terça-feira, 23 de setembro de 2008

Um interminável minuto de silêncio


106.

As cerimónias perfeitas são as que nos ficam cravadas na memória.
Alzira deixou de sentir frio, ou calor, ou qualquer outra temperatura no seu corpo. Estava apenas a usar o sentido da visão. Reparava em toda a magnificência de Gamélia. Como seria possível ter centenas de anos de idade. A experiência humana não nos capacita para entender esta realidade paralela sem que as dúvidas se levantem. A recente morte da mãe, o pouco tempo que passou desde o desaparecimento do seu pai, a sua grande amiga Marilyn, falecida de forma tão trágica, tudo conjugado com a tenra idade da sua adolescência têm sido um verdadeiro furacão de sentimentos a devastar a sua experiência de vida.
- Nesse teu bonito livro não consegues descobrir o capítulo que dá conta do lugar secreto onde esconderam a minha caixa? Olho para ti e não consigo deixar de pensar na idade que dizes possuir. Só me lembro destas minhas lembranças de pequena rapariga, e já essas acumulam um peso excessivo de amarguradas experiências. Como consegues tu lidar com séculos e séculos de memórias tremendas? São, seguramente, bem mais cruéis, pesadas e brutais do que se coleccionassem apenas algumas dezenas de anos de segredos.
Gamélia continuava muito serena, teatralmente embrenhada na atenta leitura do livro dos pesadelos, bebendo, com a maior das atenções, todas as palavras de Alzira.
- Não procures imaginar as mulheres-anjo através desse tipo de humano julgamento ou tentar analisar superficialmente aquilo que somos. Tens feito um óptimo trabalho até aqui. Vais ter de continuar a correr riscos, como os falcões selvagens. As personalidades fortes constroem-se desta forma. Delas normalmente resultam pessoas de poucas palavras, capazes de corajosos e valorosos actos de verdadeira coragem, sempre prontas a fornecer ajuda a quem dela mais necessita. As questões, todas as questões, acabam por se derreter em espuma nas areias húmidas das praias do tempo, à beira-mar. Cada uma das pequenas partículas de areia é depois filtrada por ele, seca com todo o cuidado e com delicada atenção. É depois colocada numa gigantesca ampulheta invisível que o tempo utiliza como máscara do seu comportamento. Pelo menos é o que está escrito aqui neste capítulo do livro. Quanto à secreta localização duma caixa que supostamente te pertence, nada li que desse conta desse objecto. Será seguramente um objecto muito valioso. Terá sido roubada? Terá desaparecido misteriosamente? Terá alguma vez existido? Onde ouviste falar de uma caixa que te pertence?
Alzira ficou sem entender se as palavras de Gamélia eram realmente verdadeiras. Afinal de contas tinha sido ela que, no Drakkar, quase lhe colocou a bonita caixa nas mãos. E como brilhou nas mãos da tia, quando ela desceu das nuvens a grande velocidade. É verdade que a realidade acabou por transformá-la no sapato estragado de Berta, mas não será menos verdade que aqui, em Husadel, nada do que faz parte dessa aparente realidade deveria fazer sentido. Mesmo as recordações das coisas que, supostamente, existem no Universo das coisas reais. Essas recordações deveriam ser tragadas e coadas por um passador que lhes desse respeitoso tratamento.
Uma gelada e húmida sensação começou a ser sentida por Alzira de maneira cada vez mais intensa. A luminosidade dos céus de Husadel começou a tornar-se cada vez mais ténue e difusa. Gamélia passou a ser uma figura sem contornos definidos. O rosto da mulher-anjo desaparecia numa mancha de tonalidade azul acinzentada, amorfa e desfocada. Cada vez ia sentindo mais e mais frio, a par de uma maior sensação de humidade, como se todo o corpo estivesse mergulhado num daqueles lagos gelados de Husadel. Sentiu pela primeira vez na sua vida uma forte sensação de pavor. Deixou de sentir o oxigénio a chegar-lhe aos pulmões. As luzes apagaram-se completamente da sua memória e uma horrível sensação de engasgamento provocou-lhe um enorme desespero. Desejava gritar e só conseguia sentir a boca, a garganta e os pulmões carregados de água. Não sabe como conseguiu encontrar em si forças para sair daquela terrível situação. Levantou com enorme dificuldade os braços em direcção ao céu. As mãos deram conta de duas superfícies lisas e escorregadias às quais se agarraram com as forças que conseguiram encontrar. Os braços receberam ordens para erguer o corpo de Alzira como se tivessem sido carregados por uma derradeira fonte de energia. De forma lutadora e atormentada, sentiu finalmente o seu corpo sair daquela condição de quase afogamento.
Alzira tinha acabado de tombar de maneira brusca e descontrolada no chão molhado e escorregadio do seu quarto de banho, que se encontrava totalmente inundado. Ao sair da banheira desta maneira tão abrupta, o som que provocou fez estremecer toda a casa como um trovão. Depois a casa ficou vestida de silêncio. Um silêncio intenso, cortante e profundo. Durante o interminável minuto que durou esse silêncio, Alzira recriou-se com os círculos que as lágrimas iam desenhando no molhado pavimento de cerâmica do quarto de banho. Uma após outra, marcavam o ritmo correcto para que a sua respiração se recompusesse.
Nunca mais se esquecerá da imensa tranquilidade e serena paz sentida durante esse interminável minuto de silêncio. Descobriu que muitas das nuvens do céu são carregadas com as salgadas lágrimas desses silêncios.
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