segunda-feira, 29 de setembro de 2008

Mágico instante de um descanso


111.


As mãos carregam as marcas de sangue e morte. Frescas e mornas do calor desse sumo que ainda lhe pinta a calejada pele. A idade de Sabiano é desconhecida por todos os que o acompanham. Dir-se-ia possuir tantos demónios a habitar nas entranhas do seu carácter, tantos infernos a temperar-lhe os gestos e as barbaridades, que por cá já deve andar faz muito tempo. Depois desenha os seus actos de malvada e insana crueldade com a mesma naturalidade com que a fresca chuva do Outono cai nas paisagens abertas do leito do Mondego, junto a Montemor. Para si vai dizendo, quando as suas vozes lhe permitem alguma comunicação com o pouco de Raimundo que ainda lhe vai permanecendo, que o cansaço é tanto, as desesperadas e incontroláveis ordens são tão violentas, que só desejaria conseguir acabar com a sua vil existência. Sempre que o tentou, essas intenções invariavelmente acabaram em tragédia ou em desvairada loucura. Quem sofre com essas vontades de Sabiano são as almas de gente anónima que estão perto de si quando se permite a essas suas desgraçadas tentativas. O colega Mohammed, última vítima do Zanata, acompanhava-o na sua demanda desde que as recordações lhe alimentam as memórias. Amigos, não seriam, pois tal é palavra que para Raimundo nenhum significado possui. Contudo, era de todos aqueles homens que o acompanhavam, o mais fiel e antigo. Caminharam juntos por mais de dez anos nestes estranhos percursos de homens de combate, ora a soldo de Califas, ora a soldo de reis, rainhas, generais estrategas, ora a soldo das desviantes e sádicas alucinações de Raimundo.
Olhava para a cabeça do soldado que arrancara do seu corpo fazia alguns instantes. A imagem dela tornou-se difusa. Os outros guerreiros continuavam de pé, calados, observando todas as pequenas particularidades dos gestos do chefe sem se atreverem a questionar estas acções punitivas totalmente indecifráveis. O seu número era agora bem mais reduzido desde que entraram pelo sul da península, em direcção a Noroeste, faz já alguns anos. Nem os conseguem determinar, mas também pouco importa. Sabem, isso sim, que foram já dez os que acabaram por desaparecer nestas rondas destinadas por Sabiano Raimundo. Dez acidentes de percurso que acabaram por reduzir este número de combatentes mercenários ao longo destes anos, e que os vem fragilizando perante a franca possibilidade de ataques por parte das forças de el-rei, ou outras que lhes resolvam dar combate.
Raimundo continua a observar, desfocada, a cabeça e rosto de Mohammed. Levanta a mão que a agarra pelos cabelos bem alto. Começa com um estranho bailado em que a vai rodando a grande velocidade. Ao rodar desta forma a cabeça do combatente, sentiu a sua própria cabeça a ser arrancada do corpo, mas de forma muito lenta e indolor. Era como se esta levitasse, suavemente, como um pequeno colibri a pairar sereno no ar. Após este primeiro voo inicial, a cabeça de Raimundo começou a rodar violentamente, acompanhando a do árabe que continuava a ser agitada e rodada com toda a ligeireza pelo desvairado Raimundo, agora degolado. Durante todo o tempo que durou esta dança, a cabeça de Sabiano colocou-se frente a frente com a cabeça de Mohammed. As duas rodando a igual velocidade, com o Mundo desaparecido, desfocado, no seio de tamanha rapidez.
As luzes apagaram-se, o cenário escureceu como em noite de lua nova. As duas cabeças rodaram como planeta e satélite, num bailado que durou as horas de uma eternidade. Pelo menos assim pareceu ao cansado e doentio cérebro de Sabiano. Passados todos os segundos desta estranha rotina, as cabeças tombaram secamente no meio do chão, sem dar aviso prévio. Quando recuperou os sentidos, Sabiano sentiu, pela primeira vez desde há anos, uma leveza e tranquilidade de que já não possuia memória. Agarrada a si, bem apertada, trazia a cabeça de Mohammed como se fosse a sua, junto à zona abdominal.
Assim se quedou deitado, a olhar o céu estrelado por longos e largos minutos, como se o Mundo tivesse acabado e a sua alma tivesse sido carregada até ali, àquele mágico instante de um descanso.
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