil existência. Sempre que o tentou, essas intenções invariavelmente acabaram em tragédia ou em desvairada loucura. Quem sofre com essas vontades de Sabiano são as almas de gente anónima que estão perto de si quando se permite a essas suas desgraçadas tentativas. O colega Mohammed, última vítima do Zanata, acompanhava-o na sua demanda desde que as recordações lhe alimentam as memórias. Amigos, não seriam, pois tal é palavra que para Raimundo nenhum significado possui. Contudo, era de todos aqueles homens que o acompanhavam, o mais fiel e antigo. Caminharam juntos por mais de dez anos nestes estranhos percursos de homens de combate, ora a soldo de Califas, ora a soldo de reis, rainhas, generais estrategas, ora a soldo das desviantes e sádicas alucinações de Raimundo.
Olhava para a cabeça do soldado que arrancara do seu corpo fazia alguns instantes. A imagem dela tornou-se difusa. Os outros guerreiros continuavam de pé, calados, observando todas as pequenas particularidades dos gestos do chefe sem se atreverem a questionar estas acções punitivas totalmente indecifráveis. O seu número era agora bem mais reduzido desde que entraram pelo sul da península, em direcção a Noroeste, faz já alguns anos. Nem os conseguem determinar, mas também pouco importa. Sabem, isso sim, que foram já dez os que acabaram por desaparecer nestas rondas destinadas por Sabiano Raimundo. Dez acidentes de percurso que acabaram por reduzir este número de combatentes mercenários ao longo destes anos, e que os vem fragilizando perante a franca possibilidade de ataques por parte das forças de el-rei, ou outras que lhes resolvam dar combate.
Raimundo continua a observar, desfocada, a cabeça e rosto de Mohammed. Levanta a mão que a agarra pelos cabelos bem alto. Começa com um estranho bailado em que a vai rodando a grande velocidade. Ao rodar desta forma a cabeça do combatente, sentiu a sua própria cabeça a ser arrancada do corpo, mas de forma muito lenta e indolor. Era como se esta levitasse, suavemente, como um pequeno colibri a pairar sereno no ar. Após este primeiro voo inicial, a cabeça de Raimundo começou a rodar violentamente, acompanhando a do árabe que continuava a ser agitada e rodada com toda a ligeireza pelo desvairado Raimundo, agora degolado. Durante todo o tempo que durou esta dança, a cabeça de Sabiano colocou-se frente a frente com a cabeça de Mohammed. As duas rodando a igual velocidade, com o Mundo desaparecido, desfocado, no seio de tamanha rapidez.
As luzes apagaram-se, o cenário escureceu como em noite de lua nova. As duas cabeças rodaram como planeta e satélite, num bailado que durou as horas de uma eternidade. Pelo menos assim pareceu ao cansado e doentio cérebro de Sabiano. Passados todos os segundos desta estranha rotina, as cabeças tombaram secamente no meio do chão, sem dar aviso prévio. Quando recuperou os sentidos, Sabiano sentiu, pela primeira vez desde há anos, uma leveza e tranquilidade de que já não possuia memória. Agarrada a si, bem apertada, trazia a cabeça de Mohammed como se fosse a sua, junto à zona abdominal.
Assim se quedou deitado, a olhar o céu estrelado por longos e largos minutos, como se o Mundo tivesse acabado e a sua alma tivesse sido carregada até ali, àquele mágico instante de um descanso.
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domingo, 28 de setembro de 2008

Jogo de palavras

110.

- Não sei o que poderá ser mais importante que o lar? Em casa, os pais servem-nos petiscos e tratam de nós sempre que necessitamos.
- O amor! Mais importante do que o lar é o amor. Sem que ele exista, não poderá existir um lar. E nunca te esqueças que uma avó sabe sempre tudo, pois é mãe duas vezes. Tens de acreditar sempre naquilo que a avó te disser!
- Mãe, por favor. A Francisca tem lá idade para lhe andar a meter essas ideias na cabeça! Com franqueza. Ela já começou a infringir algumas regras na escola e não precisa que lhe dê esses conselhos. E que ideia mais disparatada a de ter sugerido a possibilidade de um encontro com um total desconhecido no meio de Alcobaça. Belo exemplo que deu à sua neta! Falar com estranhos já é suficientemente perigoso e totalmente desaconselhável, quanto mais ainda ter tido a insensata ousadia de sugerir aquilo que sugeriu.
- Mamã, já chega! O senhor é muito simpático. Como é que alguém que tem um cão tão bonito como o dele pode ser má pessoa? A mamã é que me disse que as pessoas que tomam conta de animais assim bonitos são boas pessoas. É verdade mamã, e o que quer dizer insensata ousadia?
- O que a tua mamã quer dizer é que a avó arriscou um bocadinho ao ter dito ao senhor António para jantar connosco, caso desejasse. A avó não viu nada no senhor que pudesse indicar maldade ou perigo. Bem pelo contrário. Mas todo o cuidado é sempre pouco.
A conversa seguia estes contornos algo agitados entre as três senhoras, enquanto a viagem rumava a Coimbra. Francisca e Filomena sempre gostaram muito deste jogo que praticam enquanto as longas viagens de automóvel não chegam aos seus destinos. Cada uma, na sua vez, sugere com uma frase algo que seja uma verdade mais verdadeira do que aquela que a outra tenta depois sugerir. Estavam a acabar as primeiras frases do seu jogo, quando foram interrompidas por Esperança, que lhes suspendeu a disputa logo no primeiro minuto.
- Então avó, quem ganhou a primeira frase? O que é mais importante, um lar ou o amor?
Filomena pediu a Esperança que fosse servindo de juíza desta partida. Foi com algum entusiasmo que reparou nas luzes foscas do Taunus que as seguia, lá atrás, a alguma distância. Tinha percebido naquele homem algo que, tecnicamente, já não sentia havia muito tempo. E alguma “perigosidade” juvenil só poderia trazer cor à sua vida. Nada na vida de um ser humano se encontra condenado. E a última coisa que desejava para a sua vida era senti-la começar a estagnar, ou fazê-la seguir apenas ao sabor das marés do tempo.
- Então Esperança, a quem deve ser atribuída a vitória da primeira sentença? À neta perfeita, que invocou a importância extraordinária da existência de um lar, ou a da avó poetisa, que puxou logo da palavra amor?
Aguardou-se em silêncio a decisão da juíza. Demorada. Pensativa. Afinal, tratavam-se de dois argumentos de peso a lutarem pela vitória final.
- Empate! Acabou por ser um empate. Afinal de contas, quem pode decidir entre um lar ou o amor?
Francisca lançou uma sonora gargalhada! A avó utiliza, sempre que pode, o amor para obter vantagem na primeira disputa deste jogo. Faz parte daquelas coisas que acontecem de forma tão natural, como o próprio ar que se respira.
- Viste avó! Bem feita! Desta vez o teu truque não resultou. Devia ser proibido usar o amor logo na primeira frase! Mas a avó não resiste, pois não? A avó não consegue resistir a usar o amor na primeira frase do nosso jogo! Bem-feita! Ainda está zero a zero!
E o sorriso infantil de Francisca continuou a inundar aquelas vidas que seguiam viagem a caminho de Coimbra, como a água azul cristalina refrescou as sedentas gargantas dos Templários, agora abrigados debaixo daquele celestial firmamento em Ourém. Bem perto destes lugares, mas afastados por mais de oitocentos anos de memórias, seguem agora caminho estes destinos cruzados e distanciados em tempo, que não em espaço.
Por esta altura, Castro sentiu uma incontrolável vontade de ladrar, tão incontrolável como a vontade que um amante tem em beijar apaixonadamente o seu objecto de paixão. Os perfumes, odores e fragrâncias, todos, sem excepção, lhe trouxeram memórias de coisas passadas. Necessitará da sua vida inteira para poder descobrir a proveniência dessas histórias.
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sexta-feira, 26 de setembro de 2008

Chá de tília e ervas doces

109.


A melhor maneira de dar continuação aos perdidos temperos da madrugada daquele renascimento, foi através da forte amizade das tias Berta e Rosário. Não soltaram uma só palavra quando deram conta da sobrinha estendida desnudada no pavimento alagado do quarto de banho. Imediatamente trataram dela com todo o carinho do Mundo.
Alzira estava gelada, muito azulada e trémula. Os seus olhos tinham as pupilas dilatadas, de um negro a fazer adivinhar o vermelhão da sua retina. A íris embaciada, de um azul acinzentado sem expressão. Todas passaram a partilhar aquela humidade fria que Alzira compartilhou, assim como a sua fria temperatura de jovem moribunda. Os cabelos encharcados traziam agarrados ao seu perfume dourado, a desgarrada e descomposta figura da menina moça, muito lenta de movimentos, muito assustada, muito omnipresente. Trataram imediatamente de a aquecer. Limparam-na com todos os cuidados. Secaram-lhe os cabelos e a perfumada pele. Taparam-na com um enorme roupão de banho e aconchegaram-lhe o estômago com um chá de tília e outro de ervas doces, acompanhado de duas fatias de pão torrado. Alzira tudo ia provando com muita serenidade e de maneira muito lenta. Demorou algum tempo a dar conta da sua situação. Já percebera que a sua vida mais recente estava marcada por estas estranhas digressões entre estes Mundos tão distantes e distintos, contudo ambos tão reais ao seu entendimento. A demanda que iniciou na busca da estranha caixa mágica do seu futuro tem sido, muito provavelmente, a causa de todas estas perturbantes e radicais experiências de viagem. Se somar a todas estas estranhas e oníricas realidades as desordens e alterações que aconteceram ultimamente na sua vida, no seio da sua família, com os que lhe são mais íntimos, fica provado que, seguramente, todas estão intimamente relacionadas e contribuem de igual maneira para este emaranhado emocional que vai sentindo.
- É tão bom sentir o vosso carinho queridas tias! Tão bom, tão repousante! Obrigado por tudo e desculpem a preocupação que vos tenho causado!
As tias esboçaram um pequeno sorriso, apertaram com amizade e ternura o corpo de Alzira, e ali ficaram as três a ouvir, em serena tranquilidade, o sincronizado batimento dos seus corações.
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Tréguas refrescantes

108.


O cansaço provocado por aquele calor desmedido nos cavaleiros Templários foi verdadeiramente brutal. Quando chegaram à distância de cem passos da enorme porta de madeira e ferro das muralhas de Ourém, a respiração saía-lhes tão dolorosamente arquejante quão profunda e vagarosa. Os animais traziam agarradas à pele uma intensa cola branca de suor pastoso. As línguas penduradas das bocas e as cabeças caídas carregavam nelas olhares ausentes e estafados. Ao colocar a mão nas pedras dos altos paredões que protegiam a zona do acesso à porta de entrada do castelo, Castro sentiu nela um calor tão forte e doloroso que, no mesmo instante, soltou um grito, misto de surpresa e de dor.
- Deus meu! Arde como fogo! Como é possível estas paredes carregarem em si a temperatura dos Infernos? Quase se poderia usar este braseiro para assar cabritos ou uma qualquer peça de caça.
Tinha sido a ele que Fernando Dias dera instruções para apresentar a comitiva Templária ao mestre do castelo de Ourém e aguardar as ordens de entrada na fortificação, onde, seguramente, poderiam descansar e acalmar os corpos da violência do calor daquele dia. Após as ordens de abertura da imensa e pesada porta, todas as almas sedentas de fresco sabiam que ali iriam dar conclusão ao seu castigo. O mestre Fernando Dias tinha mencionado que, bem guardado no centro daquela fortificação, existia uma cisterna subterrânea para a qual se desce por uma escadaria em pedra. Com o rigor e a ordem da disciplina Templária, todos os ilustres cavaleiros, um a um, desceram com incontida alegria e sentiram, finalmente, as tréguas refrescantes daquele bem-aventurado local.
Após darem alegria às suas sedentas bocas, cabeças e corpos, trouxeram em contentores apropriados, bem do fundo daquela deliciosa cisterna, a refrescante água para saciar os animais que, tal como eles, padeceram deste suplício horas a fio. Por ali se quedaram, em descanso e conversa o restante tempo que aquele dia durou.
- A vista que daqui se tem para qualquer dos locais que se deseje olhar é verdadeiramente fascinante mestre de Ourém! Hoje foi o dia em que as nossas lembranças de vida ficaram marcadas com a memória da força e da intensidade cruel com que o astro rei nos pode ameaçar. Jamais tinha tido uma experiência como a de hoje, mesmo quando por terras de Castela e Navarra me fiz, em anos passados, convidado. E por lá as coisas também aquecem, se é que me faço entender.
Honrado com a visita do Grão-mestre Templário Fernando Dias, o mestre de Ourém acenava afirmativamente com a cabeça, sentindo algum constrangimento pela falta de condições que o castelo tinha para oferecer a tão importante comitiva.
- Assim é caro mestre Fernando. Saiba que todos os que servem neste castelo se sentem honrados com a vossa mui digna e inesperada visita. Será um enorme orgulho se tudo estiver a vosso gosto e vontade caríssimo irmão. As instruções foram já dadas para que possamos, muito em breve, servir a todos os irmãos que a nós se juntaram neste dia tórrido, uma refeição digna e retemperadora.
Fernando Dias e o mestre de Ourém permaneceram mais alguns, longos, instantes, a partilharem a vista e a colocarem alguma conversa importante em dia. Dos dias passados, Fernando Dias deu conta de algumas das experiências e peripécias. Desde a saída de Idanha, a passagem por Rates, por Ferreira. A tão misteriosa como importante referência à pessoa de Gonçalo de Arriconha. A caminhada com ele realizada para que el-rei Dom Sancho I o pudesse avaliar e conhecer. Os dias e noites passados, já em Coimbra, na sua companhia. As mortes e horrores causados pelo grupo de mercenários assassinos que ainda tentam descobrir. E nada mais.
Quanto ao restante, dele não fez relato ou menção.
-A comida encontra-se na mesa meus senhores!
Ouviu-se assim, numa voz forte, saída da imensidão do pátio central do castelo, a informação aguardada por aqueles homens de armas, agora já retemperados e abrigados da inclemência brutal do forte sol daquele Agosto.
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quinta-feira, 25 de setembro de 2008

Bem-hajas, companheiro

107.


O caminho restante até Coimbra foi realizado já com a noite a pintar o céu. Castro continuava atento aos movimentos de António Júlio. Quem, como ele, não conseguia entender toda a sublime paleta cromática daquele entardecer, tinha sentido uma vontade estranha em mirar o horizonte a Oeste. Estavam as nuvens lá ao alto tão deliciosamente aguareladas, pintadas por baixo com toda a rubra intensidade do sol, que se tinha mesmo agora acabado de despedir.
As senhoras levavam já umas largas centenas de metros de avanço sobre estes dois companheiros de viagem. O carro onde seguiam viagem era mais moderno e veloz. A condução era realizada com uma finura que António Júlio não conseguia plagiar no seu Taunus, cheio de vícios e vontade própria. Ao olhar para o céu assim, lá no horizonte, Castro acabou por repousar os olhos no rosto quase iluminado de Tó. A figura imponente, o olhar atento e perspicaz, traziam-lhe à memória uma outra figura de homem de quem se recorda muito vagamente. Não consegue deixar de sentir em si essa estranha sensação de equilíbrio entre esta canina existência, as lembranças desfocadas desse passado que não consegue alcançar, e as que vai agora construindo com estas novas humanas amizades. António Júlio sentia-se observado, como se o cão negro o estivesse a investigar recorrendo ao espírito e faro de fiel amigo.
- Olha lá ó ladino, quem te manda a ti cativares com tanta facilidade as pessoas que vagueiam ao teu redor. Já reparaste bem que, subitamente, desde que nos encontrámos na manhã daquele sábado, deixei de ser um só e caminhamos neste momento cinco almas unidas num trajecto de viagem comum. Estás a perceber alguma coisa do que estou para aqui a dizer? Afinal de contas tu não tens nada quatro patas rafeiras. A tua alma está impregnada de uma silhueta de afeição que se cola naqueles que tu resolves fascinar. És livre como o vento, se o desejares cumprir para ti. Gosto desta tua pele que se cola a ti como uma segunda e te transforma num ser vivo verdadeiro e tão esplendoroso. E ainda para mais, amigo meu. Bem-hajas companheiro Castro, bem-hajas!
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terça-feira, 23 de setembro de 2008

Um interminável minuto de silêncio


106.

As cerimónias perfeitas são as que nos ficam cravadas na memória.
Alzira deixou de sentir frio, ou calor, ou qualquer outra temperatura no seu corpo. Estava apenas a usar o sentido da visão. Reparava em toda a magnificência de Gamélia. Como seria possível ter centenas de anos de idade. A experiência humana não nos capacita para entender esta realidade paralela sem que as dúvidas se levantem. A recente morte da mãe, o pouco tempo que passou desde o desaparecimento do seu pai, a sua grande amiga Marilyn, falecida de forma tão trágica, tudo conjugado com a tenra idade da sua adolescência têm sido um verdadeiro furacão de sentimentos a devastar a sua experiência de vida.
- Nesse teu bonito livro não consegues descobrir o capítulo que dá conta do lugar secreto onde esconderam a minha caixa? Olho para ti e não consigo deixar de pensar na idade que dizes possuir. Só me lembro destas minhas lembranças de pequena rapariga, e já essas acumulam um peso excessivo de amarguradas experiências. Como consegues tu lidar com séculos e séculos de memórias tremendas? São, seguramente, bem mais cruéis, pesadas e brutais do que se coleccionassem apenas algumas dezenas de anos de segredos.
Gamélia continuava muito serena, teatralmente embrenhada na atenta leitura do livro dos pesadelos, bebendo, com a maior das atenções, todas as palavras de Alzira.
- Não procures imaginar as mulheres-anjo através desse tipo de humano julgamento ou tentar analisar superficialmente aquilo que somos. Tens feito um óptimo trabalho até aqui. Vais ter de continuar a correr riscos, como os falcões selvagens. As personalidades fortes constroem-se desta forma. Delas normalmente resultam pessoas de poucas palavras, capazes de corajosos e valorosos actos de verdadeira coragem, sempre prontas a fornecer ajuda a quem dela mais necessita. As questões, todas as questões, acabam por se derreter em espuma nas areias húmidas das praias do tempo, à beira-mar. Cada uma das pequenas partículas de areia é depois filtrada por ele, seca com todo o cuidado e com delicada atenção. É depois colocada numa gigantesca ampulheta invisível que o tempo utiliza como máscara do seu comportamento. Pelo menos é o que está escrito aqui neste capítulo do livro. Quanto à secreta localização duma caixa que supostamente te pertence, nada li que desse conta desse objecto. Será seguramente um objecto muito valioso. Terá sido roubada? Terá desaparecido misteriosamente? Terá alguma vez existido? Onde ouviste falar de uma caixa que te pertence?
Alzira ficou sem entender se as palavras de Gamélia eram realmente verdadeiras. Afinal de contas tinha sido ela que, no Drakkar, quase lhe colocou a bonita caixa nas mãos. E como brilhou nas mãos da tia, quando ela desceu das nuvens a grande velocidade. É verdade que a realidade acabou por transformá-la no sapato estragado de Berta, mas não será menos verdade que aqui, em Husadel, nada do que faz parte dessa aparente realidade deveria fazer sentido. Mesmo as recordações das coisas que, supostamente, existem no Universo das coisas reais. Essas recordações deveriam ser tragadas e coadas por um passador que lhes desse respeitoso tratamento.
Uma gelada e húmida sensação começou a ser sentida por Alzira de maneira cada vez mais intensa. A luminosidade dos céus de Husadel começou a tornar-se cada vez mais ténue e difusa. Gamélia passou a ser uma figura sem contornos definidos. O rosto da mulher-anjo desaparecia numa mancha de tonalidade azul acinzentada, amorfa e desfocada. Cada vez ia sentindo mais e mais frio, a par de uma maior sensação de humidade, como se todo o corpo estivesse mergulhado num daqueles lagos gelados de Husadel. Sentiu pela primeira vez na sua vida uma forte sensação de pavor. Deixou de sentir o oxigénio a chegar-lhe aos pulmões. As luzes apagaram-se completamente da sua memória e uma horrível sensação de engasgamento provocou-lhe um enorme desespero. Desejava gritar e só conseguia sentir a boca, a garganta e os pulmões carregados de água. Não sabe como conseguiu encontrar em si forças para sair daquela terrível situação. Levantou com enorme dificuldade os braços em direcção ao céu. As mãos deram conta de duas superfícies lisas e escorregadias às quais se agarraram com as forças que conseguiram encontrar. Os braços receberam ordens para erguer o corpo de Alzira como se tivessem sido carregados por uma derradeira fonte de energia. De forma lutadora e atormentada, sentiu finalmente o seu corpo sair daquela condição de quase afogamento.
Alzira tinha acabado de tombar de maneira brusca e descontrolada no chão molhado e escorregadio do seu quarto de banho, que se encontrava totalmente inundado. Ao sair da banheira desta maneira tão abrupta, o som que provocou fez estremecer toda a casa como um trovão. Depois a casa ficou vestida de silêncio. Um silêncio intenso, cortante e profundo. Durante o interminável minuto que durou esse silêncio, Alzira recriou-se com os círculos que as lágrimas iam desenhando no molhado pavimento de cerâmica do quarto de banho. Uma após outra, marcavam o ritmo correcto para que a sua respiração se recompusesse.
Nunca mais se esquecerá da imensa tranquilidade e serena paz sentida durante esse interminável minuto de silêncio. Descobriu que muitas das nuvens do céu são carregadas com as salgadas lágrimas desses silêncios.
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segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Lembrança cinzelada nas almas


105.

Instalara-se alguma confusão no seio do grupo de Sabiano. Todos os do seu grupo enfrentaram a extraordinária segurança que rodeava a cidade capital do reino e das hostes de el-rei. Raimundo viu-se assim impedido de aplicar os correctivos que lhe iam destinando as suas companheiras, bem alto, no centro das suas ideias. As mãos vastas vezes apertaram, com o vigor desmedido da alucinação, a sua própria cabeça. Os parietais deixavam perceber as têmporas carregadas de um sangue envenenado com os ideais de horror. Continuava a desejar propagar as entranhas da sua execrável loucura por todos os seres viventes que lhe aprouvessem em delírio.
Caminhou com os seus lacaios assassinos, totalmente desvairado, durante quase uma semana, na senda das infantas reais, que nunca conseguiram descobrir. Iam-se presenteando com as terríveis formas de morte que provocavam nas tristes almas de gente anónima que tinham tido a infelicidade de se lhes cruzar em destino. Pelos caminhos de Montemor seguiram, acompanhando as frescas águas do Mondego. Mohammed Al Gaitad tinha arriscado transmitir ao chefe algumas ideias em forma de palavras, que lhe tinham oferecido uns jovens moçárabes, a quem acabaram por ceifar o sopro da vida. Tinham-lhes dito que uma comitiva de cerca de doze cavaleiros se tinha encaminhado, abrigada pela escuridão da lua nova, em direcção ao castelo de Montemor. Talvez levassem consigo Dona Teresa em segredo, ou outra importante figura do clero, ou algum nobre importante, pois as figuras tinham porte de estado e comunicavam secretismo em todos os maneirismos com que procuraram esconder a sua passagem. O estranho de todo este acto de crueldade, que finalizou com a vida desses jovens pela mão dos brutais sádicos trejeitos de Sabiano Raimundo, foi o de também acabar por trespassar com a sua lâmina já carregada com o quente e húmido rubor do sangue desses rapazes, o pescoço do seu guerreiro Mohammed. Permaneceu com a adaga bem firme, agarrada com impressionante vigor, com o punho cerrado como rocha, e ia rodando o pulso de maneira intempestiva, ritmada. Deixava-se envolver pelo prazer que ia retirando dos gritos e das lágrimas de dor e sangue lançados ao ar pelo seu guerreiro moribundo.
Os seus olhos não brilhavam, não dominava os seus gestos e não conseguia controlar a sua força. Era agora um outro ser dentro deste corpo que ganhara vida própria. Um ruído cruel, fino e agudo, baralhava-lhe todas as memórias, bem no centro da sua alma destroçada. Não parava de aumentar em intensidade, assim como as mãos não paravam de dar conta de novos locais onde cravar a adaga, vezes e vezes sem conta, no cadáver de Mohammed, como se fosse o seu próprio corpo que desejava assim aplacar. No fim desta incontrolável esquizofrenia, levantou bem alto o seu machado, fixou o olhar na garganta degolada, que lhe parecia comandar aquele último gesto enlouquecido, e de uma só vez, separou a cabeça do corpo com a mestria de um carrasco.
Os restantes companheiros não conseguiram derramar uma só palavra que fosse. Ali permaneceram, imóveis, atónitos, o tempo necessário para que esta lembrança lhes fosse cinzelada nas almas.
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domingo, 21 de setembro de 2008

O sabor de secretas palavras


104.

-Os caminhos cruzam-se. As passadas e os destinos dos viandantes vão sendo moldados por Deuses, entretidos nessas sessões como em jogos de xadrez. As peças são despedidas ou acrescentadas aos tabuleiros, sem definição ou critério estabelecido, sem regra, numa missão sem segredos. Para as humanas almas que as tentam entender, são totalmente indecifráveis e, contudo, continuam a seguir na senda da sua leitura e interpretação. Colocar as promessas de parte e arrancar para bailados onde os Deuses completam, durante o tempo que demora uma espreitadela de excitação, as suas vontades em papéis de sonhos, daqueles que os humanos nunca podem fazer subir aos seus confusos cérebros. Segundo consta, é assim que esses Senhores desejam que permaneça. Não são surpreendidos com indesejáveis escadarias ou patamares que alteram a perfeita e sacrificada construção do Mundo, essa frágil construção edificada no cimo de uma simples árvore.
Gamélia ia lendo para si, propositadamente alto, para que Alzira pudesse sentir o sabor das secretas palavras do livro dos pesadelos. Os edifícios naturais de Husadel são ilhas de prazer e de deleite para os olhos de quem os observa daquela pequena ponte. Esta terminologia deixa de fazer qualquer sentido para quem sofre, como Alzira, dores recentes e profundas. Tem um súbito desejo de deixar de lado aquele gélido espaço que a separa de Gamélia e apoiar-se num longo abraço retemperador. Como lhe iria saber bem sentir-se abrigada, dessa forma, de todas as suas ácidas lembranças. Manter esse aconchego para sempre. Jamais deixar que esta amizade tão estranha possa alguma vez vir a desaparecer.
Olhou para os gelados horizontes de Husadel e não vislumbrou o local onde o Drakkar voador costumava passar o seu tempo de descanso. Não se via nem sombra das suas velas. Alzira pensou que passaria, por esse motivo, mais alguns dias com o anjo-mulher.
- Podes-me ler um pouco mais desse teu livro, Gamélia? Não consegues imaginar o bem que as tuas palavras me soam. Apaziguam as vozes que carrego em mim.
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sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Marionetista Supremo


103.

As senhoras e o tempo pararam. Castro continuava a sofrer as carícias da pequena Francisca, possuidora dessa doce novidade que fará dela uma futura dona de um fiel amigo. António Júlio sentia-se um pouco baralhado com tanta movimentação ao redor do seu “perímetro de segurança”. Do alto dos seus olhos mansos, o escritor apontava todas as movimentações daquele quarteto. Perscrutava, com a sua argúcia de artista, todas as mensagens contidas nos gestos felizes daquelas três gerações de senhoras, atraídas pela singeleza simpática daquele rafeiro preto, de porte aristocrático, que lhe salvara a vida, sem o saber.
- Boa-tarde! Espero que o bicho não as tenha incomodado. Ele é um verdadeiro pesquisador. Tem uma vontade muito própria e do seu destino não procuro ser travão. A menina gosta muito de cães. Se bem me recordo, já não é a primeira vez que Castro se encontra com ela.
As senhoras apontaram com igual rapidez o olhar na direcção de Tó.
-Desculpe a nossa ousadia, mas a Francisca correu com tal rapidez que conseguiu fazer de nós umas perfeitas tolinhas. Não era nossa intenção incomodar. Ela adora cães. Fica louca quando vê um animal assim tão simpático e não consegue resistir aos seus encantos.
A tarde estava, desta forma, por ali descansada. A mãe de Esperança, apesar do cansaço da corrida, notou a subtileza formidável com que António Júlio observava toda aquela cena. Não se recorda, fazia muitos anos, de um olhar assim tão inteligente e sensato. Era muito fácil cair na tentação de ler a alma que está por detrás de um olhar assim tão intenso, tão puro. Não pôde evitar que um pequeno calafrio lhe percorresse as costas de alto a baixo, dando-lhe aviso.
- Desculpe, mas julgo ter a sensação de que nos conhecemos de algum lado.
Foi assim, desta forma tão tradicionalmente juvenil, que Filomena deixou cair a barreira da distância.
António Júlio sorriu. Esperança e Francisca estavam agora entretidas com Castro, preparando-se para seguirem os seus destinos e darem as devidas despedidas ao bonito animal. Não repararam que, de forma tranquila, as outras personagens daquela tarde se embrenhavam numa conversa. E as conversas, como as cerejas, trazem outras agarradas atrás de si. A descoberta que dali se seguiria um comum destino de viagem para todas aquelas cinco almas, a todos deixou uma sensação de cálida estranheza, como se alguém lhes estivesse a coordenar os movimentos, algum Marionetista Supremo a dedicar o seu esforço para lhes dar iguais rotas de viagem.
Com que intenções Coimbra lhes foi indicada como o lugar para um próximo e rápido encontro, só esse Marionetista Supremo, por agora, o parecia saber antecipar.
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Bafo dos infernos


102.

Era sufocante o calor naquele fim de manhã. Atacou em cheio o grupo de cavaleiros Templários de forma impiedosa, já com Ourém lá longe à distância do olhar. Não é possível descrever com a devida correcção a forma asfixiante como aquele ar quente secava as gargantas de todos os seres vivos que avançavam na direcção das muralhas. Bailavam no horizonte, tamanha a violência do braseiro. Dar conta da imensa dificuldade causada pelo forte estio, que a todos apanhou de surpresa, pela maneira sorrateira e rápida com que caiu naquele dia e assim se fez anunciar, é dar conta do próprio bafo dos Infernos.
Passaram poucos dias desde a saída do grupo de Coimbra em direcção ao destino traçado por el-rei D. Sancho. Nenhum deles se tinha sequer aproximado em temperatura ao Infernal e seco hálito de hoje.
- Nem uma sombra por perto, nem uma clemente aragem retemperadora. Apenas este manto invisível que nos transtorna as ideias e transforma as armaduras em fornos de lenha atiçada. Mais não nos resta que aguentar este tempero e salvarmos os corpos aflitos com movimentos lentos e compassados na direcção de Ourém. Mais um par de horas e estaremos resguardados nos frescos abrigos dos seus aposentos graníticos. Pensemos desta forma para nos alentarmos ao longo do restante suplício.
Fernando Dias dava conta, nestes termos, das grandes dificuldades por todos sentidas. Apesar do sofrido passeio, as almas destes homens não se deixam vergar com facilidade pelas terrenas cruezas das intempéries.
Castro rodeava o seu pensamento, as suas ideias, com os acontecimentos experimentados em Coimbra. Aquela mistura moldou-lhe as novas faces do seu carácter. A sua nova orelha, mordiscada pelo intenso prazer de quem voou nas asas do desejo como mais nenhum outro ser antes de si. Os segredos guardados e compartilhados com as figuras mais importantes deste reino. O crescer em força e em vivência de adolescente, feito homem nesta demanda entre a vida terrena e as muito misteriosas coisas do Divino, abriram nele tantos sabores que nunca se tinha sentido tão intensamente vivo como agora. A vida nunca se lhe tinha apresentado com tantas variáveis e sobre tantos pontos de vista. Conseguia agora ter mais do que uma ideia de como este Mundo se apresenta. Lê nele forças com incomensuráveis enigmas e infinitos sabores de deleite, a par de outros tantos infinitos sabores de desprazimento e de dor. Regressa às memórias do seu passado recente e menos recente, vagueia pelas lembranças da segurança do seu posto de pajem Templário e do homem que dele vai fazendo crescer homem com a força da amizade e do rigor feito Fé.
-Fernando Dias tem sido mais do que um pai para mim, tem sido a iluminada segurança de um propósito que ruiria se não fosse a vontade urdida na imensa força contida no coração desse homem. A tarefa destinada agora neste corpo que carrego é tão importante que dele nada mais me resta. Carregar com segurança e em segredo este objecto de destino que transporto aos ombros, mais nada faz sentido ou tem valor. Sou essa ferramenta de vital ligação entre a consagração do Sagrado e do Terreno, num objecto de proporções tão incalculáveis como pequeno é a forma que lhe pertence.
O calor começava a estragar as ideias aos cavaleiros, a cegar-lhes a vista, a torrar-lhes as percepções com labaredas descomunais. E corpos começaram a dar baixa e a ceder à intensidade do calor sentido. Ficavam parados, sentados no solo ardente, dando descanso às montadas, com as ideias tão turvas que alguns julgaram ter alcançado as portas do Paraíso. Outros tombavam mesmo para o chão, sem aviso, como se tivessem sido fulminados por raios disparados do céu como setas de bestas de combate. O mestre Templário deu instruções para que todos os que começavam a dar sinais de fraqueza fossem ajudados pelos restantes cavaleiros. Das fraquezas arranjar forças, tornar a colocar os corpos dos companheiros no dorso das montadas e seguir caminho na direcção da protecção das sombras guardadas lá longe, no fortificado castelo de Ourém.
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quinta-feira, 18 de setembro de 2008

Suave perfume a entrar pelos pulmões



101.


Deambulavam as ideias na cabeça de Alzira depois de passadas semanas sobre a morte da mãe. Em Husadel, Gamélia entretinha-se a traduzi-las e conversava com Alzira sobre tudo e sobre nada. As palavras secretas dos pesadelos estavam contidas num livrinho que Gamélia gostava de trazer sempre perto de si, como companheiro de viagem. Não aprecia muito a solidão, mesmo que a sua companhia sejam apenas as fantásticas narrativas escondidas naquele livro estranho que transporta com ela. As mãos do anjo luziam de contentamento, como se pudessem aquelas histórias diagnosticar todos os potenciais problemas do Universo. Apertava-o com carinho e firmeza.
Alzira não tinha grande vontade em conversar. Preferia contemplar aquela imensidão, sofrer na pele o gélido e seco ar que lhe trespassava as roupas, os aconchegos de pele, a sua própria pele e lhe fazia ranger todos os ossos do franzino corpo de menina-moça. Não deu conta deste passar de tempo. Apenas se recorda de se ter levantado muito vagarosamente da cama, onde a tinham colocado depois do desmaio. Daí para a frente, foi como se lhe tivessem esvaziado as memórias. Uma imensidão de branco, tal e qual as paisagens de Husadel, mas não tão terrivelmente gélidas e sentidas. Um mar de espuma e sal levou depois até si, mais nítidas e tranquilas, as imagens, os sabores e todos os outros sentidos de que são feitas as recordações. A máquina das lembranças tinha reiniciado o seu processo de trabalho de maneira muito brusca. Limpou-lhe todas as lágrimas e pensamentos sombrios da cabeça. Alzira deu por si nestas paragens frias e geladas de Husadel, ao lado de Gamélia, como se de um novo sonho se tratasse.
- Gostaria de ter boas-novas, bolinhos de canela ou outro sonho doce e cristalino para te adocicar o futuro. Este ar de Husadel acaba por ser um suave perfume a entrar pelos pulmões.
Ao ouvir estas palavras de Gamélia, Alzira procurou força e coragem para lhe responder. Entende nela uma sua amiga. Percebe nela uma imensa força, estranha, divina, misteriosa e tranquilizadora. Necessita agora, como nunca, de uma amiga assim. Tem de continuar a sentir e a dar alimento à coragem necessária para seguir em frente. Continuar a apreciar as imensas alvas paisagens deste longínquo local, apesar da tenra idade da sua inocência.
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