sábado, 31 de maio de 2008

Fim de tarde estranhamente arrepiante


40.

Raimundo e os seus tinham sofrido um contratempo. Havia já algum período que tudo parecia correr de feição nos intentos de dar morte às vidas de Cristo. Por terras do reino de Portugal estes diabos em forma de gente poucas contrariedades suportaram. Mas agora, ao virar de um mal afamada fraga, tombaram dois deles tendo montadas em igual número, mais um, ficado mal tratadas. A irritação com o sucedido não conseguia Raimundo evitar. O seu semblante em nada o fazia supor pois raras eram as vezes em que esse rosto reflectia as conversas da alma. Impávido e irreal. Olhava para os animais agora feridos, três montadas, sendo que uma delas era portadora de mantimentos, com pernas partidas e ossos à vista. Reh Ed Al Rashid tinha batido violentamente com a cabeça numa rocha ao fundo da fraga e a montada em cima dele acabara por pousar. Largava fios de sangue pelas orelhas e o seu olhar encontrava-se vidrado e inerte. O braço direito tinha ganho uma posição impossível de descrever. Parecia ter dado volta pelas costas depois de arrancado pelo ombro. O peso da montada caindo com o árabe pela fraga abaixo deu também ferimentos de importância extrema a Alfonso Manfredo, um nobre Leonês que secretamente os acompanhava desde os tempos em que o grupo se reunira com o rei de Leão. Desejava Afonso IX que Alfonso Manfredo lhe fosse fazendo chegar informações acerca das formas e andamentos da missão. Apesar de apenas ter ficado com os braços partidos e não correr perigo de vida, esta sua situação a Raimundo não convinha. Somando a esta conjuntura o facto de sempre ter olhado para este senhor de nobre estirpe como se um monte de esterco fosse, logo ali acabou com sua vida. Demoradamente e com requintes de alucinada psicopatia, foi escalpelando a cabeça do nobre ainda vivo. Cortou-lhe as orelhas, esbofeteou-o repetidas vezes e acabou com ele espetando-lhe a adaga pelo pescoço acima num ritual de refinada loucura. No fim do festim deu ordens aos restantes elementos do grupo para retirarem tudo o que pudesse fazer importância ou tivesse valor, para matarem os cavalos que de feridos para nada serviam e que aguardassem novas instruções. Estes acontecimentos alteraram-lhe as ideias anteriormente arquitectadas.
- De nada nos servirá continuar com os propósitos previamente planeados. Faltam-nos montadas e temos de arranjar maneira de repor mantimentos e outros haveres agora perdidos. O tempo sumido está e os homens parecem atordoados. Bando de inúteis! Para que servem as ordens dadas aos batedores para confirmarem os caminhos? Não fosse Al Rashid ter acabado por fenecer na queda e lhe daria igual trato ao do Leonês! Espero que não me causem mais atrasos ou embaraços desta natureza! Avancemos em direcção ao rio mais para oriente! O mosteiro de Ferreira ficará para mais tarde. Estamos necessitados de remanso.
Fosse Nosso Senhor ou apenas a altura escondida da fraga, o certo é que, por Ferreira, as almas ficaram serenas por via destas quedas não planeadas.
Por esta altura, Castro deixou de olhar para a menina que lhe acenava lá longe na segurança da mão da mãe. Correu como um louco em direcção a Tó, saltou-lhe para o colo onde bem se anichou. Sentiu nessa altura um frio cortante correr-lhe pelas costas até a ponta do seu rabo.
- Então Castro? Parece que viste um fantasma! E que tal irmos até casa darmos calma a este dia?
O bicho permaneceu imóvel mais uns segundos, ou minutos, nem sabe. Depois ergueu o pescoço suavemente. Saltou dos joelhos de Júlio até ao passeio e aí aguardou que este se levantasse e caminhasse em direcção ao prédio onde mora. Pensou por instantes que ia ser muito bom o passeio que Tó lhe havia proposto fazer até ao Norte. Mudar de ares. Este fim de tarde acabou por ser estranhamente arrepiante.
E tinha começado tão bem!
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Francisca


39.


António Júlio observava do calmo retiro do seu assento aquela partilha de delicioso manjar. A menina continuava serena a acariciar as orelhas de Castro como se de lá esperasse descobrir respostas secretas. Esperava, quem sabe, que um qualquer Aladino lhe saísse pelas orelhas e lhe permitisse os três desejos da praxe. Francisca sempre desejara secretamente ter um cão. É uma das mais certas coisas da vida. Quase todas as crianças encerram em si esse secreto desejo de possuir um destes fiéis amigos, deles poder tomar conta, afagar, cobrir de beijos e “festinhas”.
O gelado já não existia há muito tempo dentro da caixinha mas Castro continuava literalmente fascinado pela simpatia de Francisca. A sua mãe tinha ido comprar uma garrafa de água para dar tréguas à secura.
- Então Francisca, diga adeus ao novo amigo! Hoje parece ser o dia dos cãezinhos alegres. Este cão preto já hoje passou por nós, está recordada? Foi na Sé, ao fim da manhã. Se não era ele era um outro muito parecido. Parece ser bem simpático e divertido não acha Francisca?
Tó sentiu nas pernas vontade em se levantar, ir ao encontro daquele trio, dar conta da sua amizade com Castro às belas senhoras. O apoio que necessitava para se erguer em sua direcção falhou em sua cabeça. Esta deu-lhe ordens de remanso e ali permaneceu sentado.
- Eu gosto muito de cãezinhos mamã. São muito inteligentes. Parece que percebem tudo o que lhes digo. E gostam de gelados como eu, não é?
A senhora acedeu com a cabeça, espreitou para o relógio de marca que trazia brilhante no pulso, bebeu um gole de água que lhe refrescou a sede e pegou na mão da menina com firmeza de mãe.
- Está na hora Francisca, temos de ir! Diga adeus ao cãozinho. A avó já deve estar à nossa espera.
A menina lançou um último olhar a Castro que se levantou num repente, seguindo com o seu essa luz. Foi acenando ao de leve, dizendo baixinho já longe:
- Até já cãozinho preto, até já!
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Um bocadinho de gelado


38.

Castro e António Júlio subiam em direcção ao pequeno jardim que se encontra mesmo em frente das janelas do prédio onde vive o escritor. A pequena inclinação da rua servia para temperar as novas cores dos seus sorrisos. As suas passadas eram agora seguras, confiantes.
- Já estamos quase a chegar Castro! É certo que partiremos amanhã para um passeio em direcção ao norte do país! Estou com vontade de recordar paisagens, beber os sabores das lembranças nos exactos locais em que os vivi. Procurar a inspiração para um novo trabalho. Sabes que desde a morte da Alzira nada mais a minha mão escreveu. A minha dor secou-me a pena do poema, da razão de ser escritor, ou mesmo gente que fosse.
Mais uma vez Castro virara a cabeça em direcção às palavras de Tó como se entendesse na íntegra todas as suas sentenças.
- Antes de subirmos, que me dizes a refrescarmos as ideias na frescura destas sombras? As tardinhas são sempre temperadas com uma luz mais serena lembrando doces odores a fruta.
Castro aproveitou aquele verde que tão bem conhecia para ir espantar as pernas e dar de beber à sede. Correu ligeiro para desaparecer por instantes por detrás de um frondoso plátano, aparecendo logo de seguida pelo outro lado. E tantas foram as vezes que assim se ia divertindo que o olhar de António Júlio acabou por se alhear daquele jogo de escondidas.
Foi assim que com contida alegria os seus olhos deram conta daquela tonalidade de verde pela segunda vez nesse dia. A primeira foi quando à saída da Sé uma voz suave e macia chamava a atenção da mãe para a vitória que dois rafeiros divertidos tinham obtido na corrida com o guarda da catedral. A mesma menina de chapéu elegante e sorriso de mel deliciava-se agora a comer um gelado que lhe media o queixo. Está sentada três bancos à sua esquerda, fazendo pequenas cócegas na orelha de Castro que surgindo do meio do nada, sem cerimónia, se sentou em frente à criança deliciando-se com aquele rosto de imaculada inocência infantil.
- Olha mamã! O cãozinho está a pedir-me um bocadinho de gelado. Posso dar-lhe mamã? Posso? Só um bocadinho…?
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quinta-feira, 29 de maio de 2008

Cumprir uma santa missão

37.B

- Sabemos que existem secretos tratados preparados de forma a criar fortes alianças e expansões territoriais que possam abranger territórios agora nas mãos dos inimigos do nosso reino de Portugal. As constantes irritações e excrescências do rei Afonso IX de Leão acabaram por fazê-lo encontrar inimigos nas altas esferas de todos os poderes instalados. A loucura do seu agir levaram-no a encontrar no grupo de Sabiano Raimundo uma arma de poderes estranhamente incalculáveis e valiosíssima para os seus bem gizados intentos. Encontrou assim maneira de levar a espada do terror para o centro nefrálgico dos receios. O seio da própria população e da religiosa forma de seguir em fé cristã os seus ensinamentos divinos. Este grupo infiltrou-se com tropas árabes de Al Mansour pelas margens do Guadiana até ao grande Atlântico, vindo depois a subir para zonas mais centrais do território até ao Sado, margens a sul do Tejo e depois acabámos por lhes perder o rasto. A morte e a destruição, com os imensos receios de aumento de actos cruéis, têm crescido e ganho fama de horrores. O sul voltou ao domínio árabe. Cerca de três anos atrás já Afonso IX de Leão, pela zona de Pinhel, intentou tomar terrenos Portugueses. Julgava ele que chegaria apoio secreto destes mercenários assassinos pelo Sul. Por via do efeito surpresa, do medo e da desorientação, muitos foram dos nossos Templários e muitos nobres que em batalha com forças Leonesas acabaram por perecer. Desses assassinos mercenários, contudo, ninguém deles deu notícia.
Continuava atento às palavras de meu senhor Fernando Dias, tantas eram as suas considerações sobre temas tão impróprios de ouvidos banais.
- São estes os homens que perseguimos agora a caminho de Ferreira! Foram estes os atacantes de Frei Gil e dos cónegos que seguiam rumo a Rates e depois a Compostela! São eles que têm vindo a espalhar horrores e a ganhar fama de Demónio em terras de humanas gentes! São eles que trazem ordens claras de Afonso IX de Leão e que de forma inteligente e autónoma semeiam as suas novas maneiras de fazer crescer o terror com mortes cruéis. São eles que rapidamente temos de encontrar e eliminar da mesma forma metódica com que se cumpre uma santa missão.
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Tempos de mudança e demência


37. - A

Como sentiram rápidas mudanças nas intenções daquele dia que acabara de despontar, muitos dos monges de Ferreira aproveitaram para continuar aquela fuga silenciosa rezando nas catedrais do seu saber as orações divinas que os protegessem desses bandidos assassinos.
Mal a manhã se insinuou em alvorada, os restantes Templários com Fernando Dias à cabeça avançaram em rápida cavalgada em direcção a Ferreira. Nem tempo havia para pensar tal a velocidade com que as montadas arrancaram nessa direcção. Fernando Dias não adormecera nessa noite. Com a cautela das bem-aventuradas missões tinha comigo mantido conversa continuada até o dia e a noite e o dia outra vez terem por nós feito abrigo.
- Os tempos são de mudança e demência. As fés andam conturbadas. O que agora passarei a vos confessar, repito, para que possais pousar fervura em vossa vontade de dar desta conversa publicidade, matar-vos-ei caso o fizerdes!
Espanto meu por estas palavras de meu senhor. Seguro que causaram o efeito por si pretendido. Nem pinga de pestaneio meu olhar derramou. E continuou.
- No seio da própria igreja cristã forças poderosas têm tratado de envenenar com conselhos sombrios as ideias do papa Inocêncio. Eu próprio, enquanto Templário devoto à causa de Cristo com as forças que Nosso Senhor desejar em mim manter, tenho mantido sensatos procedimentos na análise destas enormidades que se começam a desenhar no coração da Europa. O nosso reino, a nossa ordem, as causas de Cristo Nosso Senhor, nunca em tão tenebrosas e ardilosos jogos de humanos interesses se tinham visto envolvidos. Poderosas são as vontades e os escuros poderes da razão, aliados de tantos pecados humanos, de quem santos prefixos se dizem ser portadores.
Mais uma vez as palavras de Fernando Dias me foram de difícil compreensão. Disso, novamente, lhe dei anúncio.
- Da nossa ordem por terras de sul de França são já variadas as perseguições realizadas a quem outros entendimentos de uma mesma fé vai construindo. Sei-o eu, por disposições papais, que se procuram arranjos que exterminem inteiras populações de humanas gentes. Mas se são já os bispos, outro importante clero e o papa que de riquezas incomensuráveis se vão alimentando, de terrenas farturas se vão engordando, que ensinamentos e seguimentos das santas escrituras lhes alimenta as veias da santa razão?
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Quadros soturnos com tonalidades de Bosch


36.


A vontade que tinha em fazer cara bonita para suas tias não podia ser mais reduzida. Alzira mal tinha descansado e a senhora sua mãe tinha marcado bem o seu ponto de vista. Coragem, muita coragem! Assim pensou, melhor o praticou. Vestiu-se como mandavam as boas regras, com aprumo e asseio perfumado. Alzira sabia que tinha estatuto para preservar, mesmo se no íntimo de sua alma a tempestade violenta soprasse vendavais e tempestades tenebrosas, como exércitos de acirrados Adamastores. Suas tias, seguramente, nada tinham que ver com esta sua dor. As dores pessoais de alma são sempre ingratas e cavam bem fundo cicatrizes como crateras lunares. A cabeça adolescente de Alzira ia rodopiando em pensamentos de aleatórias vontades. Ora lhe traziam esperançosas e sábias palavras de esperança, ora lhe pintavam quadros soturnos com tonalidades de Bosch.
- Alzira? A menina ainda vai demorar? Não se esqueça que suas tias devem chegar a qualquer instante! A última coisa que me faltava era ter de a estar constantemente a avisar que deve estar pronta mal elas cheguem!
Último aviso! Alzira espreitara pela janela que lhe serviu de aconchego ao sono da noite e não vislumbrara qualquer viatura à distância de um descer. Ali continuou olhando o longe. A paisagem tranquila na paz daquele meio-dia de Verão. As tias deviam estar mesmo a chegar. Uma suave brisa fazia bailar as copas dos frondosos plátanos e de alguns pinheiros que povoam as verdejantes vizinhanças da casa.
- E se eu pura e simplesmente fugisse? Voasse daqui para bem longe como pássaro liberto e feliz? Acaso alguém daria pela minha súbita ausência? Seria assim tão importante a presença de uma rapariga com catorze anos na harmonia deste planeta? Todo o Mundo chora pelo desaparecimento trágico da mulher perfeita. A amiga de coração que Alzira idolatrava mais do que sua própria vida.
- E se uma pequena menina como eu, subitamente, voasse com as asas do seu sofrer e largasse âncoras sem destino marcado?
Sentiu-se ao longe um buzinar enrouquecido.
As tias tinham chegado. O almoço estava servido.
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Louvado seja o Senhor


35.

Três Templários correram freneticamente, como desesperados, pela escuridão daquela madrugada na senda de Ferreira, para dar aviso do possível ataque aos clérigos do mosteiro. Tinham ordens de Fernando Dias para salvaguardarem a sua cavalgada do grupo perseguido não fossem estes criar intenções de os travar pelo número nesta sua arriscada missão de aviso. Passaram por territórios quase sem deles darem conta. Avançaram velozes por estreitos riachos como setas, cavalgaram nos seus corcéis até os esvaírem em exaustão. Ferreira parecia não ser mais do que um lugar no meio de nada. Julgaram terem-se perdido naquela obscuridade, tanto mais que a manhã se apresentou cinzenta como as almas. Severidade e consternação iam alimentando os seus pensamentos. Imagens de defuntos padres, sangue e cheiro a morte começavam a fazer escrita nas lembranças de suas memórias. Não deram conta que alguns monges se apresentavam a serviço dos mestres arquitectos bem cedo naquele dia do Senhor. Ficaram aliviados por verificar que nenhum deles parecia aflito ou afectado com trágicos acontecimentos.
- Depressa, sejamos rápidos na passagem do aviso! Deveis todos sem excepção tocar os sinos a rebate e dar aviso de que devem abandonar o mais rápido possível as paredes deste santo local! Bandidos da pior impiedade ameaçam saquear e destruir vidas, gentes e construções sagradas sem pinga de misericórdia. Estamos seguros de que se encaminham para aqui. É urgente pegar em mantimentos, armas para defesa e animais para nos deslocarmos com rota a local seguro. Cavaleiros Templários vêm em nosso auxílio. Apenas necessitamos de lugar de firme tranquilidade para rapidamente avançarmos em sua direcção. Ide e avisai todos os que convosco aqui vivem e habitam!
A tranquilidade daquele alvorecer ficou assim ceifada à nascença. Os monges, padres, mestres de ofícios distintos, o abade prior e o arquitecto chefe da obra monástica, todos sem excepção se organizaram como puderam na fuga daquele local ameaçado por destino demente. Nosso Senhor assim o quis. Estas almas ainda poderão dar alento ao porvir com o sonho esperançado do Divino Espírito Santo.
Louvado seja o Senhor!
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terça-feira, 27 de maio de 2008

Pacto de desígnios cruéis

34.

- Navegação cruel a das almas! Os ventos que as sopram desviam-se tantas e tantas vezes das suas rotas, atirando-as com desdém ao sabor dos seus ocultos propósitos. Os caminhos da perdição procuram esconder-se nas vontades humanas de conquista. Desdobram-se e escamoteiam-se em distintas formas humanas para almejarem os seus intentos. São, contudo, bem visíveis. Na maioria das vezes a ilusão procurada no disfarce passa a ser a realidade que desejava ocultar.
Foi alimentado por estes pensamentos que meu senhor Fernando Dias deu continuação a nossa conversa. A noite avançava já pela madrugada. O frio sentia-se nas palavras que saíam em forma de nuvem húmida das bocas. Destas suas últimas considerações confessei que me escaparam em compreensão. Os relatos por si feitos dos relacionamentos e reais interesses do Rei Afonso IX de Leão ainda consegui acompanhar. Sempre que alguma das suas considerações me ia escapando na compreensão, colocava questões a meu senhor Fernando Dias que delas me ia dando entendimento.
- Este real senhor Afonso IX de Leão, por informações que me foram transmitidas por membros da nossa ordem vindas de Castela, tem propósitos bem maquinados desde os tempos passados em que Al Mansur assinou, com imensos benefícios, tréguas com os reinos de Navarra, Leão e Castela, após a batalha de Alarcos. Um grupo de mercenários vindos do norte de África, misturados com Zanatas e outras bárbaras tribos guerreiras berberes, foram por Afonso IX de Leão convocados a sua presença de forma secreta e com perversas intenções. Suspeita-se que com estes guerreiros mercenários de cruel fama assassina firmou Afonso de Leão um pacto de desígnios cruéis. A sua imensa vontade em travar o crescimento da nossa ordem Templária associada à intenção em travar o avanço de Sancho I e do reino de Portugal para sul do Tejo seria agora possível.

Novas coreografias de valsas


33.

A tarde aproximava-se do seu fim. António Júlio viu suavizada a sua intranquilidade com aquele beijo de Castro selado na face direita.
- Então já de volta? Pensava que estarias com maior vontade em seguir a tua liberdade do que voltares para companhia tão acinzentada. Deixaram aquele guarda da Sé quase sem respiração de tanto lhe trocarem as voltas, tu e o teu companheiro.
Castro olhou para Tó, como se tivesse verdadeiramente entendido o que este lhe acabara de comunicar. As crianças são mesmo assim, parecem alheias a tudo aquilo que as rodeia, aos odores, às paisagens, aos conselhos e às conversas. Erro grosseiro! Elas possuem a invulgar capacidade de sorver todos os sinais como se tivessem um aspirador de sentidos. Tudo por elas é captado e a tudo dão atenção. Fazem-no utilizando esse seu espantoso dom. Continuam embrenhadas em suas ocupações de crianças, mas sempre sintonizadas nas várias realidades que as cercam. Como seria se este homem, agora tão dedicado a Castro, soubesse que a verdadeira alma do animal é a de um antigo pajem medieval ainda com idade de criança? Já não era a primeira vez que Castro tivera vontade de lhe transmitir mas apenas sons guturais lhe saíam da garganta em forma de latidos roucos.
- E que me dizes desta paisagem Castro? Tenho de te confessar que é aqui, perante estes magníficos quadros, que te vou dizer o que acabei de decidir.
António Júlio agachou-se junto do cão, baloiçou-lhe carinhosamente os cantos do focinho para cima e para baixo, olhou-o bem de frente nos olhos e disse:
- Vou voltar a escrever! É verdade meu bom amigo. Está decidido e aqui, perante a cidade e na tua presença, selo este pacto com o destino! Vou voltar a escrever!
Castro sentiu que o seu olhar ficou timidamente mais aquoso, António Júlio segurou-o pelas patas dianteiras, abraçou-o e espantaram todos os pedestres visitantes do castelo com novas coreografias de valsas.
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domingo, 25 de maio de 2008

Justiça divina

32.
- Reparai que tudo aquilo que lhe vou relatar ninguém ainda sabe ou suspeita. Eu próprio me questiono acerca da validade destas minhas conjecturas, pois quase loucas me parecem. Todas as minhas desconfianças e a interpretação dos factos que tenho observado, as leituras de secretos documentos que me foram fornecidos, colocam-me no caminho dessas deduções. Receio que a nossa ordem dos Templários tenha neste momento fortíssimas oposições a nascer no seio da própria igreja cristã. Reis e outros poderosos senhores da igreja não têm visto com agrado o crescimento em organização, força e influências diversas que têm acompanhado a nossa ordem Templária. Invejas e insensatos receios começaram a florescer de todos os cantos da Europa, tendo agora aqui também chegado. Faz doze anos que Afonso VIII de Castela foi derrotado na batalha de Alarcos pelo califa Abu Yusuf Ya'qub al-Mansur. Aconteceu, porém, que Afonso IX de Leão, sobrinho do nosso Rei Dom Sancho I, nunca perdoou a Afonso VIII de Castela por este não ter aguardado pelas tropas que vinham em seu auxílio. O califa deu-se ao luxo de negociar inclusivamente secreta aliança com Afonso IX. Todo o sul da Península sofreu com o resultado dessa batalha. O rei Afonso IX de Leão ganharia ainda maior irritação com a mão severa do papa Inocêncio III, por este ter anulado o seu primeiro casamento com Teresa Sanches, filha de nosso Rei Dom Sancho, por consanguinidade. Diz-se que o papa se encontra novamente com sérios propósitos em anular este novo casamento do rei Afonso IX de Leão com Berengária, a filha de Afonso VIII de Castela, novamente pelos mesmos motivos. Afonso VIII, para aplacar a irritação de Afonso IX de Leão, resolveu assim selar com o casamento perfeito esta união das duas coroas. Não contente com este pacto e a secreta esperança de fazer alargar o seu domínio para sul e Oeste, é este Rei minado por forte espírito de conquista. Sabemos que nada o deterá nos seus propósitos. Possui, segundo fontes nossas bastante fidedignas, secretos aliados que se julga serem provenientes dessa sábia aliança com Abu Yusuf Ya'qub al-Mansur. Passam também por acomodar e adaptar às suas necessidades de expansão e domínio territorial todo o tipo de mercenários assassinos que o ajudem nesse propósito. A sua inteligência e perspicácia são inigualáveis. Só encontram rival na sua imensa ambição.
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Manifestação de confiança

31.

O meu senhor mal conseguia desfazer os nós com que estes acontecimentos lhe apertavam as considerações. Sabia da dificuldade em acompanhar ritmos mais elevados na tentativa de, em conjunto, chegar a Ferreira. Dar voz de comando e enviar três velozes montadas com Templários de inestimável carácter, assim lhe pareceu ser mais sensato. A rapidez necessária para o aviso não morrer tarde era aqui essencial, daí ter assim optado.
- Meu pajem esforçado e fiel. Sei que as minhas palavras escasseiam no sentido de vos dar o real valor por vossos préstimos. Sei também que é curta e muitas vezes traiçoeira a forma como esta vida escolhe os desígnios do Senhor para nos mostrar a clarividência do destino. Questiono-me, não raras vezes, na quietude dos meus pensamentos, sobre tudo aquilo que defendemos e o valor das causas imensas do que desejamos construir e alcançar. As forças que procuram destruir esta construção começam a ganhar dimensões insanas. Movem-se com tamanha capacidade organizativa e com uma enorme virtude. A de uma dedicação feroz e inabalável nessa causa que as move. Começa a desenhar-se um muito estranho xadrez de interesses, com raízes que extravasam os da mera fé e que fazem com que figuras ou grupos como estes que agora perseguimos ganhem dimensões demoníacas autónomas e maneiras muito próprias de semear as sementes do seu dever. Acaso está o meu valoroso pajem a acompanhar estes meus pensamentos que em voz consigo partilho?
Confesso que considerei estranha esta manifestação da parte do meu senhor Fernando Dias. Algumas das suas ideias eram-me de difícil compreensão e disso mesmo lhe fiz questão em participar.
- Meu senhor, se mo permite. Agradeço que comigo relate as preocupações do seu juízo. Mui honrado me sinto por tamanha manifestação de confiança da parte de meu senhor. A grande porção dos seus assuntos, reconheço, não os consigo acompanhar. Sei, porque assisto, que o povo tem aparecido aflito. Eu próprio pasmado fiquei quando apareceram os corpos de santos senhores da igreja em estado tão deplorável e que tamanha ingratidão e desrespeitosa tem sido a forma desse abandono. Não me parecem humanas as maneiras desses tratos cruéis meu senhor, disso lhe posso dar entendimento.
Fernando Dias olhou para mim como se me tentasse fazer leitura da alma e respondeu.
- O fundo desta questão já alcançou as altas esferas dos Reinos que nos circundam. Sei, porque assim o vejo em seu olhar e nas suas palavras, que meu pajem é tudo menos homem ignaro. São já os anos que nos unem em várias demandas e em nenhuma vez me deixou ficar mal ou deu parte fraca das tarefas praticadas. Sendo assim, vou transmitir-lhe coisas que terá de manter escondidas em si como os ossos que lhe amparam as carnes. Terá de tomar grande atenção pois será seguro que, caso alguma sentença ruim me possa vir a acontecer neste trajecto, seja o meu honrado pajem portador das informações que fará chegar a El Rei Dom Afonso I, e a Phillipe de Plessiez, da forma que mais adiante lhe indicarei.
Todos os meus sentidos ficaram alerta. Mas o que seriam estes segredos ou dúvidas que meu senhor Fernando Dias a mim e só a mim desejava comunicar? Porque teria escolhido esta noite tão escura após a ordem dada aos três Templários para seguirem rápidos com destino a Ferreira? E que teria eu de tão especial, mero servidor sem rumo, filho de gente honrada do campo a quem o destino, de forma sensata, colou esta função serviçal? Preparei-me de seguida para fazer de guarda a todas as suas informações.
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quarta-feira, 21 de maio de 2008

Pela floresta dentro


30.
A súbita fuga para o interior da floresta dera o avanço necessário ao grupo de Sabiano Raimundo. Os Templários tinham-lhes perdido o alcance. Foi lenta a descoberta de pistas no meio daquelas frondosas sombras. Procurava-se avançar em silêncio, desejava-se acção furtiva não fossem os perseguidos dar conta de nossos propósitos.
- Calma! Parai! Necessitamos de encontrar um lugar seguro para passarmos a noite. O caminho que aquele grupo segue não nos dá indicação contrária às nossas suspeições. Procuram os caminhos de santos lugares. Farejam por lá as suas vítimas como cães danados. Nesta direcção por eles tomada fica lugar de Ferreira, onde sabemos estar a ser construído mosteiro por arquitectos vindos de Zamora e tantos outros monges operários de ofícios civis. Se for já grande o seu avanço, tanto mais triste será sua sorte! Temos de correr a avisar aqueles que por lá a vida do Senhor elevam em grandiosidade tamanha.
Meu senhor Fernando Dias, de entre os seus cavaleiros, escolheu três dos mais nobres que nas mais rápidas e fortes montadas seguiram pela escura noite com destino a Ferreira.
Que não saia já tarde este aviso!
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Castanho derretido nos dedos

29.


A mãe de Alzira não conseguiu refrear a dor da filha. Fechou-se à chave no quarto e só ameaçada resolveu abrir a porta, era já meio-dia.
- Olhe lá, mas a menina está doidinha ou quê? Já nem dá conta das horas a passar? Acha bem estar toda a manhã fechada no seu quarto? E ainda por cima à chave? Mas estará boa da cabeça, por acaso? Vá imediatamente tratar de se arranjar que hoje temos visitas! E não se fala mais neste assunto. Onde é que já se viu um disparate destes?
Alzira fechou a sua dor no fundo da alma e obedeceu a sua mãe. Mexeu-se, sabe Deus como. O caminho do quarto de banho e do regresso ao quarto foi feito sem dele se lembrar, de forma mecânica e ausente. Toda ela estava dormente, insensível e letárgica. As tias vinham do Porto para almoçar e passar uns dias de repouso na quinta. Eram solteiras e não raras vezes punham-se à estrada até Santo Tirso para visitar a sobrinha e gozar os prazeres das conversas com a irmã mais velha, abrigadas na sombra acolhedora do imenso alpendre da casa. Estavam a acabar o curso na faculdade de letras. Eram graciosas, e nem sempre se tinha o prazer de ter gémeas bonitas na paisagem daquela casa.
Alzira lembra-se bem do tempo já algo distante, em que, com cada uma do seu lado, davam longos passeios pelo jardim da vila. Contavam-lhe histórias, faziam-lhe tranças como se fosse sua boneca de brincar, mas em pele e osso. Jogavam com ela às escondidas e traziam-lhe em segredo chocolatinhos e docinhos de leite que as três acabavam por comer em silêncio. Depois sujavam-se as saias com o castanho derretido nos dedos e ia-se passar água na fonte do parque, não fosse a mãe e irmã mais velha dar conta daquele pecado.
Estavam agora crescidas, mais velhas, um pouco mais distantes. Alzira até as tinha guardado nas páginas do seu diário, com ternura infantil. Sempre foram amigas e companheiras. Mas sempre foram presas fáceis de um país que lhes molda o destino, como barro dócil e macio. As tias não eram Marilyns, nem traziam em si escondidos tesouros insondáveis ou asas de um imenso crer. Eram simpáticas tias estudantes, já com destino escrito no casamento que está para chegar.
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Pequenos nadas


28.

A subir até ao castelo, passando a pente fino os últimos instantes do passeio, foi António Júlio sorrindo com as desvairadas patifarias de Castro. Neste novo amigo sentia um coração de criança descomprometida com as coisas pesadas da vida. Ia comendo um pastelinho de nata para dar resposta a essa vontade que lhe vinha o estômago acendendo. Olhou a estátua do santo questionando-se acerca das estranhas razões desta vida. São Jorge conseguiu salvar a princesa donzela, única filha do rei da Líbia, das garras do dragão. E que triste São Jorge foi ele, que à sua amada Alzira, pobre defesa proporcionou com as lanças do seu poder? As pessoas, maioritariamente estrangeiras, que aproveitam já dias de férias e gozam a calma primaveril do tempo português, iam entrando e estendendo os seus olhares do alto do miradouro do castelo para o horizonte regado com as cores da cidade, do rio, da ponte, do estuário ao fundo, das outras colinas, do céu, da esperança do abraço do Cristo-rei, dos cheiros de tanto passado por aquelas pedras estendido, de tanta história derramada naquelas muralhas, portas, ameias, sonhos e mãos pedidas e perdidas. Aqui se guerreou, se conquistou, se viveu, sobreviveu e matou. E todos aqueles detalhes, refrescados com as sombras das árvores, misturados com o barulho das aves que os salpicam de estranhos sons, por vezes de cores de esperança, por vezes da cor do luto, fazem deste castelo um lugar mágico. Sente-se a pequenez do ser pelo sentido passar dos anos que por aquelas pedras já foi vento, brisa, tempestade e calor.
António Júlio deteve-se numa das muralhas que dá vista larga para a zona do rio, perto de um dos canhões que deseja ir tomar banho ao Tejo. Ali se sentou e ali ficou a apreciar a pintura.
- Por onde andará Castro agora? Como seria catita se aqui estivesse para lhe poder mostrar o Tejo ali ao fundo. Para lhe poder agradecer ter-me dado estas vontades renovadas de apreciar coisas simples na vida, já que é feita de pequenos nadas. Afinal de contas, as coisas mais importantes da vida são feitas de pequenos nadas.Enquanto pensava ao olhar o rio, sentiu ligeiro encontrão no seu ombro direito e a sua face húmida e quente ficou. Castro, sorrateiramente, vindo por detrás de Tó, nele se apoiou com ternura e selou aquele pacto molhado no rosto do novo amigo.
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terça-feira, 20 de maio de 2008

Veneno de Alá


27.

O grupo que trazia a morte no seu peito, como se do coração se tratasse, encontrava-se seguro das suas intenções, embrenhado nos pensamentos que só almas desviadas e desprovidas de humanos sentimentos podem gerar. Sabiano Raimundo descansava mas num atento repouso, pois figura como a sua não se podia dar a grandes ócios. Seria um desacerto mortal. Nutria pelos restantes elementos do grupo uma quase indiferente sensação de asco. Eram como insectos negros rastejantes que esmaga de maneira mecânica debaixo dos pés. As únicas sensações de deleite que ainda é capaz de sentir provêm dos gritos torturados das suas vítimas, do sangue quente que sente quando lhes crava a adaga ao pescoço, das mães já viúvas que escorregam nas suas vestes lágrimas de desmedido sofrimento, suplicando-lhe pela vida dos seus filhos. Tem prazer nas sádicas e miseráveis sevícias que pela sua voz de comando os desgraçados que o seguem aplicam com insana e bárbara regularidade. Não se lembra de sonhar sonhos de gente. Todas as imagens são carregadas de negros tons, sonoridades intensas, cheiros a morte e a carnes consumidas pelas chamas. Corpos incompletos como se outra realidade pura e simplesmente não existisse.
Pensa tantas e tantas vezes através das vozes que lhe berram no interior das ideias. Nunca as conseguiu desligar. Nunca o disse a ninguém, pois de tolo nada tinha e era segredo que desejava em si arrecadado e cativo. Lembra-se como se fosse uma cicatriz cravada na sua memória, do cheiro intenso da podridão dos cadáveres. Tem mesmo a certeza que é essa a primeira de todas as suas lembranças. Disseram-lhe, quando foi gente pequena, que tinha sido descoberto no meio dos corpos dos mortos numa batalha e que era ele a única vida que por entre tamanha carnificina rastejava à procura de água para beber. E que tinha sido salvo pelos viajantes nómadas que daquele perdido oásis no meio do nada consigo o resgataram como lembrança dos deuses das areias.
As vozes continuam a sua faina no interior de Sabiano Raimundo. Os escravos, pois assim os entende, que o acompanham nesta busca insensata e desprovida de qualquer humano sentido ou razão, são mandados por si levantar. - Vamos! De pé! Chega de descanso inútil. Sinto falta de acção! Neste final de tarde continuaremos caminho pela orla daquela floresta. Experimento estranhas indicações de que devemos rapidamente dar trabalho aos cavalos e avançar pela segurança das copas das árvores. Vocês os dois, Berálio e Raschid, ide avante e seguindo os nossos secretos procedimentos, abram caminhos por entre os troncos em direcção ao centro desta terra. Farto já estou desta imensidão azul! Dali nenhuma vida humana pode ser acabada, pelo menos, segundo aqueles que me vão cravando as vozes na alma como veneno de Alá.
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Escoltados pelo imenso mar


26.

Prepararam-se todos para partir em direcção ao sul. Fernando Dias nem dormiu nessa noite, reunido com Frei Lourenço e com mais dois Templários. As conversas que mantiveram em segredo teriam certamente que ver com estes acontecimentos que vinham manchando o reino de sangue e mortes cruéis. Seguro que a caminhada teria de seguir rumo ao sul, Fernando Dias, bem cedo pela manhã, deu ordens precisas para atrelar todos os mantimentos que nos tinham sido ofertados pelas populações que muniam o Mosteiro das suas necessidades.
- Preparem os animais para a jornada e mantenham-se atentos como falcões a todos os estranhos movimentos que possamos vir a encontrar no caminho! Estejamos tranquilos e rezemos, rezemos bastante, que Deus Nosso Senhor nos irá colocar no caminho da verdade e da razão!
Nos dias que se seguiram o tempo aplacou a sua fúria. Deu-nos azuis e brancos claros na pintura dos céus, brisas suaves com perfumes salgados a mar. Seguimos junto à costa que nos acolheu com aquela imensidão secreta de silêncios e estranhos desígnios marinheiros. Assim escoltados pela nossa direita, fomos seguindo em grupos separados por pequenas distâncias. Assim entenderam ser a forma mais segura de nos precavermos contra qualquer eventualidade. Esses batedores, como lhes chamavam, vinham agora galopando velozes com novidades de um grupo que foi avistado e que entendiam ser suficientemente suspeito para que todos se juntassem e seguissem no seu encalço.
- Senhor Fernando, senhor Fernando! Um grupo que aparenta não ter mais de dez cavaleiros está acampado a cerca de duas léguas de nós, na direcção daquele promontório que já ali se vislumbra. Pareceu-nos estranho pois nenhum deles trás estandarte ou qualquer outra perceptível indicação de proveniência ou brasão. Mais estranho foi o facto de terem dois deles tido o cuidado de se esgueirar para dentro da floresta que logo após a colina por detrás deles os protegia. Não sabemos se nos viram, ouviram ou de alguma forma sentiram a nossa presença. Não faziam fogo e a forma de acampar pareceu-nos demasiadamente árabe para nos ter causado esta estranheza. Era a primeira indicação, desde a nossa saída de Rates, que figuras ou grupos destas características específicas foram avistados. O meu senhor esboçou um ligeiro suspiro como se esta notícia fosse o bálsamo que necessitava para alívio da sua secreta esperança. É que todas as figuras humanas, por mui nobres e sabedoras que sejam, pela sabedoria que as ilumina, carregam em si as dúvidas na igual quantidade das certezas.
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segunda-feira, 19 de maio de 2008

As perfeitas coisas da terra


25.

Ao olhar, como sempre faz, as tristes gordas da banca que Ti Maria tem à entrada do café, reparou na notícia que em vários jornais vinha carimbada. A notícia da morte de Rainier III do Mónaco.
Nada nem ninguém lhe passa impune, seja príncipe, princesa, rei ou rainha, sem-abrigo, criança ou pastor. Aquela sua ida ao castelo iria ajudar a ver o destino mais de perto. A passagem das horas do dia fizeram-lhe recordar Alzira, de forma terna, como sempre. Como lhe confidenciou, um dia, que a sua vida tinha ficado sem fôlego quando a sua paixão de infância desapareceu para sempre no firmamento. Ela e Marilyn eram almas gémeas que sabia unidas no pensar. Belas por fora, a todos hipnotizando como estátuas gregas de ideais de perfeição. Sensíveis e perturbadas no seu pensar as coisas da vida como frágeis pétalas de rosa receosas do orvalho matinal. As perfeitas coisas da terra são como mártires nas mãos de Midas.
Esta notícia sobre Rainier III fez-lhe lembrar, sem que o tivesse imediatamente percebido, que a paixão esmagadora que essas raras pérolas da Natureza provocam ao comum dos mortais são como presentes envenenados que mais tarde rebentarão nas mãos de Midas. Foi assim com a sua princesa americana que acabou em tragédia num despiste brutal. Foi assim com Marilyn a quem os segredos que foi acumulando sobre as vidas e ligações perigosas da família do presidente Kennedy certamente lhe selaram o destino. Foi assim com Diana, princesa do povo, alma de uma nação, tristemente desaparecida de forma cruel, fugindo do nada, procurando a alegria. Foi assim com Alzira a quem a doença cruel consumiu, deixando Tó num tormento que só as almas que tocaram a perfeição divina em vida terrena podem saber como dói.
Foi assim meditando até à subida do largo da Sé. Não resistiu ao apelo da imponente fachada da catedral que parecia chamá-lo baixinho.
- Vou repousar um pouco na fresca placidez do teu retiro.
Entrou, sentou-se num dos bancos corridos mais próximos da porta de entrada e ali ficou por instantes em contemplação e descanso. Subitamente, algures do seu espaço mais interior, ruídos de correrias e algazarra, pouco condizentes com este espaço de recolhimento, cresciam em sua direcção de forma acelerada. Da penumbra à qual os seus olhos já se tinham adaptado viu um homem, vigilante da Sé, correr agarrado ao seu chapéu atrás de dois cães que de forma sorrateira se tinham esgueirado para o interior da catedral. Os animais, com a língua de fora, pareciam gozar o divertimento de uma vida naquele jogo de toca e foge que faziam com o senhor guarda. António Júlio num primeiro momento não reparou mas foi rápido a perceber. Nesse dueto canino o “seu” Castor conduzia as rápidas mudanças de direcção com a certeza dos desvios. Ainda pensou em chamá-lo mas vendo que a sua felicidade canina se encontrava, naquele momento, no infantil passatempo, deixou-o correr de satisfação em direcção à saída do monumento mais o seu amigo. Estavam felizes por gozarem a simples vida de cão naquele corrupio atrevido.
- Viste mamã, aqueles cãezinhos fugiram do senhor guarda! Ainda bem que ele não os apanhou, não foi mamã? Ainda bem!
Aquela voz de criança, atenta ao jogo da apanhada que tinha sido ganho pelos dois velozes animais, suou a Tó de forma tão cristalina que ele, de forma inconsciente, se voltou para trás na sua direcção. Era uma menina de cerca de cinco anos de idade, não mais, de mão dada à sua mãe. Trazia um pequeno chapéu verde-claro a proteger-lhe os cabelos quase negros que lhe caíam pelos ombros. Um casaco a condizer com a cor do chapéu e umas calças de ganga azul clara. A mãe esboçou um leve sorriso na direcção de António Júlio, percebendo o efeito que as palavras da criança tiveram nele. Voltou-se para a fachada da Sé e nela entrou levando a menina consigo pela mão.
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domingo, 18 de maio de 2008

São Jorge

24.

O dia amanheceu mais tristonho, é verdade. Castro sentia aquela vontade de ir ter com os seus companheiros a fazer-lhe formigueiro nas patas. António Júlio fazia estranhas composições musicais enquanto esfregava Pantene nos cabelos. Os pastéis emanavam aquele cheiro a salsa tão característico mas pelo qual Castro não morria de amores. Começou a fazer grande confusão ao cão aquela sensação de clausura. A janela da sala estava entreaberta e o telhado mais próximo estava ao virar de um saltinho. Não havia grande escolha a fazer. Tó seguramente que compreenderia a necessidade que Castro estava a sentir. É difícil segurar a liberdade. O focinho empurrou a porta da janela só mais um pouco para trás e foi vê-lo escapulir-se dali para fora como se de um gato se tratasse. Olhou para a janela, já no telhado. Ladrou uma vez, como se dissesse até já, correu até um outro telhado mais baixo, daí para um pequeno muro anexo ao prédio, daí para a berma no passeio, daí para a esquina da rua, daí a nada já não se via Castro.
- Sabes uma coisa Castro, estava aqui a pensar que seria boa ideia darmos uma volta até lá acima ao castelo. Já não me recordo da última vez que por lá passei. Está um pouco entregue a essa manada de turistas que nos vai visitando mas tem sempre um sabor especial a vista da cidade lá de cima. O que é que me dizes a esta ideia Castro? Estás a ouvir? Não me digas que voltaste a adormecer. Castro? Castro? Ó Castro, mas que raio estarás tu a fazer que não me respondes? Bicho? Castro?
Saiu finalmente da casa de banho nublada e ficou também assim a sua mente ao perceber que Castro tinha ido à vida dele. Não era intenção de António Júlio dar ao cão gaiola ou açaime. Compreendia muito bem que quem tinha tido vida boémia até então dificilmente mudaria os seus hábitos de um dia para o outro. No seu coração acreditava convictamente que Castro voltaria para si, talvez ao fim do dia, talvez amanhã, talvez depois, mas voltaria. A Arrábida deu-lhe a segurança de que tinha nascido entre eles uma forte amizade, tão forte que Tó compreendia bem esta necessidade de Castro em resolver pessoalmente os seus assuntos.
A ideia da ida ao castelo não tinha desaparecido, bem pelo contrário. A bica é que não podia faltar. Descer à rua e entrar no café da Dona Maria Alice. A última que ali tinha bebido ainda lhe estava bem marcada na memória. Tem plena noção que foi desde essa “poção mágica” de sábado passado que a sua vida tomou novo rumo. Nada melhor para aquecer o caminho até ao castelo. As vistas da capital já não lhe entram assim pelos olhos da cara faz muito tempo. E pensar que o santo até não mora assim tão longe dali.

sábado, 17 de maio de 2008

Da infância à adolescência


23.

“Anunciamos a morte fatídica da grande actriz norte americana Marilyn Monroe. Morreu tragicamente no domingo, provavelmente em consequência de suicídio. O seu corpo foi encontrado nu na cama. Tinha 36 anos. A estrela, com um longo historial de perturbações, tinha o telefone na mão. Junto dela, encontrava-se um frasco de soporíferos vazio", dizia uma concisa nota de Imprensa.
Alzira ficou lívida! A mãe tinha-lhe arranjado uma revista Vogue que uma colega do emprego lhe trouxera dos Estados Unidos e ficou horas a chorar agarrada às fotografias da Marilyn.
– Não é justo, nada disto é justo! As tuas lindas canções e a tua enorme beleza fizeram com que o Mundo inteiro tivesse inveja de ti. O Mundo foi a tua bruxa má querida Marilyn, foi a tua bruxa má! E agora? O que vou eu fazer da minha vida? A quem vou eu mais procurar pistas para copiar? Tu eras o meu Universo, a minha estrela de luz, e agora dizem aqui que foste tu que te mataste. Mas porquê minha querida amiga, porquê? Aqui neste meu pequeno país dependia de ti para respirar. Saber-te assim tão famosa como pássaro livre voando nas telas do cinema. Escusado será dizer que a minha vida agora, acabou. Estou sem forças para continuar minha amiga, estou sem forças! Mas afinal, porque é que me deixaste sozinha, porquê?
O diário que Alzira escrevia, secretamente mantido bem arredado da possibilidade de descoberta por parte da mãe, ficou naquelas páginas manchado com gotas salgadas. Sempre tinha desejado, um dia, voar até a América e lá por Hollywood ir ter com a amiga. Muitos foram os serões de íntimos segredos que com ela partilhou.
Foi até à janela e nessa noite nem na cama se deitou. Passou-a contemplando o céu, chorando baixinho, agarrada à revista com as fotos da amiga confidente agora desaparecida. Estava segura que algures naquele céu estrelado tinha nascido uma nova estrela brilhante, tão brilhante que todas as galáxias no universo lutavam agora para que esta nova estrela possa delas fazer parte. O firmamento estava muito mais bonito. Marilyn tinha desaparecido da Terra. Este planetazinho era demasiadamente minúsculo para tamanha perfeição.
Acabou por adormecer de joelhos, com os braços apoiados ao parapeito da janela a fazerem de almofada para o seu pequeno rosto adolescente. Alzira tinha crescido naquela noite mil anos; são os anos que demoram a passar da infância para a idade da adolescência.
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sexta-feira, 16 de maio de 2008

Coração divino


22.

Vi por estes dois dias em meu senhor Fernando Dias pensamentos escuros que não conseguia esconder pois as janelas do seu olhar assim o impediam. Soube ainda, pois assim mo confidenciou, que crianças ainda pequenas foram as primeiras a descobrir os corpos de Frei Gil e dos outros párocos e a dar deles aviso. Usaram as partes decepadas encontradas para se entreterem em macabras ocupações de pequenas almas. Certo é que a perdida mão de Frei Gil, essa, nunca foi resgatada. Fomos durante este tempo visitar as cercanias de Rates. As bonitas paisagens contrastavam com as muitas dificuldades que os seus habitantes desejavam poder esquecer. Muitas questões foram pelo meu senhor Fernando colocadas, todas esbarravam nas primeiras formas receosas de silêncio depois entreabertas por mais seguras maneiras de dar conta das aflições e de outras perdições por si comportadas. Os pequenos corpos de gente, primeiros os rapazes e raparigas depois, eram sempre mais velozes em connosco procurar contacto. Mesmo quando à beira dos caminhos nos vinham descobrir eram sempre em muito maior número os rostos dos mais novos do que dos adultos. Escondidas vinham suas faces em barrentas aparências. Corpos vestidos com roupas de argilosas cores, cabelos emaranhados ao vento das poeiras, pés descalços e tantas vezes feridos, mãos sentidas e estendidas a pedir um qualquer aconchego para a boca. Não eram estes tempos de felizes recursos. Os animais andavam maltratados por uma estranha maleita que tinha acabado com quantas varas por ali pastavam. Os porcos ardiam em febres e diarreias imensas finalizavam com eles. Também as crianças desenvolviam febres. Dizia o meu senhor que a rataria era tanta e tamanha que mais eram as dentadas que embutiam nas crianças do que as mortes sofridas no seio das suas hostes. Foi neste ambiente que as perguntas e respostas se foram encontrando. O meu senhor sempre colocava as suas conversas em pergaminhos que ele mesmo preparava, não fossem estas perderem a razão em forma de esquecimento.
Voltámos para o mosteiro passados estes dois dias. A velocidade com que soltou os cavalos na sua direcção a mim próprio espantou. Teria deduzido algum juízo no seu, mesmo se por ali só tivéssemos visto tanta falta dele. Força espantosa tem este meu senhor Fernando Dias. Vai buscá-la bem no fundo do seu humano coração. A esta alma nunca vi tratamento desonrado a iguais figuras, a iguais caminhantes deste cinzento e perpétuo caminho. A honra das gentes faz-se e constrói-se com esta coragem em ser caminheiro do saber. E isto não se pode nem consegue ensinar. Nasce com os verdadeiros Homens e Mulheres na terra como se um coração Divino lhes tocasse no peito essa canção.

quarta-feira, 14 de maio de 2008

Das conversas de mortes cruéis


21.
- Mortes, muitas mortes meu senhor. Temos relatos fiéis de que já vem rasto destes martírios desde há meses. Ficaram os corpos dos religiosos espalhados como palha pelo chão. Frei Gil tinha vindo de Parma onde esteve com cónego Alberto em importantes acordos de Paz há poucos anos. Sabendo nós que Frei Gil nos trazia importantes novidades sobre os novos pensamentos filosóficos, fraseamentos de contemplação monástica e de ritmos de introspecção através de uma nova metodologia que permitia a discussão de questões essencialmente teológicas, é uma perda irreparável. Asseguro-vos que se nos depara como uma privação verdadeiramente lamentável. Mais ainda, pois trazia consigo importantes manuscritos de Toledo sobre o sentido da verdade, da natureza e do homem. Em toda a nossa terra não havia outro igual. Frei Gil é verdadeiramente insubstituível. Com estes terríveis tempos de miséria e fome que temos passado, não são bons augúrios estes actos cruéis de terror, morte e medo que têm crescido ultimamente por aqui. Sabíamos também, de fonte segura, que Frei Gil trazia consigo alguns documentos traduzidos do árabe pelo grupo de Gerardo de Cremona e que não encontrámos em parte alguma junto dos seus restos mortais ou dos restantes padres que o acompanhavam. O Templário após escutar com enorme atenção as palavras de Frei Lourenço, na sua figura alva e de barba clara bem cerrada, questionou de seguida o clérigo.
- Frei Lourenço, de si necessito informações que nos possam levar rapidamente à solução que todos desejamos. Esta mortandade cruel só trás pasto para as sementes do Demónio. As suas estranhas implicações nos medos do povo não são difíceis de explicar. Contudo, preciso que nos acompanhe ao local exacto onde os corpos foram encontrados. Temos recebido sinais e informações que nos fazem desenhar três possíveis conjunturas para toda esta continuada carnificina. Uma hipótese é a de que um desorientado e mal intencionado grupo de árabes ande a semear vinganças por onde passa. Pouco credível mas ainda assim, possível. Outra, mais elaborada, não vos posso dar ainda conta dela. Teria tamanhas implicações no seio da nossa Ordem que seriam catastróficas nas formas como os nossos reinos terrestres se estão a desenvolver. Finalmente, a terceira. Pensamos que possa ser um grupo de perigosíssimos malfeitores assassinos que praticam cruéis rituais pagãos sem aparente ligação a qualquer ordem, religião ou crença divina. São frios, metódicos e actuam de forma muito rápida. Entendemos que estão a ser liderados por um estratega muitíssimo inteligente e com regulares hábitos de matança. Necessitamos dos corpos dos defuntos para neles investigarmos o tipo de feridas e outras maleitas que lhes foram provocados. Outros sinais pretendemos também encontrar. Tudo aquilo que nos possa conceder pistas para sabermos, afinal, com quem estamos a lidar. Precisamos também dos seus membros. Disseram-nos terem sido cortados e abandonados perto dos corpos. A roupa é também fundamental! Será prudente não dar conta da visão destes processos de análise aos outros párocos. Trataremos de tudo sem necessidade de alastrar com detalhes o que iremos fazer. Precisamos de uma sala com luz, muita água, panos limpos, material de corte e outros preparos que vos indicaremos. Pela estranheza de métodos usados não vos deterei nem maçarei com pormenores daquilo que vamos realizar. Apenas vos posso garantir que qualquer resposta que obtivermos será de extrema utilidade para nos colocar no correcto caminho.
As observações e análises feitas pelo Templário aos restos mortais de Frei Gil, com ajudas notáveis de mais dois dos seus companheiros, foram esclarecedoras. Não restava a menor dúvida que os membros superiores foram cortados ao nível dos pulsos antes do corpo ter sido pasto das chamas. Estes apresentavam cortes limpos e seguros, feitos sem hesitação, com recurso a lâminas fortes e bem afiadas. Seriam seguramente machados dos que se manuseiam com ambas as mãos com pega em madeira. São normalmente usados pelos cruzados ou sarracenos. A força do embate na zona dos pulsos é notória, tornando-se mais esbatida para os lados o que identifica a curvatura da lâmina. A segurança e certeza no corte não deixavam dúvidas. O machado foi manipulado com ambas as mãos. De mais fácil compreensão foram as marcas seguras de adaga encontradas no pescoço. Eram assassinos de origem árabe ou moçárabe.
Existia a quase certeza que um grupo mais extremista de berberes de uma tribo de Zanatas, que deram brilhante ajuda na luta contra Afonso VIII de Castela na batalha de Alarcos, tinha avançado rumo ao nosso reino via Guadiana. Por razões ainda não totalmente esclarecidas, terão começado a agir por conta própria. Existem relatos desde há alguns anos que confirmam o aumento do número de mortes trágicas sem aparentes motivos. Seria bem possível que este mesmo grupo se tenha conseguido introduzir pelo restante território vindo assim a espalhar estas ondas de terror continuada desde então. Alguns relatos deram conta desta fama em deixar “assinatura” com a falta dos pés e das mãos dos mortos. Acabar desta maneira com a vida dos outros parece ser demasiada bizarria para que mais do que um bando de amaldiçoados procurasse idêntica rubrica selvagem. Quanto às cabeças dos mortos, todas apareceram com a parte do cabelo cortada e arrancada de forma violenta deixando a caixa das ideias à distância do toque. Começavam a ser demasiados sinais de idêntica conformidade. Parecia ser o que meu senhor Fernando Dias procurava com tamanho empenho e dedicação. A certeza era algo que desejava para que o engano na resposta não fosse possível. E estes inumanos tinham de ser travados o quanto antes, nem que isso custasse a vida de todos os seus guerreiros.
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Vida de cão


20.


Gualdim descobrira que as suas memórias passavam por segredos que desejaria saber melhor escondidos. Era um dos malhados de castanho e branco mais dedicado a Castro. Naquele grupo ainda eram todos putos. Nada de prover com sabedoria adulta os caninos. A natureza precavera-se nesta sua habilidade e dotou os cães de uma esperança de vida condizente com o peso que as memórias trazem. Quanto mais duras, mais fresca deve ser a liberdade de as não querer suportar. Os cães são pequenas crianças podendo aspirar a adolescências sensatas, só isso, nada mais. Depois ninguém sabe para onde escorregam as suas almas. Nem devem ocupar os seus pensamentos com coisa tão deselegante. Por isso saltam, correm, brincam e têm vida de cão. É dura, sombria, enrascada. Sofrem males e horrores de cão. Afinal a natureza lá se divertiu com mais esta estalada na cara do Destino.
Castro lembra-se que nessa viagem até Rates o seu senhor muito rezou para que nada os afastasse do real objectivo daquela demanda. Surgem memórias de muito frio e ossos colados aos farrapos que lhe cobriam o corpo. As contínuas chuvas que caíram semanas seguidas deram atraso à viagem. Mais três ou quatro dias foram com certeza. Uma semana talvez. As poças pisadas de lama até onde as rótulas guinchavam. Os animais que resistiam nas subidas mais cruéis. Apenas um dia se lembra de ter estado o Céu apagado dessa água tormentosa. Serviu para fazer lembrar que as cores com que se pintam as suas tábuas são estranhamente misteriosas. Formam arcos tão divinamente coloridos que todos paravam na contemplação das suas cores. Dizia-se que para os lados de Cluny, assim saía esse nome com frequência da boca do seu senhor, as janelas das casas divinas que por lá construíam pintavam a luz que por elas passava nestes tons divinos. O seu interior eleva assim até aos céus esta terra, cobrindo-a de chambras finas. Nada antes se lhes podia comparar em beleza divina. Por isso tanto se rezou nesses caminhos com destino a Rates.
Parece que também se procuravam valorosos cavaleiros para conquistas em terras bem mais longínquas, lá para Oriente. Também este discurso da boca do seu senhor Castro não conseguiu evitar de escutar. Constantinopla, era o nome mais percebido nas conversas que mantinha com os outros Templários.
Uma tarde de sol Gualdim esteve desatento num daqueles arriscados jogos de caça que faziam em grupo. O pessoal bem avisou que não era menina ao volante. O carro guinou como sempre mas não para o lado do desvio saltitante. Ficou a dormir, Gualdim!
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terça-feira, 13 de maio de 2008

Abençoado seja Nosso Senhor Jesus Cristo


19.



Seguros pelo escuro da noite, fria conselheira, avançaram com o dever destinado pela Ordem. Se havia caminho que não se desejava desbravar era o que levava à da criação de boatos em que as figuras dos Infernos, sob a ordem do Demónio, andassem de mãos dadas a desgovernar as terrenas paragens do Senhor. Seguiam assim dos mais valorosos servidores neste grupo de cavaleiros. A Sabiano Raimundo e respectivo bando haveriam de dar silêncio e disso fazer notícia. O povo, com a corda da miséria e da fome ao pescoço, alimenta-se com histórias, ora verdadeiras, ora acrescentadas. Era já bastante triste a verdade dos factos.
- Poupem nossas vidas, senhores! Bem aventurados caminhantes, poupem as crianças e velhos que não se podem defender!
Chegavam assim, não poucas vezes, as vozes de aldeões e ajuntamentos populares que com pânico eriçado na pele, de joelhos, pediam clemência. Acalmadas as almas, procuravam-se por correctas informações e relatos que lhes dessem conta dos factos. Era necessário saber ouvir, saber de quem ouvir, saber, por vezes, a quem usar para chegar mais perto do desejado intento da demanda.
Pelas paragens de caminhos que se sabiam mais curtos, dias foram gastos até que Rates estivesse à distância de um só. As terras lamacentas e ébrias de verde, pois os tempos se tinham mostrado de uma impiedade desmesurada, tratavam assim de os pintar na paisagem. Quanto aos Templários, a humidade sentida chegava até aos seus ossos e aos ossos dos animais. Até as armas, acaso os tivessem, estariam a queixar-se dos males do tempo tanta era a água que resolvera o Senhor fazer derramar do céu. Dir-se-ia que demonstrava a dor de quem, nesta Terra tão inclemente, a botava ao chão para lavrar. E o mosteiro de Rates a abrir a paisagem lá ao fundo.
Desde há três dias que se começava a sentir menos peso nas almas das gentes. Adivinhando o povo, sabe Deus como, qual o propósito daquela cavalgada, chegavam silenciosos à beira dos caminhos aguardando a nossa passagem. O meu senhor nunca falou nestes últimos percursos até à visão do mosteiro lá longe. Virou-se depois para mim, tocou-me suavemente com a mão no ombro esquerdo e fez o sinal da cruz na minha cabeça. Mão no peito e de seguida a oração com a chegada ali tão perto.
- Abençoado seja Nosso Senhor Jesus Cristo, amén!
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Pastelinhos de bacalhau


18.

A porta bateu. Castro levantou a cabeça e puxou a perna de Tó pela bainha do pijama. Rosnou. Não havia outra solução. Sair do torpor do sofá e carregar o corpo até à porta, pois nesta alguém continuava a ensaiar solos de bateria.
-Ti Jacinta? Ora essa! Bom-dia.
António Júlio nem sabia as horas da manhã quando se fez de forma mecânica à porta, e não era seguramente aquela senhora que esperava ver depois do sono.
- Quer um pastelinho senhor Tó? Estive cá a pensar que o vizinho tem andado meio estranho. Acaso terá fome, disse a mim mesma. Ontem meti mão na massa e passei a tarde a fritar uns pastelinhos de bacalhau. Trago-lhe aqui uma dúzia deles para que possa matar saudades. Olhe que melhor não há quem os faça, isso lho garanto eu!
Por esta altura Castro resolveu ir tratar um seu assunto premente e como independente tinha sido toda a sua vida, resolveu aproveitar a porta entreaberta para se ir aliviar.
- Ai credo, Jesus, Nossa Senhora! – Ti Jacinta não conseguiu evitar um ligeiro salto para trás e as palavras saíram assim sem travão pela boca enquanto o cão preto, agora de pêlo lustroso e brilhante, lhe passou tangente ao avental.
- Calma vizinha, não se assuste. Por favor, cuidado, não caia das escadas abaixo.
Segurou o pratinho do deleite que a velhota trazia nas mãos, não fossem eles decorar o tapete da entrada da sala, e fez-lhe sinal para entrar.
- Ó vizinho, deixe-se estar. Sabe, aproveitei os pastéis para vir saber se estava tudo bem consigo. Como tem andado por aí tanta coisa ruim. Assaltos então, nem é bom falar, pois não? No outro dia parecia que um estranho o empurrava da janela abaixo. Pensei se não seria algum gatuno e o vizinho, com receio, arranjou a desculpa das limpezas? Olhe que só fui para a cama ontem depois de o saber por cá. Não vai levar a mal, pois é? Pois é vizinho? Não vai levar a mal? – Insistiu até obter resposta a tanto verbo.
António achou piada a esta forma pouco comum de dar início ao dia. Agradeceu depois à idosa.
- Muito obrigado pelo seu cuidado, Ti Jacinta. Estou em crer que nenhum outro pastelinho me iria saber tão bem quanto os seus. Quanto àquilo de anteontem, é verdade que já muito tempo passou desde que tive visitas. Sabe, arranjei um amigo de quatro patas, muito simpático por sinal. Foi ele que a assustou quando saiu pela porta. É um cão preto simpático. Chamei-lhe Castro. Pareceu-me bem.
A Ti Jacinta abanou a cabeça consentindo com tal ideia. Um cão na vizinhança até seria boa companhia por causa da malandragem. Dá sinal com a voz e pode ser que assuste alguns desses tontos que andam por aí só a fazer parvoeiras.
- Boa ideia senhor António! Boa ideia! Olhe que não seria nada mau se todos pensassem assim. Um bicho desses sempre ajuda a manter as más companhias afastadas. Agora vou-me embora pois deve ter muitas coisas para fazer. Até mais logo vizinho, até mais logo.
António Júlio olhou para a senhora com um sorriso na face e despediu-se segurando na maçaneta do trinco.
- Muito obrigado pelo seu cuidado. Até mais logo. Tenha cuidado ao descer as escadas, segure-se bem, veja lá não caia.
A senhora lá foi descendo e acenando com a mão esquerda enquanto se agarrava ao corrimão de madeira. Tinha já desaparecido para dentro da porta de sua casa quando um barulho suave se fez ouvir lá em baixo com cadência compassada. Era Castro que vinha a subir, já aliviado, em direcção ao cheiro dos pastéis.
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A caminho de Rates


17.


Havia já semanas em que vivalma se atrevia no escuro das tardinhas. Após terem descoberto Frei Gil naqueles preparos, o povo tremeu e temeu Divinos desenvolvimentos. As almas andavam semeadas de pestilência, a fome dava às rezas azáfamas desmedidas e voltaram hábitos outrora esquecidos para afastar o Demónio que a todos vinha cobrar. Nem a natureza nem qualquer das suas forças pode falecer. Os séculos votaram algumas ao esquecimento. Estes acontecimentos acordaram nas gentes do povo as apropriadas condições para que acordassem agora. As redobradas forças com que acabaram de renascer foi-lhes consagrada pelo remanso dos tempos.
A Phillipe de Plessiez estes acontecimentos de forma rápida fluíram. Certo é que depressa se procurou, de forma resguardada, montar cavaleiros para dar conta destas formas tremendas de acabar com a vida de humanas gentes. Nunca tais formas violentas de pura barbárie por terras portuguesas alguma vez se tinham visto, nem tão pouco ouvido falar. O destino desses cruéis assassinos estava por eles claramente traçado. Era limpar de vez com tais vilanagens. De tão repugnantes mentes jamais pensamentos humanos floresceram.
O início da quarta cruzada estava em marcha. Muitos dos que procuraram silenciar a escolha desse grupo de bandidos fizeram-no por saber que a necessária resposta à dúvida por muitos levantada carecia de resposta. Seria Sabiano Raimundo de origem árabe, ou, como vozes faziam já transparecer para o exterior, um antigo Templário a quem as razões do destino destroçaram as ideias que outrora lhe haviam vestido a alma? Fernando Dias deu ordens muito secretas para que esta questão fosse tratada com o sigilo e a rapidez necessária. Todos sabiam aquilo que restava fazer. A origem deste mal tinha de ser descoberta, arrancada pela raiz e fazer-se desaparecer dos terrenos onde florescera com este defeito visceral. Da zona de Idanha saíram na escura noite vultos armados e bem conhecedores das histórias e das famas do grupo em questão assim como das formas como deveriam escrever o seu final. Não se desejou lentidão para a solução ambicionada. Todas as ajudas seriam bem-vindas e o tempo não estava para ser jogado ao relento. Foram mais de trinta os cavaleiros que assim abalaram em direcção ao norte, para Rates, de onde a informação tinha voado. Vão agora a caminho do seu mosteiro.
Castro acordou a meio do sono com esta memória na alma. Olhou para o lado e reparou que Tó estava bem quente a dormir no sofá para onde se estirou mal chegaram madrugada dentro. Ficou acordado a ouvir os barulhos que entravam pela janela semi-aberta do quarto. Ajeitou o focinho entre as patas da frente e assim ficou mais um pouco até voltar a adormecer.
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segunda-feira, 12 de maio de 2008

O dia estava ganho


16.


A música tocava na rádio e enchia o ambiente como parceira assídua que sempre tinha sido. O som saía das colunas envelhecido pelos anos que estas tinham. Não era tanto a qualidade das melodias mas sim a companhia que conseguem proporcionar, que fazia com que Tó arriscasse rodar o botão para a direita. E aí estava a sonora companhia. A estrada ia passando e Castro resolvera dar novamente ar à língua, que os frescos ares marítimos iam chegando. Davam-lhe alimento e aconchego. Já não se recorda da última vez que vira o grande azul. Isto de ser cão provoca estranhas misturas na memória. Julga que os anos passaram e por vezes foram semanas. O que parecia ter sido antes de ontem, já fez mais de dez dias. O tempo assim não é como uma flor. Sem ter ninguém para partilhar, um cão sente-se só, e essa coisa do tempo é maleita humana bem ruim. Os caninos preferem rasteirar a sua existência com a procura de abrigo, seja na companhia de colegas de susto, seja na segurança de humanos que os saibam respeitar. Sim, pois é de respeito que se trata.
- Está mesmo um dia bom para merendar. Então que me dizes Castro. Já caía bem o aconchego de uma bucha. Vamos aproveitar aquelas sombras que o sol já vai alto.
Castro ladrou como se respondesse afirmativamente ao António. O Taunus parou, a merenda preparada com dotes de gourmet, estendida numa mesa de pedra granítica, e ali se prepararam os dois para um almoço em forma de lealdade. Ali perto ficava um lugar que António Júlio bem conhecia dos tempos em que passeava com a sua Alzira. Castro ia também conhecer a gruta da lapa de Santa Margarida, e em silêncio beber a paisagem.
As areias doces da Prainha estavam lá em baixo a gritar por eles. Molhar os pés iria cair que nem ginjas. Dizem fazer bem ao coração. Certo estavam os dois que os seus batiam e respiravam ares bem mais arejados que os dos últimos tempos. A brisa serena, as crianças deleitadas com as brincadeiras deste dia de Verão antecipado.
Castro correu como louco até à beira mar. Olhava o seu reflexo e batia-lhe com a pata direita para o desfazer. Jurou ver-se pajem retratado nos ruídos da imagem assim criada.
Seria tão fresco como um beijo de Alzira, senti-la assim ali tão perto, como se os estivesse a olhar do alto da gruta.
- Só mais um bocado, estás a ouvir? Já lá vem o escuro da noite e ninguém nos faz companhia, só mesmo o anoitecer e a gruta lá no alto. Sacode-te bem.
Castro correu mais dez milhas, ou vinte, ou trinta, nem se lembra. Atirou-se para cima do Tó e só recorda o som forte das gargalhadas sonoras que este lançou já no escuro.
O dia estava ganho!
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domingo, 11 de maio de 2008

Céu azul de domingo


15.



Alzira era a mulher mais bela do Mundo. Nunca tinha sido vista uma beleza assim por aquelas bandas. Desde muito nova que todos achavam que a menina devia ser estrangeira. Os seus cabelos dourados e as luzes verdes que lhe iluminavam o rosto eram uma riqueza rara ao serviço da espécie humana. Não havia quem a não desejasse passear pela mão quando pequena. As tias quase bulhavam para ter a vez de a levar a passear ao jardim da vila. Gostava de brincar às princesas mas a sua mãe não gostava muito de a incentivar a tal façanha. Os outros já a apaparicavam o suficiente. E por outros eram mesmo todos os outros, familiares, amigos, parentes mais ou menos afastados, vizinhos e demais pessoas. Sempre a menina, como imã, atraía para si os olhares, os sorrisos, as atenções e os piropos.
Filha única, coisa estranha naquele tempo, pois a doença da mãe assim destinou, ainda vinha botar mais tempero na sopinha do feitio que lhe ia moldando a infância. Sonhava com quintas apalaçadas, daquelas que lia nos romances do Eça. Com viagens a destinos excêntricos. Ouvia falar do cinema, dos actores e actrizes e de como lá pelas Américas se crescia vedeta com essas coisas modernas. Foi assim que lhe começaram a colar o nome com que foi ficando conhecida enquanto menina. A pequena Marilyn. Era a nossa pequena Marilyn.
Chorou como se fosse da própria família quando soube da sua morte noticiada pela rádio. Tinha apenas catorze anos e foi como se um bocado de Norma Jeane tivesse voado para o coração de Alzira. Como se a tivesse sentido lá longe nas Américas amiga do peito. Uma ligação difícil de explicar. Certo é que também António Júlio não conseguiu defender-se dos seus efeitos e mal a conheceu em 65 o seu destino tinha ficado traçado. O giz com que escreveria o futuro da sua existência na ardósia dos tempos estava nas mãos deste anjo de asas azuis imortais.
Castro continuava a olhar para Tó. Parecia que lhe estava a ler os pensamentos.
- O que é que tu queres malandro? Dou-me por feliz por teres aparecido no Sábado do meu contentamento. Já nem me vinha à memória como é que se metiam as mudanças, quanto mais lembrar-me do caminho para a Arrábida. Dá-te tu também por feliz, olha que nem sempre olhamos para um céu tão azul como o deste Domingo. Essa é que é essa!
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Na borla das boleias


14.


A ponte estava como o Cristo Rei, de braços abertos como que à espera de abraçar este passeio. Castro estava a dar ar à língua. Ia olhando lá para baixo e pensava que ser pássaro também tem as suas virtudes.
- Olha que sou capaz de encontrar algum trânsito ali à saída para a Caparica. O pessoal mal sente um dia assim como o de hoje e faz logo saltar a toalha de praia dos armários. Mas nós seguimos em frente. Havia rapazes e raparigas que se punham à boleia logo depois das portagens e que mostravam cartazes com nomes de muitos locais. Algarve e Albufeira tinham mais adeptos. O pessoal mais novo gosta de poupar os seus trocos para outras iguarias acabando por arriscar na borla das boleias.
A dimensão do risco era diferente quando Castro era gente. Era quase a idade da pedra destes pedidos. Os peregrinos arriscavam pedir auxílio e protecção a alguns cavaleiros para que os riscos de serem assaltados acabassem por ser afastados ou reduzidos. Famílias desesperadas eram também pedintes de tréguas aos possíveis assaltos dos caminheiros de Santiago. Por mais vezes do que se desejaria a vida destas almas acabava invariavelmente por conhecer outro destino que não o do norte desejado. Perdia-se o norte e tantas vezes a própria vida nestes pedidos de auxílio. Consta que uns monges que seguiam para Rates foram pedir auxílio a uns cavaleiros para os orientar até ao Mosteiro. De bom grado lhes pagariam em orações e bênçãos divinas tamanho feito cristão. Consta que as suas vestes foram encontradas atadas aos restos carbonizados de corpos desfigurados. O negrume da carne consumida pelas chamas infernais, que aos monges atiçou o criminoso bando de Sabiano Raimundo, marcava mais uma assinatura da sua cruel forma de existência. Diz quem encontrou esses corpos assim atados que lhes tinham seguramente cortado os membros antes de lhes fazer chegar o fogo. Os pés e mãos estavam pendurados num castanheiro a alguns metros dali. Apenas faltava em número a mão de um dos corpos encontrados naquela dantesca pintura. Era a mão de Frei Gil. A míngua no país era já tanta no ano 1202 da era de Cristo, tantas mortes pela tortura da fome, tanta miséria, e agora ainda esta infame escumalha infra humana a folgar com o terror dos feitos cruéis que atrás de si semeia.
Castro tirou a cabeça da janela, olhou para Tó assustado e deu-lhe uma carinhosa lambidela de amigo.
- Tas parvo ó quê? Nem penses que os teus beijos me convencem a dar boleia a alguma dessas beldades de dedo esticado. Sabe-se lá que gente é essa? Sabe-se lá ó Castro!
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Arrábida à vista


13.



A viagem com destino à Arrábida tinha começado. O velho Taunus castanho de 71, quase relíquia de museu, roncou com agrado ao rodar da chave. Aquele dia de Domingo seria seguramente diferente. Castro abanava o rabo de contentamento pois aquele ruído fazia-lhe lembrar as brincadeiras partilhadas com os seus camaradas de quatro patas. Bastantes vezes corriam atrás de delirantes chapas reluzentes de forma arredondada ladrando feitos loucos de prazer até à exaustão, só pelo prazer em ver alguma Michèle Mouton estampar o rodado contra as bermas altas dos passeios que sabiamente escolhiam para a função. As senhoras tinham muito mais receio em atropelar aqueles animais fofos que se atravessavam à sua frente assim tão de repente. Guinavam feitas salvadoras da pátria para evitar mortes violentas por atropelamento. E era ver as latas que tapavam as jantes negras a saltar que nem pássaros atordoados.
Depois corriam atrás das redondinhas para com prazer canino as resgatar como troféu de caça. Castro era dos mais medalhados. Chegou a conseguir reluzentes troféus de raras marcas. Mas as que mais gostava de conseguir eram de um carro muito engraçado que virava nas curvas feito barco e ao qual os humanos chamavam dois cavalos. Fossem dois ou mais, quando tocava a desviar-se das caninas cabeças, lá tombavam as latas como as dos outros, lá rodavam feitas tontas e lá partiam para a corrida atrás do troféu.
António Júlio tinha tido como ideia colocar uma pequena manta a proteger o banco traseiro do seu automóvel não fosse Castro arruinar os estofos. Depressa considerou tal tarefa desnecessária. Castro tomou conta do banco do pendura e depois, como se tivesse sempre viajado naquele posto de comando, abriu a janela com as patas da frente rodando a manivela com grande desembaraço. Com a cabeça do lado de fora por duas vezes ladrou chamando por Tó.
- Está bem está! Mas que bela encomenda que tu me estás a sair. Tão novo na família e já com ares de mandão. E agora, a caminho da Arrábida. Aqueles ares vão fazer-me lembrar que ainda existe azul no céu. E quanto a ti, já que foste tão rápido a abrir a janela aproveita e põe o cinto! Seguiram em direcção à avenida de Ceuta para apanharem a entrada da ponte em Alcântara.
A Arrábida ali tão perto.
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Sabiano Raimundo


12.

Sabiano Raimundo tinha uma mente inquieta. Olhava para as coisas como se fossem imateriais, como se a realidade à sua volta fosse indigna de tamanha figura. Mas que figura. Donzelas indefesas eram por si pura e simplesmente chacinadas. Serviam de alimento à sua ferocidade. Os maltrapilhos que o acompanhavam eram rudes, uns miseráveis meliantes que se afastavam da loucura com a frieza dos seus golpes mortais. Sabiano era para eles um Deus Pai que seguiam com fé inabalável. Os seus actos cruéis eram a forma de sentir que estavam vivos. Dormiam ao relento, pilhavam e matavam qualquer alma que se atrevesse a passar no seu caminho. Deixavam espalhados os corpos. Chegaram ao ponto de incendiar pequenas aldeias pela noite apenas para se deleitarem com os cheiros, as cores das chamas, os barulhos da destruição, o choro das almas inquietas e aterrorizadas dos seus habitantes. Dizem que no seio deste bando dois deles chegaram a praticar actos de canibalismo, tão animais eram os seus hábitos.
Foi pela calada da noite que um violento temporal se abateu pelas terras perdidas do centro do País. Árvores chegaram a ser arrancadas pela raiz. Pequenos leitos de ribeiros e fios de valadas transbordavam carregados de escuras e rápidas cascatas bravias. Os campos estavam ensopados e os estrondos dos trovões saíam do escuro céu como se o divino destino tivesse vontade de os engolir. E o vento?! Rajadas traziam a água com tamanha violência que estalavam as faces e o rosto nem olhos podia abrir. As tendas do grupo de cavaleiros que há semanas seguiam as pegadas e as destruídas vidas que o grupo de Sabiano Raimundo deixava atrás de si, voaram pelos ares. Algumas estavam já gastas pelo uso dos anos. Outras, de mal montadas que estavam, resolveram acompanhar as primeiras. Tudo num emaranhado de água, lama, galhos e árvores pequenas rodopiava e era iluminado pela luz clara dos relâmpagos celestes com frequência ritmada.
Quer o grupo de Sabiano quer o dos seus perseguidores sofria com esta fúria da natureza. Empapados e preocupados em manter os animais serenos, quer uns quer outros mal perceberam que a distância que os separava era bem reduzida. Vinda dos céus e do nada naquela escura noite de forte tempestade, uma mancha voadora com forma de asas de morcego cai violentamente por cima de dois destes bárbaros assassinos que de forma louca gritaram alto e a bons pulmões pela protecção de São Columbano. Outros juraram ver o Demónio engolir Demêncio e Lucrácio e estavam já de joelhos quando o chefe gritou como pirata dos mares.
- Calai-vos bando de inúteis! Não fossem vós excremento de bode e as vossas cabeças rolariam já cortadas por minha adaga. Isto que dos céus voou é sinal de que alguém nos persegue. Alguém que se encontra bem perto. Aproveitemos este presente e preparemos o ataque antes que sintam o dia fulgir. Preparai as armas e ataquemos em grupos de três. Sigam-me!
O grupo de miseráveis assassinos preparou, qual matilha furiosa e bem coordenada, o ataque aos cavaleiros que os perseguiam. Deitaram-se e rolaram pelas enlameadas encostas como víboras ensinadas. Farejaram com a ajuda dos seus corcéis o local onde o grupo perseguidor se localizava. Perceberam que caso fossem suficientemente rápidos, a tempestade brutal que tinha sido tão útil no aviso ainda seria útil na manobra de camuflar o seu propósito. As bestas que consigo traziam fizeram o trabalho final. Tinham conseguido cercar o grupo de cavaleiros sem que estes tivessem dado conta. De forma segura e cruel as setas velozes saídas de suas bestas iam certeiras aos alvos como tão certeira a bátega cruel lhes ia ensopando os corpos. E eram mais de trinta as almas que os perseguiam. Mais de trinta ficaram caídas naquela noite, esquecidas, massacradas, mortas e trinchadas dos seus haveres e da sua luta. Alguns nem disso deram conta. Outros ainda feridos resistiram. Mas as feridas e os escuros vultos que lhes caíam em cima vindos do solo, como fantasmas de lama, eram adversários demasiado poderosos naquele contexto trágico.
Eram estas estranhas e miseráveis ajudas do Demónio que faziam crescer em fama e terror o bando de assassinos de Sabiano Raimundo. Diziam ser assim um dos seus rituais de matança. No fim de cada chacina urinava por cima dos corpos dos cadáveres, mas isso ninguém pode provar. São as ideias e línguas do povo, esse criativo boateiro.
Castro ainda se lembra do cheiro e do quente dessa chuva amarelada que lhe regou a pele. Tão diferente deste banho suave que António acabara de lhe servir. Tão diferente.