segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Lembrança cinzelada nas almas


105.

Instalara-se alguma confusão no seio do grupo de Sabiano. Todos os do seu grupo enfrentaram a extraordinária segurança que rodeava a cidade capital do reino e das hostes de el-rei. Raimundo viu-se assim impedido de aplicar os correctivos que lhe iam destinando as suas companheiras, bem alto, no centro das suas ideias. As mãos vastas vezes apertaram, com o vigor desmedido da alucinação, a sua própria cabeça. Os parietais deixavam perceber as têmporas carregadas de um sangue envenenado com os ideais de horror. Continuava a desejar propagar as entranhas da sua execrável loucura por todos os seres viventes que lhe aprouvessem em delírio.
Caminhou com os seus lacaios assassinos, totalmente desvairado, durante quase uma semana, na senda das infantas reais, que nunca conseguiram descobrir. Iam-se presenteando com as terríveis formas de morte que provocavam nas tristes almas de gente anónima que tinham tido a infelicidade de se lhes cruzar em destino. Pelos caminhos de Montemor seguiram, acompanhando as frescas águas do Mondego. Mohammed Al Gaitad tinha arriscado transmitir ao chefe algumas ideias em forma de palavras, que lhe tinham oferecido uns jovens moçárabes, a quem acabaram por ceifar o sopro da vida. Tinham-lhes dito que uma comitiva de cerca de doze cavaleiros se tinha encaminhado, abrigada pela escuridão da lua nova, em direcção ao castelo de Montemor. Talvez levassem consigo Dona Teresa em segredo, ou outra importante figura do clero, ou algum nobre importante, pois as figuras tinham porte de estado e comunicavam secretismo em todos os maneirismos com que procuraram esconder a sua passagem. O estranho de todo este acto de crueldade, que finalizou com a vida desses jovens pela mão dos brutais sádicos trejeitos de Sabiano Raimundo, foi o de também acabar por trespassar com a sua lâmina já carregada com o quente e húmido rubor do sangue desses rapazes, o pescoço do seu guerreiro Mohammed. Permaneceu com a adaga bem firme, agarrada com impressionante vigor, com o punho cerrado como rocha, e ia rodando o pulso de maneira intempestiva, ritmada. Deixava-se envolver pelo prazer que ia retirando dos gritos e das lágrimas de dor e sangue lançados ao ar pelo seu guerreiro moribundo.
Os seus olhos não brilhavam, não dominava os seus gestos e não conseguia controlar a sua força. Era agora um outro ser dentro deste corpo que ganhara vida própria. Um ruído cruel, fino e agudo, baralhava-lhe todas as memórias, bem no centro da sua alma destroçada. Não parava de aumentar em intensidade, assim como as mãos não paravam de dar conta de novos locais onde cravar a adaga, vezes e vezes sem conta, no cadáver de Mohammed, como se fosse o seu próprio corpo que desejava assim aplacar. No fim desta incontrolável esquizofrenia, levantou bem alto o seu machado, fixou o olhar na garganta degolada, que lhe parecia comandar aquele último gesto enlouquecido, e de uma só vez, separou a cabeça do corpo com a mestria de um carrasco.
Os restantes companheiros não conseguiram derramar uma só palavra que fosse. Ali permaneceram, imóveis, atónitos, o tempo necessário para que esta lembrança lhes fosse cinzelada nas almas.
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