domingo, 28 de setembro de 2008

Jogo de palavras

110.

- Não sei o que poderá ser mais importante que o lar? Em casa, os pais servem-nos petiscos e tratam de nós sempre que necessitamos.
- O amor! Mais importante do que o lar é o amor. Sem que ele exista, não poderá existir um lar. E nunca te esqueças que uma avó sabe sempre tudo, pois é mãe duas vezes. Tens de acreditar sempre naquilo que a avó te disser!
- Mãe, por favor. A Francisca tem lá idade para lhe andar a meter essas ideias na cabeça! Com franqueza. Ela já começou a infringir algumas regras na escola e não precisa que lhe dê esses conselhos. E que ideia mais disparatada a de ter sugerido a possibilidade de um encontro com um total desconhecido no meio de Alcobaça. Belo exemplo que deu à sua neta! Falar com estranhos já é suficientemente perigoso e totalmente desaconselhável, quanto mais ainda ter tido a insensata ousadia de sugerir aquilo que sugeriu.
- Mamã, já chega! O senhor é muito simpático. Como é que alguém que tem um cão tão bonito como o dele pode ser má pessoa? A mamã é que me disse que as pessoas que tomam conta de animais assim bonitos são boas pessoas. É verdade mamã, e o que quer dizer insensata ousadia?
- O que a tua mamã quer dizer é que a avó arriscou um bocadinho ao ter dito ao senhor António para jantar connosco, caso desejasse. A avó não viu nada no senhor que pudesse indicar maldade ou perigo. Bem pelo contrário. Mas todo o cuidado é sempre pouco.
A conversa seguia estes contornos algo agitados entre as três senhoras, enquanto a viagem rumava a Coimbra. Francisca e Filomena sempre gostaram muito deste jogo que praticam enquanto as longas viagens de automóvel não chegam aos seus destinos. Cada uma, na sua vez, sugere com uma frase algo que seja uma verdade mais verdadeira do que aquela que a outra tenta depois sugerir. Estavam a acabar as primeiras frases do seu jogo, quando foram interrompidas por Esperança, que lhes suspendeu a disputa logo no primeiro minuto.
- Então avó, quem ganhou a primeira frase? O que é mais importante, um lar ou o amor?
Filomena pediu a Esperança que fosse servindo de juíza desta partida. Foi com algum entusiasmo que reparou nas luzes foscas do Taunus que as seguia, lá atrás, a alguma distância. Tinha percebido naquele homem algo que, tecnicamente, já não sentia havia muito tempo. E alguma “perigosidade” juvenil só poderia trazer cor à sua vida. Nada na vida de um ser humano se encontra condenado. E a última coisa que desejava para a sua vida era senti-la começar a estagnar, ou fazê-la seguir apenas ao sabor das marés do tempo.
- Então Esperança, a quem deve ser atribuída a vitória da primeira sentença? À neta perfeita, que invocou a importância extraordinária da existência de um lar, ou a da avó poetisa, que puxou logo da palavra amor?
Aguardou-se em silêncio a decisão da juíza. Demorada. Pensativa. Afinal, tratavam-se de dois argumentos de peso a lutarem pela vitória final.
- Empate! Acabou por ser um empate. Afinal de contas, quem pode decidir entre um lar ou o amor?
Francisca lançou uma sonora gargalhada! A avó utiliza, sempre que pode, o amor para obter vantagem na primeira disputa deste jogo. Faz parte daquelas coisas que acontecem de forma tão natural, como o próprio ar que se respira.
- Viste avó! Bem feita! Desta vez o teu truque não resultou. Devia ser proibido usar o amor logo na primeira frase! Mas a avó não resiste, pois não? A avó não consegue resistir a usar o amor na primeira frase do nosso jogo! Bem-feita! Ainda está zero a zero!
E o sorriso infantil de Francisca continuou a inundar aquelas vidas que seguiam viagem a caminho de Coimbra, como a água azul cristalina refrescou as sedentas gargantas dos Templários, agora abrigados debaixo daquele celestial firmamento em Ourém. Bem perto destes lugares, mas afastados por mais de oitocentos anos de memórias, seguem agora caminho estes destinos cruzados e distanciados em tempo, que não em espaço.
Por esta altura, Castro sentiu uma incontrolável vontade de ladrar, tão incontrolável como a vontade que um amante tem em beijar apaixonadamente o seu objecto de paixão. Os perfumes, odores e fragrâncias, todos, sem excepção, lhe trouxeram memórias de coisas passadas. Necessitará da sua vida inteira para poder descobrir a proveniência dessas histórias.
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