sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Marionetista Supremo


103.

As senhoras e o tempo pararam. Castro continuava a sofrer as carícias da pequena Francisca, possuidora dessa doce novidade que fará dela uma futura dona de um fiel amigo. António Júlio sentia-se um pouco baralhado com tanta movimentação ao redor do seu “perímetro de segurança”. Do alto dos seus olhos mansos, o escritor apontava todas as movimentações daquele quarteto. Perscrutava, com a sua argúcia de artista, todas as mensagens contidas nos gestos felizes daquelas três gerações de senhoras, atraídas pela singeleza simpática daquele rafeiro preto, de porte aristocrático, que lhe salvara a vida, sem o saber.
- Boa-tarde! Espero que o bicho não as tenha incomodado. Ele é um verdadeiro pesquisador. Tem uma vontade muito própria e do seu destino não procuro ser travão. A menina gosta muito de cães. Se bem me recordo, já não é a primeira vez que Castro se encontra com ela.
As senhoras apontaram com igual rapidez o olhar na direcção de Tó.
-Desculpe a nossa ousadia, mas a Francisca correu com tal rapidez que conseguiu fazer de nós umas perfeitas tolinhas. Não era nossa intenção incomodar. Ela adora cães. Fica louca quando vê um animal assim tão simpático e não consegue resistir aos seus encantos.
A tarde estava, desta forma, por ali descansada. A mãe de Esperança, apesar do cansaço da corrida, notou a subtileza formidável com que António Júlio observava toda aquela cena. Não se recorda, fazia muitos anos, de um olhar assim tão inteligente e sensato. Era muito fácil cair na tentação de ler a alma que está por detrás de um olhar assim tão intenso, tão puro. Não pôde evitar que um pequeno calafrio lhe percorresse as costas de alto a baixo, dando-lhe aviso.
- Desculpe, mas julgo ter a sensação de que nos conhecemos de algum lado.
Foi assim, desta forma tão tradicionalmente juvenil, que Filomena deixou cair a barreira da distância.
António Júlio sorriu. Esperança e Francisca estavam agora entretidas com Castro, preparando-se para seguirem os seus destinos e darem as devidas despedidas ao bonito animal. Não repararam que, de forma tranquila, as outras personagens daquela tarde se embrenhavam numa conversa. E as conversas, como as cerejas, trazem outras agarradas atrás de si. A descoberta que dali se seguiria um comum destino de viagem para todas aquelas cinco almas, a todos deixou uma sensação de cálida estranheza, como se alguém lhes estivesse a coordenar os movimentos, algum Marionetista Supremo a dedicar o seu esforço para lhes dar iguais rotas de viagem.
Com que intenções Coimbra lhes foi indicada como o lugar para um próximo e rápido encontro, só esse Marionetista Supremo, por agora, o parecia saber antecipar.
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