quinta-feira, 25 de setembro de 2008

Bem-hajas, companheiro

107.


O caminho restante até Coimbra foi realizado já com a noite a pintar o céu. Castro continuava atento aos movimentos de António Júlio. Quem, como ele, não conseguia entender toda a sublime paleta cromática daquele entardecer, tinha sentido uma vontade estranha em mirar o horizonte a Oeste. Estavam as nuvens lá ao alto tão deliciosamente aguareladas, pintadas por baixo com toda a rubra intensidade do sol, que se tinha mesmo agora acabado de despedir.
As senhoras levavam já umas largas centenas de metros de avanço sobre estes dois companheiros de viagem. O carro onde seguiam viagem era mais moderno e veloz. A condução era realizada com uma finura que António Júlio não conseguia plagiar no seu Taunus, cheio de vícios e vontade própria. Ao olhar para o céu assim, lá no horizonte, Castro acabou por repousar os olhos no rosto quase iluminado de Tó. A figura imponente, o olhar atento e perspicaz, traziam-lhe à memória uma outra figura de homem de quem se recorda muito vagamente. Não consegue deixar de sentir em si essa estranha sensação de equilíbrio entre esta canina existência, as lembranças desfocadas desse passado que não consegue alcançar, e as que vai agora construindo com estas novas humanas amizades. António Júlio sentia-se observado, como se o cão negro o estivesse a investigar recorrendo ao espírito e faro de fiel amigo.
- Olha lá ó ladino, quem te manda a ti cativares com tanta facilidade as pessoas que vagueiam ao teu redor. Já reparaste bem que, subitamente, desde que nos encontrámos na manhã daquele sábado, deixei de ser um só e caminhamos neste momento cinco almas unidas num trajecto de viagem comum. Estás a perceber alguma coisa do que estou para aqui a dizer? Afinal de contas tu não tens nada quatro patas rafeiras. A tua alma está impregnada de uma silhueta de afeição que se cola naqueles que tu resolves fascinar. És livre como o vento, se o desejares cumprir para ti. Gosto desta tua pele que se cola a ti como uma segunda e te transforma num ser vivo verdadeiro e tão esplendoroso. E ainda para mais, amigo meu. Bem-hajas companheiro Castro, bem-hajas!
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