sábado, 26 de julho de 2008

Incumbência sagrada


100.

Nenhum cavaleiro do reino irá ser acrescentado aos que vão acompanhar a missão destinada por Dom Sancho I ao Grão-mestre Templário Fernando Dias. Ficou assim combinado. Menos estranheza causará a todos. As conversas que Dom Sancho manteve com Gonçalo de Arriconha trouxeram renovados alentos. Foram muitos e importantes os sinais divinos de que o rapaz deu conta ao rei. Despertaram-lhe novas esperanças para este pequeno reino Ocidental.
- Muitas Santas figuras terão daqui partida e chegada. Outras grandes figuras sagradas são já nascidas nesta época para relembrar aos homens qual o verdadeiro significado do segredo da vida eterna. As infantas filhas de el-rei ganharão também divinas proporções pela grandeza do seu carácter e pelo empenho fervoroso que aplicarão a todos os actos de fé. Homens santos por aqui irão receber ensinamentos. Rainha de santas e miraculosas decisões nesta terra criará futuras devoções. Muitos serão os divinos trabalhos que para este reino abençoado estão reservados e que serão carregados pelos seus filhos, pelos herdeiros, pelos herdeiros dos herdeiros, até as gerações em mais de setenta, até que todos os homens possam finalmente entender o sagrado significado da vida eterna.
Com estas palavras, Gonçalo se preparou para seguir em frente nestes tempos de enlouquecidos hábitos de conquista.
- A morte e a vida têm significados que só através da respiração se podem percepcionar. Ao nascer o choro e o grito dão aviso dos primeiros sopros divinos. Ao fenecer, desaparece a alma através do eclipse da respiração. O senhor meu rei possui em si dois corpos, um natural sujeito às paixões e à morte. O outro, político, que nunca morre, tal como Nosso Senhor Jesus Cristo, com um corpo humano e mortal e um corpo místico. A individualização e dramatização desta finita passagem encontrarão brevemente quem os promova. É em cada um de nós que se define e constrói a vida em ética e moralidade cristãs, para a construção de um mundo ética e moralmente mais fortalecido em Cristo.
Dom Sancho I decidiu que Gonçalo iria permanecer em Coimbra por algum tempo. Será entregue aos cuidados dos cónegos regrantes de Santa Cruz antes de regressar ao bispado em Braga e ao seu tutor Frei Humberto de Poitiers. Com estas informações seguiram para Ferreira, faz já alguns dias, três nobres cavaleiros do reino. Delas darão notícia, conforme desejo real.
Gonçalo representa para el-rei uma riqueza rara nestes tempos de escassez. Uma graça de contornos divinos, cujos planos não lhe compete questionar.
Os Templários irão transportar o sagrado conteúdo da caixa no maior dos secretismos, até Tomar. Este assunto não cresceu no conhecimento de mais nenhum dos homens da Ordem. Fernando Dias só deu conhecimento desta secreta e sagrada incumbência ao seu valoroso e mui honrado pajem.
A caixa foi mudada por Castro na presença das figuras de el-rei e de Fernando Dias, que de maneira directa e sem suscitar a mais pequena dúvida, lhe demonstraram os porquês da importância do seu silêncio sobre aquele sagrado acontecimento. Exactamente como Gonçalo de Arriconha lhe tinha destinado.
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quinta-feira, 24 de julho de 2008

Os lagos gelados de Husadel


99.

Os homens raramente mantêm a cabeça fria. Gamélia tem as mãos vestidas com umas belas luvas brancas forradas a pele de iaque. Interpreta as tragédias dos vivos que lhe vão chegando reflectidas nas águas dos brilhantes lagos gelados de Husadel. Comove-se com os momentos de alegria e tristeza que vai decifrando nas frias imagens congeladas. Todas as vidas que observa, todos os rituais, os desaparecimentos, as mortes, as arrebatadoras paixões, as vidas que se vão renovando, desenham-se em promessas nos lagos. Pelos vistos, todos crescemos, mesmo antes de termos a noção do que acarreta essa variável. O tempo esquece sempre a hora de nos dar aviso dessa situação.
Gamélia não se pode aventurar muito para além da beira das suas margens pois o gelo mantém-se sempre quebradiço. A meio de um desses brilhantes e transparentes ecrãs existe uma longa ponte de madeira por onde o anjo-mulher gosta de passear. Olha para os lagos lá de cima. Procura vidas para ler. Esse é, aliás, o único passatempo permitido por aquelas gélidas paragens. Os lagos de Husadel são os únicos locais onde dá algum descanso à sua eternidade. Para lá das margens destes lagos, uma imensa e desértica dimensão feita de branco. Ainda mais ao longe, onde a vista se deixa entreter com as bamboleantes miragens boreais, surgem as formas do Drakkar, colaborador e expectante, quebrando a linha do horizonte com a verticalidade decorativa das suas imensas velas brancas e vermelhas.
Mortes por motivos de causas naturais são as que estes anjos procuram não descobrir. Resistem mas não conseguem, pois as ondas de choque produzidas por todas as outras mortes por vias de outros motivos, passam sempre pelas leituras interpretativas por parte destes anjos analistas de Husadel. Um forte sinal deu aviso a Gamélia que algo de muito importante necessitava da sua leitura atenta. O lago começou a cintilar com brilhantes luzes de um azul intenso, em flashes intermitentes. Não havia história de uma activação luminosa assim tão forte naqueles lagos, desde que se recorda de por lá fazer leituras. A missão deveria ser levada até ao fim. As almas de vidas ceifadas de maneiras dolorosas são apagadas com intenções de não serem recebidas por nenhum animal com os restos das memórias que carregavam. São mantidas congeladas em Husadel, até que estes anjos-mulher decidam quando e como voltarão a ter sustento na eternidade do seu caminho. A alma de Maria do Carmo tinha acabado de ser servida para leitura num desses lagos aos cuidados de Gamélia. Percebeu que a pequena Alzira necessitaria de uma rápida visita sua, pois aquela vida maravilhosa tem ainda muitas coisas belas em que se transformar, e precisa urgentemente de saber que rumo deve tomar.
Voou rapidamente na direcção do enorme barco voador, que levantou as velas e os remos com destino ao quarto gelado de Alzira. De olhos bem abertos, estava já sentada na cama a adivinhar a tranquila chegada do Drakkar.
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quarta-feira, 23 de julho de 2008

As devidas exigências do adeus


98.

- Podias ter feito um sinal, qualquer indicação seria útil para saber por onde andavas. Perdi-te logo de vista mal saíste porta fora. Já vai começando a ser hora de voltarmos à estrada.
Castro olhava para António Júlio, cheio de vontade em lhe dar conta do encontro que tivera, mesmo agora, junto à porta onde os visitantes do mosteiro acabam a sua visita. Desejou saber falar. Queria declarar quem lhe deu tantos abraços e como conseguiu convencer Esperança a oferecer à filha um fiel companheiro pelos anos. Se o esforço fosse suficiente, talvez lhe saíssem palavras pela boca, por troca dos latidos!
Ladrou! As suas vontades de palavras só lhe promoveram a saída de mais e mais latidos pela boca, altos e barulhentos. Dir-se-ia que tentava com eles produzir sílabas que fossem minimamente inteligíveis. Ecoaram pelas paredes deste património da Humanidade. Foram aterrar aos atentos ouvidos de Francisca que desejou poder despedir-se, de maneira mais afectuosa, do amigo subitamente afastado.
- Mamã, avó! Escutem! Deve ser o meu amigo pretinho. Tenho de lhe ir dizer adeus. Pensava que já tinha desaparecido outra vez, e para sempre. Volto já, está bem… - e dizendo estas palavras, Francisca correu velozmente na direcção dos altos latidos que vinham do lado de lá daquela imensa parede que os escondia.
- Francisca, espere…! Francisca! Não corra assim tão depressa! Francisca…!
De pouco valiam à mãe as preces usadas! A menina sabia bem que uma amizade não se deve descartar desta forma tão pouco amistosa. O adeus dado por verdadeiros amigos deve ser sempre feito com as devidas exigências, nunca deixado ao acaso ou votado a abandonos indesejáveis. E lá avançava veloz feita uma seta na descoberta de Castro que encontrou logo depois da esquina da parede sul do mosteiro. Argumentava daquela forma ruidosa com António Júlio. Continuou a sua corrida até que os seus braços conseguiram repousar as vontades no dorso do animal.
A ligação efectuada, os olhos de ambos fechados, e ali permaneceram todo o tempo do Mundo naquele instante.
António Júlio não deu logo conta, pela rapidez da situação, de quem era aquela criança que abraçava Castro com enorme afeição. Só passados alguns instantes a imagem da menina lhe surgiu nas lembranças daquela subida a são Jorge, no largo da Sé, em Lisboa. Recorda-se também do dia em que a linda rapariguinha partilhara com Castro um doce gelado, feito com as cores da amizade, no parque junto a sua casa. Lembrou-se que quase se levantara para falar com a senhora que a acompanhava, para lhe dar conta que o cão também era seu aliado. Essa mesma senhora tinha-se aproximado dos três, que ali, junto ao velho Taunus, deixaram que o tempo recuasse na vontade de partir.
- Desculpe! Quando dei conta já a Francisca tinha desaparecido feita tontinha na procura do seu cão! É seu, não é verdade? Mais uma vez, as minhas desculpas!
António Júlio levantou-se do assento onde permanecera arrebatado com a meiguice da menina. Olhou na direcção de Esperança, que lhe pedia encarecidamente desculpa com o seu verde olhar. Reparou depois na chegada da terceira senhora deste grupo. Pela maneira como tentou acompanhar a caminhada voluntariosa das duas primeiras concorrentes, estava ofegante e com as faces rosadas.
- Já deixei de ter idade para estas aventuras. Meu Deus! Vocês estão mesmo em boa forma! Pareciam atletas de verdade! Fiquei exausta! Ufa! Estou mesmo cansada!
E ali ficaram todos a dar razões ao tempo para não ter coragem em partir.
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terça-feira, 22 de julho de 2008

Zelosos caminhos visionários


97.

Apanharam muito mais coisas do que aquelas que poderiam imaginar. Não conseguiam observar directamente para dentro do bem guardado salão, onde os convivas iam comendo. A muita criadagem trabalhava na cozinha horas a fio. Os odores a comida e temperos alastravam bem para lá dos aposentos reais, em nuvens de culinárias satisfações. Os ébrios vapores dos cozinhados, temperados com o néctar predilecto de Baco, as sentidas temperaturas e fervuras quentes das tentadoras frituras, condimentavam os ares da cidade. Comunicavam assim os ventos, que desta estranha maneira os transportavam, que por ali se tratavam de coisas de bandulho. Gente fidalga ou nobres mui importantes recebiam honras de reais recepções. As preparações foram muito curtas, mas as ordens de el-rei devem ser processadas rápida e eficazmente. Surpreendentemente, nos tristes dias passados pela população da cidade, pretextos de mortes pela peste de cónegos regrantes, tudo inspirava ainda a devida consternação.
Mas a cada tema o tratamento devido que cada tema deve ter.
Estar vivo é arriscar e aceitar os riscos e a insegurança do destino.
A vida destes Templários guerreiros, que visitam agora Dom Sancho, está embrenhada nos pergaminhos dos seus zelosos caminhos visionários. El rei respeita e honra as liberdades escolhidas pelos membros da ordem e procura, através da preservação destes respeitos mútuos, mantê-los e perpetuá-los até à exaustão. O seu próprio futuro político necessita e depende imenso desta determinação e dos interesses Templários no futuro deste reino.
Até que todas as suas vidas se apaguem do tecido da nação.
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Passados e futuros comuns


96.

Não era possível resistir ao brilho sedutor do mosteiro. As coisas de vida e de morte que estão associadas à existência deste património da Humanidade, desde o longínquo século XIV, pela devoção e votos feitos por El rei Dom João I à Virgem Maria, já lá vão quase certos setecentos e vinte anos, dão muito que pensar. O peso histórico das suas memórias é verdadeiramente incalculável. Os homens, desde que o são, que perpetuam as suas desigualdades e vontades expansionistas e de poderes em querelas e quezílias constantes, com batalhas tão sangrentas e brutais como a que acabou por dar origem a este monumento. Os reis de igual nome, que guerrearam nesse longínquo mês de Agosto de 1385, destinaram com o resultado dessa contenda os caminhos a percorrer por estes povos ibéricos, irremediáveis vizinhos eternos. Os casamentos, usados entre todos os herdeiros destes ibéricos tronos, redundavam nestas questões guerreiras de interesses territoriais. D. Juan I de Castela era marido de Dona Brites, ou Beatriz Rainha de Portugal e dos Algarves, filha de El rei Dom Fernando I. Casamento esse, como tantos outros, que apenas desejava fazer unir estas coroas através do estratégico jogo de matrimoniais manipulações expansionistas. Deu-se por cá mal esse D. Juan, bem como os que o auxiliavam. Muitos foram os corpos de cavaleiros franceses e fidalgos nobres castelhanos que se quedaram, espalhados, pelos leitos dos ribeiros que flanqueavam a colina ao redor do campo de batalha, impedindo-lhes o progresso.
Castro permanecia ausente há já algum tempo. Sabiam-lhe bem estas horas tranquilas. António Júlio aproveitava-as para encomendar inspiradas frases que depois assentava nas brancas folhas do seu caderno. Os espaços de histórico valor comunicam-lhe, muito baixinho, quais os caminhos que deve percorrer através da inspirada caneta do seu escrever. O seu pai dizia-lhe que essa caneta com a qual escrevia parecia já ter nascido ensinada. Quando a utilizava era como se lhe sentisse vida própria. Manipulava-lhe as pontas dos dedos da mão direita. Apenas tinha que os deixar passear, serenos, pelos bailados que iam desenhando.
Como se deram depois conta de tantos mortos? Como souberam os vencedores que não tinham desaparecido deste planeta e aterrado numa qualquer longínqua galáxia distante, perante tão horripilante cenário de fim de batalha. Tinha de ser obra de divina intervenção. Qualquer outra tentativa de dar justificação ao que as tropas de mestre de Avis e do seu condestável Nuno Álvares, auxiliados por aliados ingleses, tinham conseguido realizar nas terras de Aljubarrota, cairia facilmente em descrédito. Fez ainda estranho sentido a António Júlio saber que, quando as notícias da invasão chegaram, el-rei D. João I se encontrava em Tomar, na companhia de D. Nuno Álvares Pereira e do seu exército. A decisão tomada foi a de enfrentar os castelhanos antes que estes pudessem levantar novo cerco a Lisboa. Em Tomar se rezou e se decidiu em destino a futura construção de mosteiro em honra de Nossa Senhora, caso sorrisse a vitória perante o castelhano invasor. Em Tomar essas preces e orações ganharam as sagradas forças dos eleitos em Cristo.
Castro a surgir na esquina sul, vem misterioso. Parecia ter sentido a mesma intensidade do estranho sentimento que fez aparição em Tó. Aqui se concretizou, em arquitectada forma, a esperança em Deus Nosso Senhor, por fés extremosas, antecipadas nas orações de homens honrados, realizadas com fervor e muito querer, nas terras Templárias de Tomar. Castro e António Júlio permaneceram por longos momentos a respirar a história enraizada em dor deste local. Aceitam as responsabilidades da sua amizade, feita agora de confiança mútua, cimentada por sentimentos de passados e futuros comuns.
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segunda-feira, 21 de julho de 2008

O caminho da vida eterna


95.

Manter a segurança da distância. A cidade encontra-se bem vigiada. As portas de entrada estavam extremamente bem controladas. A esta situação não seria estranha a espampanante maneira como Raimundo fez anunciar as suas intenções. Tudo se encontrava inspeccionado até à exaustão. Aguardaram dias até que Raimundo começou a sentir um odor estranho vindo dos mercenários que o seguem desde que se recorda. Humilhantes eram, na maioria das vezes, os tratos com que os servia. Inflexível, feroz, trata-os como se fossem seus escravos. E eles sempre agarrados a si como cães danados, mas com total fidelidade ao dono, por quem morreriam de prazer, assim lhes fosse dada essa ordem de comando. Odeia-se, e odeia-os da forma mais incontrolável possível. Podia ser uma estratégia do seu querer, mais uma anomalia mal regulada da sua mente exacerbada.
Os dias passavam e as ideias pareciam ter-se esgotado. Seria uma completa loucura tentar entrar agora na cidadela fortificada da capital do reino, mesmo se a sua vontade em dar seguimento aos intentos de malvadas crueldades vibre cada vez com maior intensidade. E tentar findar com a vida do rei poderia sempre aguardar por momentos mais propícios. Quando ele se ausentar por motivos de régios afazeres ou por outros em que a presença de Dom Sancho seja verdadeiramente imprescindível. Devia ter raptado Dona Teresa no Lorvão, mas a sua miserável loucura para tal desiderato não lhe dera ordenação. Começava a duvidar das suas capacidades de estratega de actos de pavor. Agora que está bem perto das importantes figuras do reino, de lhes alterar as vontades e rotinas, de lhes provocar inesperadas azias no decurso das suas heréticas preocupações, é normal que aumentem as dificuldades em conseguir dar correcta conta dos seus propósitos com a celeridade ambicionada.
- Vou pensar duas vezes antes de pensar corrigir um erro meu! Se não fiz asneira em Lorvão é porque tenho de dar confiança em quem me comanda as vontades. Não tenho sobre isso qualquer outra opção! Tomei mais uma decisão. Aquela que me comanda a cabeça como sendo a mais vantajosa solução para todos, por mais desagradável que nos possa parecer, descoberta bem no fundo das minhas vontades. Iremos aguardar mais um par de dias para tentar antecipar alguma movimentação que nos dê informação de que o rei esteja de saída. As bem guardadas muralhas defensivas da cidade não nos deixam outra alternativa. Até lá, vamos dar alimento às nossas vontades de matança. Eis que se aproximam mulheres lavadeiras com barrigas emprenhadas. Não deixemos fazer crescer o Mundo com mais estas almas. Andarem assim sozinhas pelos campos. Deviam ter mais cuidado! Deviam ter muito mais cuidado. Demorará milhares de anos a corrigir este veneno que me encharca a alma. Alimentemos as nossas vontades de matança! Ofereçam-lhes o caminho da vida eterna!
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Paixão segundo São João

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94.
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Imagens de felizes tempos já passados surgiram às senhoritas no que restava do caminho até ao alpendre, lá ao fundo, já a descobrir-se. Queriam desejar-se novamente pequenas, naqueles tempos de meninas bem mais inocentes, onde tudo tinha o doce e amendoado perfume do chocolatinho que dividiam felizes entre si. Alzira ia balançando os sapatos da tia Berta na sua mão direita, trauteando uma melodia que de repente, sem dar conta, lhe foi encomendada pelas memórias desses tempos não muito longínquos. As tias deram conta da canção que a sobrinha mantinha baixinho dentro da sua boca juvenil, e prontas se lhe juntaram nesse musical acompanhamento. Assim se foram aproximando as três da notícia que lhes iria estragar o Agosto do resto das suas vidas.
Não tinham dado conta da grande algazarra que de dentro de casa se estava a fazer sentir. A criadagem andava num frenesi estridente, a polícia tinha uma viatura estacionada na entrada da porta principal, junto às garagens. As três trocaram entre si rápidos olhares de apoquentação e estranheza, numa mistura dolorosa que lhes sufocava a garganta, o espírito e as cores do rosto. Duas figuras de fato cinzento e de chapéu escuro como o céu em dias de tempestade olharam para elas do local onde se encontravam, aguardando pela chegada do aturdido trio.
- Meu Deus! O que terá acontecido? Não estou a gostar nada deste cenário que por ali se vai construindo.
As gémeas mantinham o andamento pesado, pois palpitaram que daqueles personagens não iria surgir boa notícia. Os seus corações batiam num compasso bastante acelerado, sentiam a sua rápida frequência martelar-lhes perto das têmporas, que disso lhes iam dando sinal. A mão esquerda de Alzira apertada pela tia Berta num acesso instintivo de defesa. O ambiente tornou-se muito assustador. Ruídos de choros compulsivos e incontrolados vindos do interior da habitação eram agora perfeitamente perceptíveis do local onde já se encontravam. As pernas sentiram a ceder. Rosarinho foi a primeira a dar conta dessa fraqueza e tombou descontrolada, caindo de joelhos no meio da gravilha do pavimento, ferindo ao de leve os joelhos com pintadinhas de sangue. Ao assistirem à queda desamparada da gémea, as figuras cinzentas dos dois homens de bigode avançaram na sua direcção para prestar o devido auxílio. Estava em definitivo estragado o resto deste Verão imaculado.
Onde estava agora Gamélia?
Alzira deixara de ouvir os sons deste lugar. Estava petrificada perante esta cena e ficou estática, sem reacção. O seu corpo deixou de controlar.
Berta auxiliava a irmã, tendo largado a mão gelada da sobrinha, que ali ficou isolada perante a situação. As vozes dos homens apenas as conseguia ouvir bem lá ao longe, como barulho desconexo e sem sentido. Sentiu-se desvanecer. A imagem começou a turvar-se, o chão a fugir-lhe debaixo dos pés, tal como o convés do enorme Drakkar voador, e eis que pelo seu escuro interior se sentiu desaparecer, como nas profundezas do imenso oceano do sonho da noite anterior. Não guardou qualquer memória dos acontecimentos seguintes ao seu desmaio. Soube mais tarde que esteve duas horas sem recuperar os sentidos. Duas horas da sua vida que lhe foram roubadas naquela manhã que jamais esqueceria.
Alguém a transportou até ao seu quarto, na sua cama a deitou, a vigiou, e por ali aguardou que acordasse para lhe poder dar conta do que, afinal, tinha acontecido. Nem Gamélia, durante estas horas de súbito desaparecimento da alma, lhe deu a companhia desejada. Se tivesse já a mágica caixa com o seu nome em letras de puzzle gravadas, dar-lhe-ia uso para saber tudo o que se passou nessas horas, qual a razão da misteriosa situação que lhe provocara o desmaio.
As tias estavam na cabeceira da cama, aguardando pelo doloroso acordar de Alzira, para lhe comunicarem a funesta novidade. Lembra-se dos seus rostos carregados de dor e de lágrimas. Lembra-se das frias mãos que lhe amparavam as suas em trémula ligação. Lembra-se das escuras e sombrias cores com que lhe apareceram vestidas e dos negros véus que lhes abrigavam os rostos. Recorda-se que não foi necessária qualquer frase, conversa, sílaba ou movimento dos lábios para perceber que sua mãe não fazia já parte deste Mundo. Alzira tinha ficado órfã de pai e mãe no curto espaço de um ano. Restavam-lhe as gémeas tias e a avó Matilde que a tudo ia resistindo com a força de um rochedo granítico lá longe, no Brasil. Sentiu que jamais seria quem até então tinha por ali crescido e se feito moça. Este trágico acontecimento não lhe permitia outra saída que não fosse a de honrar a imensa coragem dos Sousa Bessa, de quem se sentia herdeira e fiel depositária da corajosa linhagem que sempre os caracterizara. Mas neste momento as forças ainda são escassas, e deixou-se sentir ali deitada mais uns instantes, só mais uns breves eternos instantes, como se o colchão fosse nuvem branca nos céus deste Verão, soprada por doce brisa ao som da paixão segundo São João de J.S. Bach.
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Coisas de bandulho


93.


- O que é que aconteceu? Como se dão as correctas honrarias a estes exercícios de descomunais reais dimensões?
Os dias são agora momentos de longos e cavalheirescos repastos. Usam-se as mãos como talheres, tudo o que se apresenta para o manjar deve ser provado, saboreado, mastigado nas vezes da real etiqueta, nem mais nem menos do que aquelas que El rei decide, com atitude sensata, no início da refeição. Mesmo com os negros dias de peste e fome de que se tem vestido a vida na cidade, a ocasião proporcionada pela inesperada visita de tão nobres cavaleiros Templários, seu mestre Fernando e a singular figura do pequeno jovem Gonçalo, deram motivos a El rei para dar uso das correctas formas de recebimentos às nobres figuras do reino. Acrescido a este facto, que só por si seria já suficiente para proporcionar recepção de idêntica qualidade aos Templários do reino, a oferenda com que El rei Dom Sancho I selou este pacto de proporções divinas, ainda mais o justificava.
Regras de etiqueta deviam ser cumpridas. Nada de bruscos movimentos, ruídos exacerbados ou divertimentos de guerreiras dimensões. Grandes, imensas as quantidades de magníficas iguarias que aqueles cinco dias de provimento e deleite das coisas de bandulho trouxeram às cansadas cavaleiras figuras. Estes dias gloriosos não serviam só para matar o tempo. El rei praticava nestes encontros os seus dotes de trovador poeta, com leituras e práticas de cantorias por trovadores que animavam os finais de tarde e a investida da ceia, que se prolongava noite bem dentro, até os estômagos quase estourarem com todos aqueles culinários prazeres. As mesas iam servindo de cama, as roupas já nadavam em molhos, vinhos, e toda uma confusa mistura de outras cores de diversas proveniências, como peças de caça, muitos javalis bem temperados, perdizes, lebres, faisões, enchidos de carnes de todas as espécies, patos dançando depois em arroz de fessura, carneiros e cabritos, nacos inteiros de boi embebidos em vinho tinto, galinhas, frangos, pães de cevada, centeio e castanha, muitas couves, aboborinhas, cebolas, espinafres, sopas de deleite suprema temperadas com bons azeites, alecrim, manjericão, mesas carregadas com ovos que formavam torres, uns cozidos outros ainda crus, que provocavam misturas de odores azedos ao seu redor, compotas e muito mel para consumir até à exaustão. Um dos serões dedicaram ao pescado, quer de água doce quer vindo dos marinhos ares das praias das redondezas. Tudo carregado de sal até ao topo. El rei deliciava-se com os grelhados sabores do peixe. Considerava as suas tenras carnes brancas criação sublime. Muitas e muitas cestas com fruta de época. Peras, imensas laranjas, maçãs, cerejas, que El rei adorava misturar com as sopas de tripas de vitela que sorvia de malgas feitas de prata. Gorduras até à exaustão serviam os dedos daquele manjar. Banhas de porco, toucinhos, presuntos crus e manteigas de variadas proveniências. Também os queijos, morcelas divinais, tigeladas servidas no interior de enormes melões e melancias cortados em metades, biscoitos de mel e azeitonas, serviam para acompanhar os bailados e outras danças manejadas com malabarismos de fogo que algumas cortesãs e outras donzelas fizeram o favor de a todos apresentar.
Estes festejos caíam muito mal ao bispo e às demais importantes figuras religiosas da cidade, pois neles se antecipavam e praticavam os pecados da gula e outros bem mais carnais e inseparáveis, que de maneira pouco misteriosa, a eles se acabavam por juntar. Essas questões nada incomodavam El rei, nem destes assuntos falava com os responsáveis do clero. Os homens guerreiros e os que carregam às costas o colossal peso da sempre obstinada missão de comandar os destinos de um reino, não se compadecem com esse tipo de pieguices. Do alto do seu trono, já bem bebido, comido e faustosamente servido das carnais delícias de sua amantíssima D. Maria Aires de Fornelos, ia dela arrecadando o que para si eram merecidos reais favores, e assim continuava Maria Aires, mágica e divertida, cheirando a guisado de alfazema, e aos reais desejos dando concedimentos e libidinosos amparos, como se fossem eles terrível doença real.
No final dos cinco dias de festim, aquelas almas feitas tapete humano descobriram-se adormecidas e amparadas pelo fresco pavimento do salão. Estavam abrigadas desta viagem, num lento acordar que a alguns chegou a relembrar as dores sentidas quando as mães os pariram e assim os confiaram de presente ao Mundo.
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domingo, 20 de julho de 2008

Perpetuados ecos de temor


92.

Após terem deixado a mão decepada como mensagem de horror na entrada do mosteiro de Lorvão, dando cumprimento às mais recentes ordens de Raimundo, ocultaram-se em seguida na protecção do denso arvoredo que o circundava. Estes seus zelosos serviçais tinham ordens para aguardarem, e confirmarem, a descoberta do objecto por parte de Dona Teresa.
- Eu por mim matava-a já! Mas primeiro, dava-lhe conta das vontades com tamanha gana, que iria suplicar por mais divertimento. Morreria com o corpo carregado de prazer. Era capaz de lhe trazer os cabelos como troféu e o resto das carnes boas, daria de presente ao chefe, como prova da minha lealdade!
Afastando-se do seu colega de função, dando-lhe o espaço necessário para caber entre os dois a força de um golpe de maças, Faysal quase sucumbiu à vontade de lhe dar o uso devido. Rebentar com a cabeça vazia daquele desgraçado que até ali o acompanhara, seria uma mais valia que daria ao Mundo, tamanho é o lixo que lhe vai servindo as ideias.
- Faz apenas aquilo que te ordenam! Ninguém te pediu opinião sobre assunto ou processo. O querer que me vai dando formigueiro nos braços, mal o controlo! Não fosse Sabiano deitar-me fogo por te provocar a morte merecida, estarias já deitado nesse verde que te abriga o corpo com os miolos de fora! Palavra de Faysal! Agora cala-te e façamos aquilo que nos ordenaram sem agitação ou mais sobressaltos!
Após os iniciais momentos daquela cinzenta manhã se terem assim neste dia acordado, as primeiras monjas começaram a surgir no pátio que dava acesso ao verdejante jardim do exterior do mosteiro, junto à bonita paisagem que o rodeava, como símbolo da divina perfeição que dera origem à escolha daquele lugar para a sagrada construção. Não eram aquelas mãos nem aqueles olhos que deveriam dar conta do objecto que aguardava, bem divulgado, bem descoberto, as mãos e os olhos da filha do rei Dom Sancho.
Sabiano Raimundo tinha congeminado esta estranha estratégia para promover o terror na mais importante figura feminina do reino. Sabia que o pânico que tal descoberta provocaria rapidamente chegaria aos ouvidos do rei seu pai, pois Teresa lhe daria disso notícia. Essa mensagem seria sabiamente interpretada por Dom Sancho I como ameaça mortal, não só à pessoa de sua filha, como à sua própria pessoa. Assim o desejava Raimundo, só por sádicas e perversas vontades. Só porque assim as suas internas vozes o comandavam, continuando aquele passeio cruel pelas células do seu pensar. Só porque sentia nele o poder para o executar.
E eis que se avista, tranquila, no seu passeio matinal de oração e meditação, Dona Teresa Sanches, Tareja infanta de Portugal, pela vontade do povo. Sempre acompanhada de perto por duas noviças que, como ela, dedicam à manhã as primeiras orações. Tudo acontece por vontade de Deus. Sem plausível explicação, foram estas três figuras as que seguiram pelos caminhos que lhes deram conta do miserável presente. O horror com que contemplaram o seu conteúdo ainda se consegue fazer sentir nos ecos, perpetuados até à exaustão, pelas colinas circundantes do mosteiro em Lorvão.
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Um cãozinho de presente


91.


Vivia cada segundo daquele abraço como a mais feliz das sensações. O coração cheio de carinho, os odores de Castro sentidos como cheiro de jasmim, tão belo. Não é necessário dizer a uma criança aquilo que a faz sentir feliz. Elas sabem bem do que gostam e não se coíbem de o procurar, pedir, antecipar e desejar com aquele célebre brilhozinho nos olhos. Valorizam todas as suas acções como se fossem derradeiras, o que lhes dá essa mística aura de centralidade universal. Não lhes interessam viagens, exageros descomunais na demonstração de afectos, tantas vezes carregados de impurezas e falsas juras de amor, nem se preocupam com a procura da eterna beleza, pois carregam-na feita pureza nos seus frescos corações de crianças.
A mãe de Francisca não aguardava por tamanha aceleração de movimentos por parte da menina. Certo é que deixou de sentir a morna tranquilidade da mão da filha, que galgou num repente aquele espaço que a separava do seu negro amigo. E lá se entretinham os dois num imenso abraço de amizade carregado com as pilhas da satisfação.
- Eu bem que te estou fartinha de dizer que a Francisca iria adorar receber um cãozinho de presente. Está já tão crescida. Com toda a certeza que seria bem capaz de tomar conta de uma companhia deste calibre, sem que te estejas sempre a preocupar com matérias de limpeza e outras miudezas sem sentido.
A avó da menina já não era a primeira, nem a segunda, nem mesmo a terceira vez que abordava este assunto com a filha. Sabia bem como tem sido complicado a Esperança tomar conta da menina sozinha, e que encara esta vontade de Francisca como mais um encargo e preocupação com que acabaria de ter de lidar.
- A mãe sabe perfeitamente que esta questão está, por agora, completamente fora de qualquer hipótese! Eu bem sei o que me tem custado ver a menina sempre a falar deste assunto, e que deseja um cão, e que adoraria poder ter um amigo destes com quem partilhar brincadeiras, etc, etc, etc…! E depois? Quem fica com o bicho no dia a dia? Acha bem ficar um animal fechado num apartamento o dia inteiro? E mais as vacinas, os passeios da praxe, todos os cuidados com a alimentação, é só trabalho, não pode ser! Quem sabe quando Francisca crescer um pouco mais, quem sabe?
Mas a maneira como a filha demonstrava e deixava espalhado por Castro as carradas de carinho em forma de afagos, atingiram-lhe o coração com tamanha violência que as palavras que lhe saíram da boca lhe derreteram as muralhas defensivas da razão!
- OK! Concordo convosco! Ganharam! No próximo aniversário de Francisca trataremos de vez este caso! E não se fala mais nisso, não vá eu arrepender-me da ideia e dar já aqui cabo do assunto!
Os olhos da avó de Francisca brilharam felizes pela sensata decisão de Esperança, fazendo jus ao bonito nome com que a baptizou. Tomou-lhe em seguida o comando da mão e avançaram as duas em direcção a Francisca.
- Vamos, nada melhor para recordar este dia maravilhoso de passeio que tu ires dar agora mesmo a Francisca essa espantosa notícia! Nem irá caber em si de contente!
Castro olhou para as senhoras que se aproximavam. Sentiu nelas o feliz olhar das coisas simples, feito perfume. Lambeu mais uma vez a face rosada de Francisca, ladrou em despedida por duas vezes e afastou-se daquele trio de senhoras. Desta maneira mais familiar trataram daquele importante assunto sobre coisas de felicidade. O sorriso de Francisca, visto de longe, iluminou o mosteiro com as mais perfeitas cores da Divindade!
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sábado, 19 de julho de 2008

Desejo de esperançosos futuros


90.

Surgidas como mensagens secretas, as palavras de Gonçalo manifestavam a esperança e a confiança nos valorosos Templários do reino. Com eles foram assumidos e assinados compromissos sérios, ainda mais fortes e importantes, com profundo e histórico simbolismo. As garantias de efectivo apoio à figura de El rei ficaram assim seguras e reforçadas no incondicional apoio dos Templários chefiados pelo mui nobre mestre Fernando Dias, apelidado por Gonçalo de Arriconha como “o Defensor”.
A surpresa do encontro e desta secreta assinatura feito pacto indissolúvel caminhava agora para um ainda maior espantamento. Dom Sancho preparava-se para lhes provocar uma imensa emoção. Revelar-lhes algo para o qual nada os tinha preparado, nem mesmo os dotes extraordinários de Gonçalo lhe deram informação para o que seus olhos espantados e maravilhados começavam ali mesmo a vislumbrar. El rei retirara de um pequeno compartimento secreto existente por debaixo do imponente trono, que fizera rodar suavemente como que por artes divinas, em ângulo suave, uma caixa forrada a macia pele acastanhada. Estava protegida por um pano branco de textura rude, que manteve durante o pequeno trajecto em que a transportou suavemente, até a colocar com gentileza no centro da enorme mesa de carvalho que dominava a austera decoração do aposento. O único ruído que se adivinhava era o das copas das árvores que a brisa adocicada embalava junto às janelas das imensas paredes graníticas da sala. O tempo estagnou, brutal, com o peso e a intensidade do momento. Fernando Dias e Gonçalo de Arriconha trocaram entre si olhares cúmplices de divinos questionamentos. O rapaz duvidava de seus sentidos mas não queria que isso provocasse o desaparecimento desta ocorrência real como se fosse apenas um místico sonho divinatório. O mestre Templário assumia com o seu rosto já experimentado que estaria seguramente a poucos segundos da visão mais arrebatadora que jamais a sua vida de fiel homem de Deus lhe proporcionará em fé e em divinas sensações. Os seus olhos viraram-se novamente para o centro da mesa. Os gestos que Dom Sancho ia desdobrando com rigor, retirando a protecção feita tecido do cúbico objecto, eram por eles bebidos em tranquila meditação.
Ali estava a caixa já sem pano, só a forma protectora do sagrado conteúdo agora adivinhado por todos. El rei mantinha na sua mão direita a chave imensa que traria à luz da cena a revelação do conteúdo da caixa. Estava a instantes de divulgar todo o simbolismo transportado no objecto que, pela segunda vez desde que ali secretamente o resgatara, iria ver em paz a luz daquele encontro. Mostra agora o fecho de bronze que engole lentamente a longa chave de igual metal. A mão do monarca treme de forma muito pouco perceptível. Só mesmo ele a esse detalhe deu menção. Um ruído mecanizado, logo seguido de um forte estalido, outro ruído igual ao primeiro, novo estalido de sonoras proporções. A mão firme de El rei abriu a pequena porta do secreto objecto protector para a direita. Seguidamente, deu igual andamento mas para a esquerda, na outra porta, que ainda tapava o objecto guardado no seu interior.
- Perante vós apresento a Cruz Sagrada do Senhor. Glória seja feita aos seus dias na Terra e no Céu! Santificados todos aqueles que na sombra da sua Divina protecção crescem em Graça Divina!
Ali se encontrava a imagem do Cristo crucificado, perante todos, tão artisticamente esculpida. Aos pés da figura Divina, um fragmento do Santo Lenho. Ali estava diante destas humanas testemunhas a cruz ornada com as pedras do Santo Sepulcro. Ostentava outras pedras do Monte Calvário. A imagem da Virgem Mãe, de pé, junto à Cruz, acompanhada pela imagem de S. João. Apoia-se toda esta acção numa pedra do Calvário, ainda sobreposta por uma pedra do túmulo do Senhor, com uma relíquia do Santo Lenho, embutida, em forma de cruz. Exactamente como a descrição das escrituras que Gonçalo tinha escutado, em segredo, aos religiosos em Braga.
As três personagens permaneceram estáticas e em silêncio, uma pequena eternidade. A grandiosidade e religiosidade do Sagrado objecto, a percepção da espiritualidade contida na sua concepção, assim lhes determinava.
Gonçalo só agora dera verdadeira conta das razões pelas quais fez referência desta Sancta Crucis nas conversas mantidas com mestre Fernando Dias em Ferreira. Sentira em si forças intensas que o instruíram para essa vontade.
Mestre Fernando só agora dera verdadeira conta das razões pelas quais sentiu imenso apelo na tentativa de resgatar Ferreira das bárbaras e cruéis matanças do bando de assassinos de Sabiano Raimundo. Assim encontrou Gonçalo, que nele fez destino e protecção. Sentira em si forças intensas que o instruíram para essa vontade.
El Rei Dom Sancho I só agora dera verdadeira conta das razões pelas quais, secretamente, manteve esta Cruz resguardada e a salvo de todos os possíveis inimigos do reino. A sua exposição perante tão singular grupo de homens estava já marcada no seu destino. Sentira em si forças intensas que o instruíram para essa vontade.
- Não podemos deixar de sentir nossos corações bater mais fortes, renovados em fé. É pela rara contemplação de ícone tão esplendoroso que nos conseguimos descobrir na nossa incomensurável pequenez. É importante que seja devidamente protegido e salvaguardado de todas as tentativas de usurpação, roubo, destruição ou de qualquer outra que venha a surgir mal se tenha notícia de paradeiro ou destino de tão valioso documento do Cristianismo. A minha vontade é que seja entregue a vós, verdadeiros Templários, fazendo de seu mestre aqui presente fiel depositário de tão importante tarefa. É para mim muito importante que as quezílias e intrigas que todas os diferentes cleros e bispados deste nosso reino de Portugal serenem. Tal não se tem revelado fácil tarefa, nem serei eu que intercederei para que se entendam essas comadres de desavenças, pois estéreis são os domínios desses ditosos senhores da igreja. Aqui na nossa cidade, por exemplo, são já célebres as discórdias entre os cónegos do mosteiro de Santa Cruz e os da Sé de Coimbra. Remontam já ao reinado do senhor meu pai. Foi assim que esta relíquia acabou por me ser consagrada. O bispo de Coimbra, à altura de mil cento e oitenta, aproximadamente, dera conta de estranhos roubos para os quais só encontrava uma explicação. Eram os próprios padres e religiosos que estavam na mira de Dom Miguel Salomão como sendo, seguramente, parte envolvida nesses processos de criminosos desaparecimentos de cousas sagradas e não sagradas. Honra seja feita à inteligência e lógica de tal figura. Espalhou entre todos os religiosos, com o aval de meu pai, a notícia de que o importante objecto que aqui vos apresento tinha também ele desaparecido, no meio de tantos roubos e outros misteriosos desaparecimentos da altura. Data desses dias a construção secreta de onde retirei, com todo o cuidado, este expoente sagrado de humana criação divina. Só no seu leito de morte, passados pouco mais de cinco anos sobre estes acontecimentos, o senhor meu pai me deu relato destes assuntos, me entregou as chaves dos secretos locais e me deu explicação de como lhes ter acesso. Confidenciou-me que os operários a quem destinou a tarefa de construção dos secretos compartimentos morreram vitimados por um estranho acidente de trabalho no dia imediatamente seguinte ao da conclusão da tarefa. O bispo Miguel Salomão e meu pai engendraram desta forma os meios para colocarem a salvo tão valiosa relíquia.
Gonçalo de Arriconha e Fernando Dias permaneciam atentos a todos estes relatos de Dom Sancho, sorvendo estas importantes informações com a reverência e solicitude necessárias. E continuou ainda o rei a dar sustento ao caudal destas notícias.
- Como podeis calcular, é importantíssimo que esta relíquia seja salvaguardada e protegida pelas mais valorosas forças do meu reino, as mais justas e fiéis, as mais sérias e ponderadas, as mais religiosamente respeitadoras destes segredos. E disto vos faço também confissão, pois aqui connosco se quedará. Tenho receio, pois sei bem daquilo que são capazes as frágeis almas dos homens. Mesmo as vossas, em quem deposito o futuro desta Cruz. Deverão transportá-la, com os cuidados que me pouparei de recomendar, até ao mui nobre castelo de Tomar. Não poderei esquecer jamais aquilo por que passei no ano de 1190. Desde o cerco do emir de Marrocos Ya´qub al-Mansur a Santarém, com a minha presença, tendo depois avançado e destroçado Torres Novas e Abrantes, com intenções de o mesmo processo aplicar a Tomar, que a minha vontade sempre foi a de doar à vossa ordem dos Templários este objecto sagrado. Ao fim de seis dias conseguiram manter ainda invicto o castelo, com a população no seu interior, e iam infligindo tremendas baixas aos mouros, principalmente quando estes conseguiram forçar a porta do sul e entrar aos milhares na cerca exterior. Contra-atacaram e repeliram os islamitas com tal ímpeto que a porta do assalto e da fuga dos inimigos se baptizou como Porta do Sangue. É do homem que tão bem nós conhecemos, caríssimo Mestre Fernando Dias, a quem ficamos a dever a honra e a glória desses únicos momentos, conforme deixarei bem vincado nas palavras que acompanharão a Santa Cruz:
- Na era de 1198 (1160 da era de Cristo), reinando Afonso, ilustríssimo rei de Portugal, D. Gualdim, mestre dos cavaleiros portugueses do Templo, com os seus freires, começou no primeiro dia de Março a edificar este castelo, chamado de Tomar, que, acabado, o rei ofereceu a Deus e aos cavaleiros do Templo.
- Honremos agora a Vossa ordem com a oferta de símbolo tão sagrado, para que vos possa glorificar, e a todos nós fazer subir em apreço no reino sagrado de Nosso Senhor Jesus Cristo, Amén!
E em oração contemplativa, com as mãos unidas no desejo de esperançosos futuros para a santa missão do que os aguarda, mantiveram a força corajosa das suas súplicas. Assim possam estas importantes figuras do Lusitano reino Cristão ser ouvidas no distante reino de Deus Nosso Senhor.
Amén!
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Gigantesco tigre


89.

Sem as chaves douradas não se consegue abrir a bela caixa de Alzira. De regresso à sóbria realidade, não se conformava com a transformação agora acontecida. Na sua ideia surgia ainda a Tia Berta com imensas asas nas costas, feita anjo, a avançar serena na sua direcção, para depositar nas suas mãos tão precioso tesouro.
As manas amparavam-se no caminho de volta a casa, andando Berta com todo o cuidado para evitar ferir os pés descalços. Vão segredando pequenos mistérios. Talvez a estranha derrapagem emocional da sobrinha seja mais forte do poderiam imaginar à primeira vista. Alzira sente vontade em deixar que as gémeas lhe ganhem algum avanço, mas algo lhe diz que será mais sensato ir ter com elas para que não cresçam em tamanho maiores desfavores na análise a seu juízo. Quanto mais se fala sobre estranhos assuntos mais crescem desmedidas observações sem sentido que, privadas de razão, provocam feridas mais profundas que afiadas lâminas de longas espadas de combate.
- Tias, esperem por mim! Deixem-me ajudar também. Contem comigo!
Alzira tirou os sapatos que Berta trazia na mão direita, deu-lhe o braço esquerdo para apoio ao que a tia agradeceu prontamente. Amparava-se com delicadeza nos braços da irmã e da sobrinha. Olhava atentamente para o solo para evitar pisar afiados galhos, pedras pontudas, silvas ou qualquer pequeno obstáculo cortante que lhe pudesse ferir os pés.
- Mas que coisa! Vai sair com certeza no jornal de amanhã. Tia tolinha descobre maneira trágica de destruir os sapatos. Saíram disparadas em seu auxílio a sua bela sobrinha e a gémea mana, que a carregaram em ombros até à salvação.
Alzira sorriu! Rosarinho deu conta da história deste sorriso e continuou a crónica da irmã:
- Durante o percurso da salvação foram raptadas por um gigantesco tigre em forma de gente que obrigou as senhoras a trepar-lhe para as costas, desaparecendo na direcção da misteriosa selva da quinta dos Sousa Bessa.
Mais sorrisos, quase sonoras gargalhadas, se iam agora acrescentando às palavras divertidas da Tia Rosarinho. Também Alzira ficou carregada de vontade em aligeirar o momento com a continuação do relato, acrescentando-lhe mais um temperado momento de literária inspiração:
- Com a vida em risco, as valentes heroínas saltaram-lhe para a frente, usaram o seu rabo como corda para lhe apertarem o pescoço, puxaram-lhe as orelhas e carregaram-lhe a língua com a mais picante das pimentas. Festeja-se hoje em Santo Tirso a vitória da tenacidade e valentia destas espantosas senhoras, abençoadas pelo poder secreto dos mágicos sapatos partidos da Tia Berta!
E acabaram as três em gargalhadas retemperadoras, continuando naquele desusado caminhar em direcção a casa, imaginando as imagens fotográficas que o repórter de tamanha façanha irá utilizar para ilustrar o acontecimento.
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sexta-feira, 18 de julho de 2008

Os incensos do deleite


88.

Fazia calor. Os Templários apostaram que a conversa entre El rei e Gonçalo não duraria mais que uma pequena mão cheia de minutos. Encontravam-se algo desorientados pois desde a tarde do dia anterior que os dois não arredam pé das conversas que os mantinham desaparecidos. Apenas Fernando Dias considerou normal esta demora. Na sua cabeça estava já trilhada a verdadeira leitura da personalidade de Gonçalo de Arriconha. Anda por este mundo como espírito da luz. Escreve o destino que pisa com a certeza de um dos anjos do Senhor. Não permite mal entendidos. Do seu inabalável castelo de ideais saltam, esporadicamente, as verdades que por lá mantém escondidas apenas com a permissão da sua genialidade.
Durante este interregno apareci, atordoado pela experiência da noite passada. Trazia em mim escrevinhadas as doces melodias sentidas e os cavaleiros Templários facilmente fizeram delas a correcta interpretação, montando com facilidade a história que contavam. Olharam para o sangue que desenhava, já seco, um percurso ondulante pelo meu pescoço, desde o que faltava da minha pequena orelha.
- Homenagem te seja feita rapaz brioso. As donzelas da noite já te granjearam a experiência da carne. Não mais voltarás a ser quem foste! E que lembrança te deixou marcada em ti, física e em escultura da alma. Cumpriram-se as glórias da tua juventude ó rapaz. Já és bem homem agora, não te esqueças disso! As luas nem sempre são de feição, deves aproveitá-las quando estão cheias!
Com estas palavras, Fernando Dias captou a força de uma noite no meu acordar desgrenhado e inocente. Transformei-me em rubras feições, despido da inocência já perdida! Gratidão seja por mim devida às doces e escondidas humanas comoções cujos terrenos prazeres assim se apresentam, sem alertas ou iniciáticos avisos.
Transportava os incensos do deleite bem agarrados ao corpo, e disso tinha perfeita consciência. Regressava, através do seu melodioso chamamento, às intensas tarefas de prazer a que me entregara nessa noite, só de as sentir em odores tão profundamente cravados em mim. Relembrava todas as vagas de intensa paixão que a menina me fez rebentar em branca espuma nos seios do seu sentir. As labaredas incendiavam-me os dedos e as mãos deixava tranquilas, bem seguras pelas fortes guardiãs da minha amante, que me manteve sempre subjugado nesse doce e húmido cativeiro de sedução. Tivesse eu capacidades de escriba ou de expositor de relatos de fé, e este acontecimento singular não deixaria apenas guardado em escultura das minhas memórias. Palavra de Castro, pajem em honra e devoção do grande mestre Templário e meu senhor, Fernando Dias.
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Actus Fidei


87.

- Estavam todos a sentir o cheiro do medo, como se fantasmas de gigantes horríveis pairassem sobre si vindos das profundezas do campo de batalha. Mesmo os mais hábeis e experientes de todos os grandes generais e cavaleiros do reino traziam na pele e na voz marcas desses receios. Prometiam tanto e tanto que o somatório de tantas preces daria para ressuscitar todos os guerreiros desaparecidos das grandes batalhas da história da Humanidade. Muitos barravam as faces com a terra do campo de batalha ainda sem o sal do sangue que sobre si será semeado. Nos momentos que antecipam esses combates e contendas ferozes, as humildes almas que apeadas aguardam as ordens para o início do embate, abrem as portas para as primeiras sanguinolentas hostilidades, despem-se mentalmente das suas terrenas sensações, saram as cicatrizes de todas as carregadas e dolorosas lembranças de vida, encontram as imagens mais poderosas que as crenças lhes comandam e despedem-se da sua humana vulnerabilidade. Mergulham desta forma nas rubras águas dessas históricas batalhas, acreditam nas forças supremas do herói em que se transformam, acreditam que o destino das suas santas missões assim lhes trará a glória dessa divina luz. Defendem o seu pesadelo até as lágrimas de paixão e dor se misturarem com as dos horrores e das privações que os esperam. Permanecerão encarcerados nestes territórios tenebrosos, nas catacumbas mais horríveis e solitárias que a alma de um ser humano pode suportar. Alguns atravessam em glória esse corredor de esperançosa salvação. Do lado de lá da batalha retiram do coração toda a destruição que nele carregam, beijam as armas sagradas da batalha feitas de terra e de sangue, julgam-se imunes e portadores de lembranças salvadoras. Sentem-se perigosamente capazes de dar estaladas nas faces da morte, sem que esta os esgadanhe, prenda, ou retalie. Ficam regenerados com tão notável façanha. Vão mudar o rumo dos acontecimentos do Mundo através deste poder colossal e voltam a embrenhar-se no seio do combate até que apenas se detenham em pé os bem-aventurados heróis triunfantes. Espadas pesadas e cintilantes misturam-se com machados, bestas, setas, cheiros e odores a medo, sangue, fezes, mortes frescas, suores e gritos de fúria, de padecimento e de incitamento, animais velozes e pesados que esmagam corpos com o peso de suas patas, que por eles se despedaçam quando atingidos mortalmente. O cheiro a queimado pelas violentas e modernas maneiras de dar conta das tropas inimigas, elmos ferrugentos e pesados, que ao invés de proteger quem deles faz uso, tornam-se carrascos cruéis por via da temperatura infernal que alcançam no pico do calor destas planícies de contenda. Encontram-se até guerreiros das mesmas partes a darem conta da vida de companheiros de luta, pois a cegueira dos actos de matança torna cinzentas as definições do inimigo. E isso acontece mais vezes do que se poderia supor. Irmãos de armas e de combate acabam com a vida dos seus por engano, ébrias desconfianças e devaneios infernais, que só quem passa por estes assuntos de batalhas e delas regressam vivos, sabe o que se está aqui a apreciar!
O rei Dom Sancho intervalou o seu relato com o olhar carregado de sentida emoção para logo de seguida lhe dar continuação.
- Nestes passeios de guerras e de batalhas passadas, muito da alma deste rei que aqui tem a dar-lhe ouvidos, se construiu e se embruteceu em silêncio. Como deseja que um coração tão destroçado e já tão bárbaro na construção de seu carácter lhe possa dar o justo crédito desejado, pequeno Gonçalo? Sei bem qual é o seu dono! Já tive essa idade e com ela me transportou meu saudoso pai nas garupas de batalhas por ele travadas, para me dar a consistência e moldar a devida formação guerreira. Sabia muito bem Dom Afonso quem lhe herdaria as futuras empreitadas de construção do reino de Portugal.
Gonçalo de Arriconha verificava e sorvia cada palavra desta inspiradora confissão de El rei Dom Sancho I como dádiva do Senhor. Deixou depois que o silêncio dedicasse ao espaço do encontro necessário adoço retemperador.
Passaram assim os minutos com Gonçalo em oração e El rei expectante. Saído depois deste silêncio feito paz, o jovem ergueu a voz que guardara dentro da sua pequena figura de gente, abriu as mãos à sua frente com as palmas viradas para o céu, joelhos dobrados e seguros pelo pavimento do salão e cantando, rezou para Dom Sancho um perfeito Actus Fidei:
-Dómine Deus, firma fide credo et confiteor ómnia et síngula quae Sancta Ecclésia Cathólica propónit, quia tu, Deus, ea ómnia revelásti, qui es aetérna véritas et sapiéntia quae nec fállere nec falli potest. In hac fide vívere et mori státuo. Amen.
Acto de fé :
Senhor Deus, creio firmemente e confesso todas e cada uma das coisas que a Santa Igreja Católica propõe, porque Vós, ó Deus, revelastes todas essas coisas, Vós, que sois a eterna verdade e sabedoria que não pode enganar nem ser enganada. Nesta fé, é minha determinação viver e morrer. Amén ..
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quinta-feira, 17 de julho de 2008

Intensas sensações de felicidade


86.

Castro, assim que sentiu o motor do velho Taunus a acabar de falar, abriu a porta da viatura com mestria assustadora e correu feito doido em direcção à vontade de se aliviar. Quem poderia saber como tinha adquirido aqueles dotes quase humanos de dar conta de fechaduras e de outras pequenas alavancas ou interruptores, com os quais se entretém na descoberta dos seus usos. Chegaram aqui estes amigos, onde o Mosteiro monumental lhes deseja as boas-tardes do alto do seu gótico avassalador. A dimensão humana das coisas ganha aqui outra relevância. As palavras adormecem, impotentes, perante tamanha façanha arquitectónica. Quando se trata de tentar descrever tudo aquilo que a vista alcança prendem-se as vontades e dotes literários, esquecem-se os adjectivos, que serão sempre toscos e incorrectos ao correrem esse risco.
António Júlio preparava-se para ligar mais um cigarro, admirando a obra, descansando a mente e dando frescura às ideias. Prepara o seu “cahier” para o regresso às palavras escritas. Novamente a grandiosidade e peso histórico destes locais chamam pelos dotes revigorados do escritor. Não se fazendo rogado, reconhecendo já quase em si o António Júlio de outros tempos, detentor das vontades e dos improvisos sonantes que agarra nas folhas do seu querer. E, contudo, sentiu aquele escorregar da direcção do seu velho Ford a levá-lo quase de volta ao caminho do abismo. Sem o desejar, de quando em vez, continua a dar crédito às vozes que lhe chegam do lado de lá do problema. Dizem-lhe que se encontram na porta de entrada da nova morada de Alzira, e que o podem fazer lá chegar, sem grande esforço. Mas Tó sente-as cada vez mais mentirosas e lá as vai repelindo, com as que descobre dentro de si, e com as ajudas deste seu novo companheiro de armas. Estão condenados a caminharem por vias de destinos mais comuns, fazendo agora história a meias.
Castro passeava pelas redondezas do mosteiro, cheirando e sentindo as cores e os seus odores que lhe iam dando informações das suas histórias bem antigas. Neste mosteiro não conseguia antecipar ou vislumbrar as imagens que obteve, com clareza assustadora, em locais anteriormente por si já percorridos. Era já ponto assente que as suas memórias caninas lhe provocam estranhas partidas de outras épocas e outras vivências, vividas enquanto gente e não animal. Imagens de vítimas e de outras estranhas cousas que não sabia descrever, nem por cheiros, nem através de qualquer outra forma ou sensação. Apareciam-lhe sem aviso, assustando-o mais pela forma do que pelo conteúdo das estranhas informações. Dificultavam-lhe tantas vezes o correcto discernimento da realidade e provocam-lhe gélidas sensações desde a nuca até à ponta do seu felpudo e negro rabo.
Não havia muita gente a passear àquela hora pelas cercanias do mosteiro. Alguns turistas iam-se entretendo a realizar as reportagens fotográficas da praxe junto à estátua equestre do Condestável. Outros preocupavam-se com as aventuras e as brincadeiras irreverentes das crianças que trazem à sua guarda. Outros procuram companheiros com quem partilhar restos de passeios ou de férias em conjunto, para aliviar as solitárias andanças. Outros apenas deambulam por estas paragens sem aparente função. Aceleram para o resto do dia que se desfaz já em despedidas, adivinhadas na temperatura da luz que veste este cenário deslumbrante.
Castro lembra-se vagamente do perfume macio e infantil que as suas narinas fixaram neste panorama de final de tarde. Vai revistando a paisagem, passeando as patas pelos passeios e outras saltitantes paragens que percorre em acelerada corrida de investigação. E como se lhe tivesse prometido este encontro, que só podia ter sido marcado por magia, ali estava a menina do chapéu verde, pela mão da sua mãe, acompanhada de outra figura feminina mais idosa. As três gerações de senhoras tinham acabado de sair pela pequena porta lateral do mosteiro, acabando a visita ao histórico local. Ficou ali Castro quase atónito pela coincidência deste terceiro encontro com a linda menina de chapéu cor de alface. Não se conteve e ladrou com quanta força lhe deram as goelas, sem evitar um estridente e bem audível ruído que ecoou por todo aquele lugar como aviso dos céus.
- Estou aqui! Afinal aquele adeus no jardim mais não foi do que um até já!
Francisca não percebera imediatamente que aquele ladrar furioso era do conhecido cãozinho guloso que lhe fizera companhia naquela partilha do saboroso gelado no parque verde, junto à casa de António Júlio. Quando deu conta da proveniência do sonoro cumprimento, largou a mão tranquila da progenitora, olhou para a mãe com um largo sorriso no rosto e avançou para Castro com a vontade de lhe deixar marcado no corpo a enorme satisfação pela surpresa do encontro.
- Querido cãozinho preto, és mesmo tu! Moras aqui por perto ou também andas a passear com a tua mamã? És tão simpático! Gosto muito de ti!
E sem necessitarem de quaisquer ordens ou superiores autorizações, entregaram-se os dois a um longo e intenso abraço de verdadeira amizade.
Nos seus corações ficaram para sempre esculpidas as intensas sensações de felicidade que estas pequenas grandes maravilhas da existência provocam na vida de quem as usufrui.
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quarta-feira, 16 de julho de 2008

A atonia dos dias vulgares


85.

A tia já tinha sumido bem alto, ocultando-se nas perfeitas nuvens brancas do céu. Que seja verdade, apesar das hipótese serem remotas, a história que as tias gémeas lhe contavam quando era pequena boneca em suas mãos. Segundo elas, as gémeas são uma espécie muito rara de anjos. Na altura em que temos de decidir se desejamos nascer anjos ou pessoas, alguns de nós ficam muito divididos quanto à escolha a tomar. Gera-se uma enorme agitação da qual, felizmente, não se guardam recordações pois são muito penosas. As células ganham vida própria, digladiam-se, procuram cada qual levar a sua avante nesta contenda brutal. Quando as forças de cada vontade acabam por se igualar em dimensão e determinação, geram-se gémeos, alguns verdadeiros, outros falsos, mas por motivos de igual origem.
Alzira ainda não tinha conseguido, até esta data, descobrir qual das duas tinha optado por ser anjo ou pessoa. Agora que ficou a conhecer Gamélia, já meditou nos motivos pelos quais, quando as suas células foram confrontadas com a dimensão brutal da escolha, optaram por seguir o caminho da humana existência. Dessa escolha nada resta nas nossas memórias, por vias das dolorosas cicatrizes deixadas como marcas nas células que acabam por perecer. Somos, afinal, aquilo que não desejámos abandonar, isto, claro, no que aos gémeos diz respeito. Mesmo aos que acabam por ser em número bem superior ao das suas tias, que são raros, mas que existem. Trigémeos e quádruplos, ou ainda mais, são o resultado de dúvidas bem profundas e vincadas. Lutas titânicas que aguardavam por resolução e que acabaram por resultar em fracassadas guerras com empates gigantescos, dando origem a esses fenómenos surpreendentes, raros mas verdadeiramente surpreendentes.
Olha serenamente as nuvens lá no alto. Tenta perceber que destino tomou a tia Berta. Deixou de conseguir suportar a intensidade da luz solar que se adivinhava por detrás de tanta brancura. Levantou a mão direita e o braço ajudou-a a tapar os olhos, que cerrou para assim se proteger da força do astro rei.
- Alzira! Alzira! Mas o que estarás tu a fazer assim especada a olhar o sol de frente? Faz mais de dez minutos que estou à vossa espera junto do portão do vizinho António. O cão que lhe guarda a casa parecia louco quando me viu chegar em tamanha correria. Mas afinal de contas, onde está a Berta? E tu, continuas feita tontinha a olhar para o céu! Mas por acaso estarão todas a ficar doidinhas? A tia Rosário, com as faces carregadas de um rosa acolhedor, parecia ter aterrado num planeta distante, onde os seus habitantes manifestam estranhos hábitos de acolhimento perante novos descobridores.
Por que terá sido a tia Berta a escolher ter permanecido anjo em forma de gente? Das duas tias, seria aquela de quem menos esperaria tamanha audácia. Se me dissesse a tia Rosarinho que ia agora levantar voo, só por instantes, só para não se esquecer como é maravilhosa a sensação de usar as asas com que o destino lhe pintou as costas, não seria nada que eu não estivesse secretamente à espera. Mas a tia Berta? Como foi possível? Correu, levantou voo de forma espantosa e desapareceu veloz por detrás daquelas nuvens ali em cima, igualzinha a Gamélia!
Os arbustos à sua frente começaram lentamente a dar indicação de que alguém se escondia por detrás deles. As alvas canelas da tia Berta disso não deixavam motivo para dúvidas. Rosarinho pegou Alzira pela mão, puxou-a delicadamente na direcção do arbusto que escondia a irmã, ajeitou o pequeno pendente de ouro e diamantes que trazia ao pescoço, herança da avó Matilde, como que a invocando para a tarefa que se adivinhava. Baixou-se, apontou para as pernas da irmã e, sussurrando, virou-se para a sobrinha dizendo:
- Ali está a Berta! Não voa, não tem asas, apenas se esconde como se fosse novamente criança. Este calor da manhã talvez esteja a provocar alguns desajustes e pequenas alucinações, nada de grave. O que achas Alzira? Vamos agora chamá-la e dizer que a descobrimos?
A pequena senhora continuava a julgar toda esta cena como realizadora cinematográfica. De dentro do arbusto saiu Berta com um objecto luminoso das mãos. Olhava para ele com estranheza, pois a forte luminosidade provocara-lhe encantamento e motivos de alegria. Tinha encontrado a caixa mágica de Alzira. A mesma que Gamélia lhe desejara entregar no sonho que tinha tido. O nome lá estava, escrito com peças coloridas de um bonito puzzle, embutido na tampa da caixa mágica. A tia Berta caminhava na sua direcção, segurando o presente nas mãos com todo o cuidado para o colocar, seguro, nas mãos de Alzira!
- Olha, com tamanha correria e precipitação, escorreguei, tropecei numa raiz que ali estava ao pé do muro, e o salto do sapato partiu-se. Vou ter de ir assim descalça até casa para calçar os azuis e brancos que trouxe de reserva.
A magia cinematográfica dissolveu-se da cabeça da realizadora, e fez-se nesse mesmo instante sóbria realidade. Afinal o que Berta trazia seguro nas mãos era o seu sapato de salto quebrado. Nem Cinderella sofrera tamanha desilusão quando perdeu a cristalina forma que lhe vestira o pé após o baile real. Alzira não tinha percebido como é que aquele anjo tinha descido tão rapidamente para dentro do arbusto. Não tinha percebido como é que a bela caixa de Gamélia se tinha evaporado e se tinha rapidamente transformado em sapato estragado de tia Berta.
Afinal de contas, o poder contido na mente de cada um de nós é bem mais forte e perturbador do que aquilo que à primeira vista poderíamos supor. É um poder imenso, gigantesco. Cabe a cada pessoa dar-lhe sustento ou deixá-lo definhar na atonia dos dias vulgares.
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Palavras de incentivo



84.

Desde que transportam o conhecimento destes caminhos de morte e assassinatos inconsequentes, o bando de Sabiano Raimundo alimenta-se dessa destruição, com calma, com a ponderada decisão das ondas cerebrais que comandam as acções do seu chefe. As mortes infligidas a duas mulheres grávidas serviram apenas para apaziguar as demências que Raimundo carrega em si. Os cavaleiros que o acompanham passaram por destinos onde, durante dias, não derramaram sangue ou provocaram vítimas. Raimundo parecia obcecado, apenas alimentado por uma cega ideia de atingir a capital do reino de Portugal e começar a presentear as reais figuras com assédios de terror, antecipando-lhes as torturas e as malfeitorias que cozinhava nos temperos das suas maquinações. As noites e os dias assim se foram passando desde Gandra, onde a mudança das suas insanas e sádicas atitudes atingiram um pico de perdição. Sabiano era amante da morte e dos seus terríveis desígnios. Abria-lhe as portas de par em par. Depois, já com elas escancaradas, envia para lá os desgraçados. É comandado por vozes que lhe vão dando continuadas ordens das profundezas do espírito.
Lembrara-se Raimundo da mão decepada que tinha arrecadado como lembrança daquela matança de religiosas figuras, lá mais a Norte. Deram-lhe tamanho prazer os rituais cruéis praticados na matança que infligiu que acabou por trazer consigo a mão de um desses caminheiros viajantes que, por trilhos de promessas e religiosas peregrinações, vão alimentando as fomes deste dragão incontrolável que transporta dentro de si.
Agora que se aventuram por zonas do reino bem mais controladas e que lhes criam maiores dificuldades na sua tentativa em passarem despercebidos, vão sendo mais demoradas as caminhadas e as formas como avançam no terreno em direcção a Coimbra. Avançam de noite e muito silenciosos. Procuram as mais recônditas veredas e penhascos, as mais escuras e inóspitas matas, os vãos de rios e riachos mais difíceis e perigosos de ultrapassar. Seguem como um bem treinado grupo de heróis, tentando perceber e antecipar locais de vigia ou outros de onde os possam alcançar e descobrir. A única coisa que os faz levar esta vida para a frente é esta nova estranha e desonrada missão que Raimundo transmitiu aos seus seguidores fiéis, e que faz para eles todo o sentido. Matar as mais importantes figuras do reino de Portugal, criando rituais de terror e antecipando as atrozes formas de lhes trazer esse destino final. Ir até aos locais por onde o rei Dom Sancho I se protege. Ameaçar a sua vida e a dos que o aconselham. Criar um clima de pavor e de desorientação, pois nisso este bando não se vê como muito desigual daqueles que, às ordens cristãs, vão avançando pelas terras a Sul da Península com desejos de conquista e de expansão dos seus domínios territoriais.
Não sentem falta de nada, não sabem sequer as terras que vão pisando. Avançam impulsionados por poderes que desconhecem e não controlam. Esses poderes vão controlando, com renovada intensidade, os primários instintos do seu líder. É Sabiano que depois os ludibria, através de incríveis palavras de incentivo, e que os faz acreditar em imortais poderes divinos que lhes concedem alucinadas capacidades de glorificação.
- Mágicos poderes, mágicas vontades! Carregamos em nós esta missão sagrada que mortal algum conseguirá travar nos seus desígnios. A passagem que todos desejamos com destino à glorificação da vida eterna, encontra-se à distância de um olhar. Todos sentimos que por este episódio de vida já anteriormente fomos destino. Conseguimos ler as mentes e saber o que carregam de dor e de cansaço. Devemos dar-lhes aquilo por que ambicionam! O devido e sagrado descanso!
Depois de assim ter celebrado a chegada até perto de Lorvão, desceu de sua montada, caminhou em direcção a uma pequena elevação de terreno que dava vista para o vale que se abria a seus olhos, deitou-se no chão à sua frente de barriga para baixo e de braços abertos. A cabeça o chão esfregou até nele abrir pequeno sulco de terra húmida. A boca essa terra húmida beijou. Depois improvisou maneira de barrar as faces desta mesma forma, até nelas só barro se vislumbrar. Prometeu a si mesmo levar a bom termo as tarefas que as vozes que lhe comandam o destino lhe martelam, ininterruptamente, na sua atormentada memória, e das quais não consegue encontrar formas de se esconder.
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segunda-feira, 14 de julho de 2008

Chamava-se princesa


83.

- O que é que estás a comer? Não vou deixar que te comeces a alimentar de animais cuja proveniência não se conhece. Pode-se mais depressa assassinar importantes figuras pelo seu estômago do que aquilo que se possa imaginar. Ainda para mais sendo tu o cavalo mais importante e insubstituível de todos os corcéis Templários. Meu senhor Fernando Dias nunca me perdoaria se te deixasse ficar doente com maleitas de estômago. Provavelmente mandar-me-ia matar, apesar de todos os anos já passados ao seu serviço, e mesmo depois de tantas histórias ter comigo partilhado. Temos de ser cautelosos. Afinal de contas, não temos mais ninguém. O futuro pouco mais é do que isto! Só temos de olhar para o caminho que temos à nossa frente. Tu, como importante montada de meu senhor, e eu, como seu pajem fiel e honrado, a quem tanto meu Senhor confia. Honra lhe seja feita com a devida estima!
A cidade, cheirada através dos estábulos reais, nem parecia tão amargurada pelas recentes privações passadas pelos seus habitantes. O cheiro de morte entranha-se nas memórias, assim como os restantes odores que se misturam aos odores dos cadáveres, ao mijo e às fezes atiradas pelos moradores pelas janelas, quantas vezes sem os necessários e legislados avisos, quantas vezes misturadas ao vento com outras secretas misturas que nestes dias pela capital do reino são semeadas pelas sarjetas com a trampa dos animais, porcos, cabras, bezerros, galináceos sem eira nem beira, burros, jumentos, éguas velhas, e a dos putos que resolvem ali mesmo aliviar as intestinas vontades, ficando tantas vezes a observar o resultado escultórico de tão perfumado produto. Mais perto dos reais aposentos não se dá tanta conta destes nojos, apesar dos cheiros se misturarem no ar sem pedidos de licença. As árvores bem altas e frondosas semeiam uma fresca sombra junto ao corcel que o valoroso pajem vai escovando. Inspiravam-lhe estes parados mas honrados momentos de trabalho as recordações destes últimos momentos com seu senhor Fernando Dias. Nas artes de manejar as armas, de pelejar, e de as preparar para a função com a fineza de um criado sem comparação. São várias as formas com que as domina e as vai arranjando. Mantém-se sempre concentrado nas tarefas, seja dia, noite ou madrugada. Nunca deixou seu senhor desapontado. Fernando Dias mostrou a sua justeza para com a singeleza e pureza de carácter do seu pajem. Chegou a atribuir-lhe, perante os seus companheiros Templários, funções que só aos mais honrados cavaleiros da ordem estavam destinados. Moldava-lhe assim, dessa forma, perspectivas de superiores esperanças. Desta maneira se devem encarar todas as humanas atribuições mesmo a quem, como ele, sabe bem que nunca poderá aspirar a feitos de heróicas dimensões.
- Sabes, cavalinho valente, que o meu senhor Fernando Dias se encontra agora rezando com fervor as graças divinas por ter cumprido com esta santa missão de carregar em segredo tão importante figura. Aquele pequeno Gonçalo arrisca-se em ser transformado num importantíssimo segredo de estado, mais do que aquilo que se descobre em fontes únicas e extraordinárias. Só agora me apercebi daquilo que ele verdadeiramente me queria dizer. Em sua opinião nós todos carregamos pequenas partes da verdade Divina que é a vida eterna. Só por alguns breves momentos desta nossa existência, partes dessa verdade nos são dadas a conhecer, de formas por vezes bem estranhas, segundo me disse Gonçalo. Confidenciou-me, na presença de meu senhor, que irei ser instrumento de mui importante acontecimento em sua vida e que só então descobrirei a verdadeira razão desta nossa tão forte relação de amizade e respeito.
Do alto do estábulo, do escuro quase insuspeitável da sua superior protecção, uma voz feminina surgiu, rouca, forte, atractiva na sua ríspida sonoridade.
- Eh tu, moço guerreiro, agora me pareces mais como cavalo muleiro, para aí palrando com a besta? Que me dizes comer ou beber pequena porçom de qualquer cousa, antes de te dar a provar meu mexilon?
Assim investia, nestes preparos, menina nada atrapalhada que por ali se encontrava a pesquisar estes novos viandantes recém-chegados. O apelo da carne enchia as vontades da rapariga, e nada ou cousa alguma a faria arredar-se do seu propósito de serenar as comichões sentidas no meio da fonte dos seus prazeres. Os cheiros todos iam-se misturando num frenético cocktail de odores. Naquele instante Castro cerrou os olhos. Conseguiu vislumbrar todas as formas da feminina figura que se escondia no centro daquela escuridão, lá arriba, onde só as escadas de madeira ajudariam às suas intenções. As macias peles cheiravam a brandura. Contrastavam com o tom de voz da jovem senhora. Acabados que estavam os trabalhos de massagem e limpeza do corcel do seu senhor, o jovem pajem seguiu a decisão do seu primário reflexo. Emanava um emaranhado de perfumados odores femininos de deleite, lá no escuro, onde o prazer o aguardava. A voz estava agora transformada em pequenos risinhos histéricos, daqueles com que as senhoras presenteiam, descontroladamente, os jovens mancebos que lhes caem nas teias que arquitectam como ninhos de prazer.
- Que te traz por cá, moço guerreiro? Podias julgar-me como pessoa que pretende possuir a visom sobrenatural das cousas passadas, presentes e futuras. Estavam de grandes lérias tu e o cavalo de batalha, lá em baixo! Aqui se passa para o mundo das quentes e húmidas sensaçons. – e segurando com destreza e mestria as mãos calejadas do rapaz, lenta mas firmemente as transportou até ao local onde os seus seios as aguardavam. Castro, por esta altura, seguia as formas do peito da rapariga através dos desenhos que os seus confusos aromas lhes espetavam na alma. Os olhos mantinha cerrados. Os lábios seus lábios iam mordiscando com apetite, seguindo-se longos beijos, que como clarões de deleite, lhes iam iluminando a escuridão do local. A roupa já lá não existia, só os corpos flutuando no contentamento daquela nuvem de palha e de estrume, naquele doce sonhar acordado todos os sentimentos num só. Todas as coincidências obsessivas da humana existência evocadas e marteladas na alma de Castro através da sua incompreensível capacidade de tudo ver e sentir através de memórias olfactivas. Estranha forma esta de racionalizar os pensamentos que a alma lhe remexe bem lá no fundo. Queria ver a menina nua com os olhos e não apenas através dos seus odores. As pernas traziam-no bem preso e apertado, puxando o seu corpo transpirado e ofegante para mais perto de si. O peso não o sentia! Estava toda ela transformada em princesa de prazer, várias vezes foi vítima dessa transformação, naquela penumbra de satisfação. Já havia sangue na sua boca, pois mordera violentamente os lóbulos de Castro sem este ter disso dado conta. A única forma de distracção que os perturbava de quando em vez eram os ruídos que os cavalos iam produzindo lá em baixo, dando-lhes resposta aos que eles próprios produziam. Quando as mentes lhes começaram a transformar a realidade em ficção analgésica, os corpos arranhados de paixão, a maratona de deleite imprevisível, encontrava-se agora ameaçada com a alvorada, que os acordava para uma realidade que não tinham percebido. As horas que passaram sufocados naquele intenso contentamento carnal passaram em breves instantes fugazes como fumo de um simples detalhe adormecido.
Castro acordou passado um breve instante. Ao seu lado a palha remexida, algum estrume, e os odores da rapariga. Disseram-lhe que aquela noite não tinha sido só um sonho ou uma visão enlouquecida. Algumas das suas fantasias foram estimuladas pelos fabulosos seios daquela que Castro não sabia quem era. Mas sabia seguir as pistas feitas odores que ela, por todos os locais daquele estábulo, tinha deixado como assinatura. Flashes acendiam luzes na sua cabeça. Estava zonzo. Não sabia se era ainda madrugada ou já o dia a acordar, a voltar a si.
Chamara-lhe princesa. Assim o tinha decidido. Aquela tinha sido a noite em que a sua princesa levara como recordação o lóbulo da orelha direita. Era o seu troféu, a marca apaixonada daquelas horas-segundo passadas juntas como um só.
Esta guerra é célebre e as vontades divinas produzem ordens para as manter bem guardadas no coração de cada um de nós, nunca na alma. Tem sido uma grande jornada, verdadeiramente sentida como vida real. É complicada, mas tão maravilhosamente simples, como um beijo quente de menina terna que nos dá o que de melhor traz em si guardado. E sem vergonhas!
Podemos dançar ao som da sua melodia, assim permaneçamos vivos o tempo suficiente para aprendermos as suas correctas coreografias.
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domingo, 13 de julho de 2008

Somos as diferentes verdades deste Mundo


82.
- As verdades já estão no Mundo, quer as encontremos, quer não! Mas saiba Vossa Senhoria que el Rei padece de maleitas bem mais profundas do que as do corpo que lhe pertence. O espírito de Dom Sancho vem-lhe colocando sérias questões e responde-lhe com a omnipresença da Sua voz, com o direito que lhe dão as divinas entidades que detém a guarda das chaves dos reais mistérios e das reais averiguações do seu espírito. Entregou o seu destino a essa voz com a calma que só El rei sabe manter. Ultimamente não consulta sequer os reais conselheiros do reino. As misteriosas mortes devidas por peste e maleitas diversas ferem a ousadia dos seus pensamentos esperançosos. Contudo, eleva ainda aos Céus as suas preces e os seus ideais de expansão, unificação e conquista para este reino de Portugal, ainda tão novo! Dúvidas. Eram, seguramente, as dúvidas que mantinham El rei ainda sentado em real trono na presença desta pequena figura de gente ali prostrada à sua frente.
Gonçalo de Arriconha fora apresentado a El rei Dom Sancho I, que dera ordens a Fernando Dias para com ele manter conversa privada. O tempo que considerasse necessário. Era este o início da demorada conversa que daria a Dom Sancho I conhecimento dos alimentos que cuidam das maleitas da alma e algumas das respostas desejadas para os seus reais receios.
- Vemo-nos aqui e agora pela primeira vez! Onde tem estado? É demasiado tarde, ainda, para descobrir tudo? As mensagens divinas que temos recebido no nosso reino, são verdadeiras, têm significado, encontra-se explicação racional para os fenómenos, ou são apenas coincidências que a imaginação dos homens deseja ampliar para lhes dar significados de estratagemas divinos? Sabe, ao menos, ao que me refiro? Não repetirei uma só palavra. Fale comigo agora!
Gonçalo olhava para o chão dos aposentos reais fixamente, nunca, sem ordem expressa do Rei, se devia olhar em sua direcção.
- Nada daquilo que está a acontecer, aconteceu, de facto, na realidade. Tudo está ainda por acontecer e tudo está, de facto, a acontecer já aqui e agora. Na verdade, existem tempos distintos que a nossa incapacidade física não consegue ainda decifrar com os conhecimentos actuais e apenas nos permite perspectivar e antecipar em ideias. Serve esse Divino propósito para a nossa própria protecção, meu Senhor. Imagine como seriam os nossos dias se, por acaso, desejássemos saber qual o dia em que morremos. E se soubéssemos interpretar, no dia de hoje, os sinais que nos dão a exacta resposta a essa pergunta? Que seria dos nossos actos, das nossas visões, do nosso vulgar dia a dia? Que lugar teria o Sagrado na nossa humana existência? E que seria dos povos se soubessem que outros já foram? E se soubessem que mais formas de existência irão ainda experimentar no seu infinito e renovado caminho? E que tudo, afinal, mais não são que meros sinais indicadores que nos providenciam a Luz neste caminho?
El rei levantou-se, com convicção. Acalmou-se. Sentiu em si uma estranha vontade em apertar o pescoço ao rapaz. Mas que paranóia passaria pela cabeça de tão nova personagem. Possui perigosas capacidades de, pelas artes da oratória, captar as atenções das plateias, mesmo que sejam constituídas por público tão escasso como é aqui o caso. Só que Gonçalo sentiu a transformação que as suas palavras produziram na pele de Dom Sancho e, sem grande hesitação, continuou.
- A filha mais velha de El rei foi ameaçada faz pouco tempo. Mais do que simples ameaça, as vontades que carregam são fortes e com sentido. Tristeza me é transmitida pelos seus pensamentos. Vossa Senhoria sentiu nelas vontade em dar-lhes concretização, quando este novo reino tanto carece da sua Real liderança. Sente-se cansado, doente, atraiçoado por seus conselheiros. Amaldiçoado por um Papa severo e desonrado por um clero em constantes quezílias e intrigas intestinas. Está na hora de mostrar a todos a fibra do seu carácter e a força que sabe trazer ainda em si escondida.
Dom Sancho ficou quase petrificado com estas palavras de Gonçalo. Como podia ele saber dos pensamentos de abandono causados pela possibilidade de uma conspiração lhe trazer escondida a morte. Aquela mão decepada fora sinal evidente de que personalidades habilidosas lhe indiciam homicídio. A sua filha mandara retirar do Lorvão, sem a ninguém ter dado conta. Como poderia saber este Gonçalo desse facto? Ter descoberto isso estava completamente fora das suas terrenas possibilidades. Muito menos ter dado conta dos seus próprios sentimentos e pensamentos. Mas Gonçalo continuava, imparável, e com voz doce, a dar conta a El rei de mais miraculosas novidades servidas com meiga conversa.
- Vossa Alteza mais não fez que pensar em aproveitar essa ameaça para, através dela, abandonar esta existência! Não o faça jamais! A coragem que em si transporta obterá renovadas formas de construção no grupo de Templários que me trouxe até si! E que dedicação extremosa por Vós nutrem e semeiam! Mais ninguém neste reino por Vós carrega aos ombros tanta abnegação e reverência! Fazem-no pelo mais respeitador desejo em dar a este reino de Portugal o rei que tanto merece. Sabe também Vossa Alteza que essa mão foi portadora de um sinal Cristão da maior importância. O Bispo dom Pedro Soares já disso lhe deu sinal. Foi Mancussio, o Genovês, que interpretou a mensagem da cruz bizantina que os conspiradores deixaram, com a mão decepada, na caixa encontrada no Lorvão por Dona Teresa. Vai já a caminho da santa cidade de Roma para disso fazer indicação ao Papa.
Dom Sancho continuava em pé, olhando para o corpo aninhado do jovem, a quem iria dar ordem para se erguer. Como sabia ele tantas coisas acerca dos acontecimentos importantes no reino, na corte e com os seus párocos? A protecção dos secretos caminhos, construída com os cuidados extremos das privadas conversas, sempre mantida naqueles aposentos isolados por paredes inexpugnáveis, eram, ainda assim, quebradas perante estas improváveis capacidades adivinhadoras de tão frágil corpo humano! E mais ainda, as suas palavras soavam puras, como só recorda em algumas das frases de seu pai, enquanto jovem. Gonçalo continuava a conversa.
- Demasiados crimes afectam o povo. São encomendas de almas doentias, inicialmente a soldo de seu antigo genro Afonso IX de Leão. Raimundo, o bárbaro zanata perseguido pelos Templários que me escoltaram até a sua presença, é portador de uma maleita mental que tempera com alucinadas maquinações cruéis, providas pelos brutais serviçais que cegamente o acompanham. São eles os responsáveis pelos assassinatos das grávidas, dos habitantes das pequenas povoações cruelmente martirizadas, dos muitos religiosos padres, desde que entraram, há anos, pelo Guadiana em terrenos bem a Sul ainda com Al Mansur. Daí foram subindo em direcção ao Norte tendo avançado até Rates. São eles que conspiram a morte de El rei. Já não lhes basta o sustento das mortes das figuras de Cristo ou as carnificinas provocadas em gentes rurais. Agora, só a morte das altas individualidades do reino, com El Rei Dom Sancho à cabeça, é desafio de valor para o jogo infernal que esse diabo em forma de gente vai mantendo com a sua alma torturada.
Recuperando a sua posse real, segurando o ombro esquerdo de Gonçalo, acalmou as suas dúvidas dando expressa ordem ao pequeno rapaz para se erguer e olhar El rei de frente.
- Quem és tu, afinal? Não me foi dado conhecimento, quer em sonhos, quer de qualquer outra forma, que pessoa como tu me viesse trazer alento ou causar estranheza nas lides do meu reinar. Até tentei fazer o mesmo que tu! Jogar com as palavras que ouço em minha mente. Perguntar-me se tudo não passa, afinal, de um grande erro. E depois, o que vejo? Padres, figuras verdadeiramente santas a morrer ao tentar dar ajuda a enfermos da peste. Importantes figuras da igreja, quase loucas, a lutarem pelos diferentes poderes que a missão de Cristo na Terra lhes destinou. As coisas pequenas da vida e da morte a causarem-me tamanhas maleitas no peito que as entranhas me saem em sangue jorrado pela boca que tosse. Em breve estará tudo terminado caro Gonçalo. As cartas já estão destinadas e distribuídas pelas divinas leis. Quem somos nós para as questionar?
Sem nenhuma dificuldade o pequeno rapaz deu rápida resposta a El rei Dom Sancho I.
- Somos as diferentes verdades deste Mundo!
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