domingo, 29 de junho de 2008

Corrida olímpica


75.

- Pareceria um crime não aproveitar os serenos perfumes desta temperada manhã! Os estranhos processos de eliminação mental colocaram bem distantes os trabalhos da faculdade que preocupavam as tias de Alzira. Registavam agora os doces aromas perfumados do campo das suas infâncias. A sobrinha já tão crescida, ainda não senhora, mas muito senhora da sua vontade e dos valores em que acredita. Tão frágil e simultaneamente tão poderosa em carácter. Sentiam ter sido a sua sobrinha atacada pela mesma obstinada e vigorosa marca dos Sousa Bessa! Outra ideia em recados lhe fazia zumbir o pensamento. E se Alzira fosse incapaz de suportar o peso dessa sua obstinada vontade? E se esse mesmo peso lhe fracturasse a capacidade de aceitação da razão?
- Alzira, meu anjo! É por ter por ti tamanha admiração que o digo, e é muito pessoal este meu pensar. Tenho de perguntar, Alzira! Tens de nos dizer o que te trás tão atormentada? Não faz para nós grande sentido essa fuga apavorada em corrida desorientada para perto do rio, tão longe daqui. Não faz para nós sentido, nem para a tia Carminho. Foi um súbito acesso de raiva? Uma paixão não correspondida? Uma amizade traidora, um acordo rompido de maneira insustentável? O que significou, afinal, aquela fuga?
A irmã não conseguiu disfarçar a cara de insatisfação. Fê-lo de maneira vigorosa, em voz alta e com profunda irritação:
- Mana! Então!? Façamos já de conta que nenhuma dessas questões foi por si colocada! Façamos de conta que estava só a pensar em voz muito alta! Tão alta que lhe conseguimos ouvir os pensamentos, mais nada!
Alzira olhou para trás e viu esta disputa verbal arranhar a perfeição da manhã. Não gostava nada de sentir as tias em discussão por sua causa. A importância que atribuíra ao que sucedera consigo era apenas da sua inteira responsabilidade. Jamais desejara que outras pessoas pudessem ver nisso motivo para amargos de boca ou tristes memórias. Seria necessário um rápido esclarecimento para dar contas da sua vida, talvez de maneira ligeira, ou seria melhor procurar mais complexas formas de dar conta das perplexas imagens que lhe encharcam as ideias? Não! Mais valia nunca do que tarde!
Ainda procura ela própria descobrir quem é Gamélia? O que significam, afinal, todas as eficazes imagens dos seus sonhos tão reais? Que bonita caixa é aquela que lhe desejam dar de presente os seus sonhos? Qual o nome da nova morada da sua grande amiga Marilyn? Que fascínio é este que sentiu esta madrugada pela primeira vez, no rescaldo do passeio realizado pelos dedos de suas mãos?
Olhou para a desordem das conversas que as tias iam agora provando. Sorriu! Não conseguiu deixar de se sentir importante. Era esta a prova segura de que continuava a ser uma menina bastante importante para muita gente. Ainda sentia que o era, pelo menos para as suas queridas tias.
- E que tal irmos ver se o cão do vizinho António ainda se lembra do sabor que tem correr atrás de nós? Vamos até lá? Deixem lá essa discussão sem sentido ficar aí estendida ao pé da horta. Vamos, despachem-se! Aposto que mesmo com estes sapatos de princesa de conto de fadas sou capaz de correr bem mais depressa do que as tias!
A pressão daquela corrida olímpica acabou por produzir o efeito desejado por Alzira na conclusão daquela descabida discussão. Rapidamente se apressaram três fantásticas corredoras, no meio de um verdejante e mal aparado relvado, a caminho do canino animal que lhes daria o sinal de meta para tão veloz competição!
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sábado, 28 de junho de 2008

Pela calada da noite


74.


A noite escolheu descer sem ter dado aviso. Não avisou porque todos, El rei Dom Sancho inclusive, não precisavam dessa prática para denunciar os sentimentos de preocupação que pairavam pela corte. As muitas mortes pela fome e pela peste, os mais diversos prenúncios de estranhos ataques de animais raivosos que espreitam ansiosos pelas negras noites de lua nova e outros tantos acontecimentos que todos gostariam de ver desaparecer, como a morte de mais catorze padres que auxiliavam a população doente. Dir-se-ia que este era um ano que todos desejavam ver rapidamente terminado.
- Espero uma coisa de ti meu valoroso pajem! Espero que venhas dar a devida importância a estes últimos acontecimentos pois seguramente eles assim o merecem. Temos tido a companhia da Luz de Nosso Senhor que nos tem dado provas da importância extrema em estarmos sempre atentos aos sinais que nos vai colocando pelas sombras do caminho. Vais ter de viver com isto por toda a tua existência. Tudo vai acabar por ficar bem, com os intervalos sentidos em dor nas devidas alturas. É esta a essência da Sua vontade, feita de genialidade e surpreendente clarividência espiritual, para sempre reconquistada com o poder supremo do Amor e da Fé na Vida.
Os cavaleiros Templários de Fernando Dias dirigiam-se já com destino acertado para terras de Coimbra. Todas as divinas manipulações, transformadas nos acontecimentos dos últimos dias, deram origem a esta nova viagem com rumo à capital do reino. O novo e importantíssimo acompanhante que agora connosco faz caminho, a isso deu origem e necessidade. São de incalculável valor os dotes premonitórios de Gonçalo de Arriconha, dir-se-ia mesmo que impares a todos os níveis. Os índices de confiança e fé subiram só com a felicidade da sua jovem presença. Ao sermos iluminados com o seu contacto, se com ele exercitássemos o simples prazer da conversa, revelavam-se perante nós as mais resistentes formas de antecipação aos estranhos poderes da mente, enraizadas em fé e crenças Cristãs. Era assim tão intensa e poderosa a sua capacidade em provocar o espantamento e a verdadeira admiração.
Foram também estes os motivos pelos quais Fernando Dias não deu conta do destino a seguir pelos seus Templários, nem de que consigo transportaria Gonçalo de Arriconha até à presença de El rei Dom Sancho I de Portugal. Ao abade João, prior de Ferreira, deixou um simples recado de amizade e lembrança em palavras Templárias de estima e benquerença. Pela calada da noite se despediram de Ferreira, sem ruídos ou maiores agitações. Apenas o trote das montadas que dali se ia agora afastando dava à escura noite a indicação de que aquelas não seriam as mais correctas horas para caminhadas galopantes, ou até de qualquer outra natureza. Assim se orientavam os Templários pela escuridão feita abrigo, a caminho de terras mais a Sul, lá onde o Mondego pinta vales verdejantes com a bonita paleta das suas águas refrescantes.
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terça-feira, 24 de junho de 2008

Conversas de mulheres adultas


73.

Transportamos as ideias com que construímos as vontades numa redoma de segredos. Alzira não se incomodou com o facto da mãe ter saído de manhã sem ter conversado consigo primeiro. Já estava habituada a este relacionamento distante da sua parte. Tinha sido mais importante a encomenda postal do que o sucedido na véspera. Ao mesmo tempo, esta significativa indiferença tranquilizava-a. A importância desses seus actos fica relegada para o relativo valor que lhes deve ser concedido.
As tias gémeas acabaram por responder, naquela forma muda, à questão colocada pela sobrinha. Um sorriso de surpresa, condimentado com uma pitada de candura, o quanto baste para serenar as vontades de inquéritos mais aprofundados. Foi através desta airosa forma de dar fugas aos intentos inquisitórios que ganhou Alzira tempo para apreciar, com maior atenção, as deliciosas gémeas, suas companheiras de infantis brincadeiras de antigamente. Já mulheres, já tão adultas. Os seus olhos reflectem ainda algum do brilho que carregavam quando criavam aquelas brincadeiras de bonecas em que Alzira era transformada na principal figura das histórias mágicas que inventavam. Ao crescer, essas mágicas e criativas inspirações carecem de alimento, tornam-se mais fugidias, retraídas pelas regras do adulto crescimento, como se alguém sadicamente se divertisse a aparar as asas dessas fadas de infantis comportamentos.
- Estamos já bem mais crescidas, não concordam queridas tias? Apesar de tudo, não posso deixar de sentir esta passagem do tempo como um sopro maléfico que nos vai roubando a existência e acrescenta tonelagens aos nossos cargueiros de memórias.
As tias ouviram e colocaram no rosto novo sorriso, agridoce, transparente na transmissão da confirmação das palavras de Alzira.
-Pois estamos, mas também estamos bem mais maduras e sabidas, pois essa é a mais-valia do desempenho dado nas lides do crescer. A irmã ia dando consentimento com o leve abanar da cabeça ao mesmo tempo que trincava mais uma deliciosa fracção do pão-de-ló. Olhava para a sobrinha e para aquela cópia exacta da sua figura e sentiu ali o tempo a segredar-lhe palavras ao ouvido, fantástico no seu lânguido caminhar mas que tudo varre e arrasta ao avançar.
- Credo meninas! Mas o que é que vos deu para estarem tão atentas a estas coisas do tempo? Parecemos aquelas senhoras velhinhas a pensar nos prazos que lhes vão ficando para dar vazão aos tricôs, caramba! Estarão a ficar xexés? Vamos mas é dar uma bela passeata e aproveitar o resto desta magnífica manhã de sol!
As senhoritas riram gargalhadas de prazer. Acabaram o pequeno-almoço numa mistura de saudáveis recordações infantis, com o acrescento na memória destas novas maravilhosas conversas de familiar partilha.
O Verão também serve para enternecer, morna e suavemente, as humanas existências que se abrigam por debaixo do seu manto acolhedor.
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segunda-feira, 23 de junho de 2008

O afago da amizade


72.

As palavras iam aparecendo a António Júlio, organizadas, pausadas, alimentadas pelo vento Norte que lhe despenteava a figura. Já não desejava outras maneiras de trabalhar os dias. Sentir esta acção revigorada em si dera a António Júlio o balanço gostoso de que necessitava há largos meses. Não restava agora qualquer dúvida. As certezas de transferências inspiradoras que se colam à raiz das luzes perfumadas destes medievos locais históricos dão a Tó a indicação de dias bem mais esperançosos. Castro aproximava-se de si de forma decidida após o assobio da intimação. Largava já António Júlio a caneta da mão para serenar os negros pêlos do cão. O afago de amizade passeava agora na sua cabeça.
- Estás cansado! Não resistes aos apelos destes lugares. Mal dou por ti a passear as patas pelas calçadas destes monumentos e já tu desapareces esbaforido pelas sombras da vegetação, procurando a tua paz de espírito. Castro olhava para o amigo, acalmando as vontades de corridas. O mimo sabia-lhe bem.
Cerrou os olhos momentaneamente para melhor sentir aquele momento em odores. O tempo travou, passou a caminhar bem mais lentamente. Foi como se uma magia lhe tivesse tomado conta dos sentidos. Aqueles afagos eram doces, retemperadores. Daria tudo para que aquele instante pudesse durar bem mais do que estes segundos de existência rara.
- Vamos andando? Bem boa esta manhã! Sem querer já se vai fazendo tarde para a bucha! Não me digas que não te vai fazendo falta a merenda, hem Castro? Um buraquinho no estômago a fazer a chamada para o repasto. Vamos lá embora que se vai fazendo tarde. Depois da merenda abalaremos em direcção a Coimbra. Aproveitar este nosso passeio para ir dar uma vista de olhos à faculdade da minha juventude!
Castro não se mexeu! Continuou tranquilamente a sentir aquelas carícias em si, lentas, doces, perfeitas! Os odores em forma de paz. Castro experimentou tamanho prazer em se ter assim sentido acarinhado, como só as crianças de colo chegam a sentir quando abraçadas pelo amor dos Pais. Deixou-se ficar para trás. O tempo continuava a passar a metade da velocidade, bem suave, bem tranquilo. Uma mão divina deu conta desse desarranjo carregando no interruptor do tempo com vigor, voltando a dar-lhe a correcta velocidade de andamento. Castro parecia ter acordado subitamente daquele gostoso torpor. Olhou na direcção de Tó que descia em direcção à saída do castelo. Correu na direcção do amigo guardando para sempre na lembrança, com zelo canino, os saborosos pactos de firme amizade que vão os dois construindo, como muralhas de irrepreensível vigor.
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domingo, 22 de junho de 2008

In šaʾ Allāh


71.

Foi marcado por súbitas vontades de médias viagens que Raimundo deu claras instruções aos seus para se colocarem a caminho da capital do reino. Sentiu que ia sendo a hora de arriscar colocar as reais figuras em sentido. Deliciar-se com o poder espantoso do terror e as intensas maneiras de dele tirar benefício para gáudio das suas vontades.
- Às montadas! Vamos fazer uso destas experiências de loucura sem regras para Coimbra. Todos juntos alcançaremos a fama e glória no terror que por essas bandas iremos semear. Corrigir as graças com as quais esses Cristãos se recriam. Julgam estar a salvo das continuadas mutilações e de nossos secretos intentos. Dar-lhes a provar dos mesmos venenos com que nos matam. Dar-lhes a provar essas tão saborosas sensações de tortura.
- Inch’Allah! Inch’Allah! Inch’Allah!
As vozes daquele grupo fizeram-se ouvir bem alto na tarde. Os olhares apontavam agora para sul, onde o próximo destino para as suas crueldades os esperava.
Raimundo guardara, sem motivo aparente, a mão decepada de um dos cónegos assassinados junto a Rates. O motivo pelo qual o realizou fazia-lhe agora sentido nas ideias. Iria utilizar aquele membro para dar início a uma nova época de estranhas saudações e avisos. Lá estava a voz que, de forma tranquila, lhe ia dando assim o comando nas ideias. Tinha de saber lidar com essa dor e solidão, não podia evitá-lo. Queria que parasse! Queria que desistissem dele as vozes dos seus sonhos. Nunca irá ser um homem decente.
Foi bom ter visto aqueles Raimundos a tomarem conta dos estranhos Sabianos de sua família, todos deitados com os cérebros à vista. Estavam à mercê dessa difícil mas tão simples tarefa! Cravar-lhes com firmeza a adaga nas memórias pintando assim a negro o irracional final das suas histórias.
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As superiores forças do Mal


70.

Não eram só as palavras de insustentável destemperança que não permitiam trazer em descanso a cabeça de Sabiano Raimundo.
Apareciam-lhe agora imagens de cumes gelados, bárbaros guerreiros que bebiam directamente de crânios, negras habitações onde os que lá habitavam eram atacados e colocados numa espécie de cama, de olhos vendados. Em seguida, meia dúzia desses bárbaros reuniam-se em seu redor e conversavam entre si sem que de suas bocas saísse qualquer som. As cabeças eram depois vagarosamente cortadas com estranhos objectos até que os cérebros das vítimas ficavam expostos aos olhos de todos. Os bárbaros que lhe apareciam neste retrato tinham o seu rosto, todos eram Raimundo. Entre todos os vários Raimundos procediam a uma rigorosa examinação, para anteciparem quais os próximos actos cruéis que iriam fazer acontecer. Partilhar com o Mundo inteiro estes tratamentos secretos que processavam nos cérebros daquelas vítimas, que mais não eram que outros Raimundos necessitados daquele ritual de autorizados procedimentos cerebrais. A disponibilidade demonstrada por este estranho mundo de obcecadas imagens em se cancelar definitivamente do cérebro claramente perturbado de Sabiano Raimundo, que agora sofria de alucinações e alteradas formas de custear a razão, era muito reduzida. Alguém parecia ter encontrado neste berbere uma área virgem a explorar para propósitos de indiscriminada crueldade e espectaculares desumanidades. O método decisivo com que as ordens lhe eram comunicadas dotava-o de uma clareza quase apaixonada em formas e procedimentos de acção. Nunca nele se antecipava hesitação, dúvida, ambiguidade ou qualquer gota de mínimo arrependimento.
Sabiano acreditou que aquelas comichões sentidas em seus braços podiam ser confundidas com as desordens sentidas nos seus hemisférios cerebrais e não se continha no alívio que a si mesmo ia proporcionando, com a mesma intensidade das imagens que lhe vestiam as ideias. Admitiu que tantas imagens de si não podiam representar a realidade. Era extraordinariamente inteligente para acreditar naqueles enganos da alma. Ia compensando o forte formigueiro com o constante esgadanhar dos diversos cérebros que lhe apareciam em imagens e sem vergonha. Sentia que era inevitável e ao mesmo tempo errado. Como se podia dar ao luxo de ter Raimundo a dissecar Sabiano. Há meses que ouvia as vozes a gritar ordens dentro de si. Agora trazem-lhe também imagens-problema cuja resolução será o único alívio possível para tamanha paranóia. Alguém muito superior lhe criava padrões continuados, não em sons mas em imagens, que lhe mantinham as acções ordenadas como se Sabiano mais não fosse que um orientado fantoche programado por superiores forças do Mal.
Ao acordar deste seu sono agitado viu que as unhas e os dedos das mãos tinham namorado com quase todas as artérias de seus braços. Beijou depois os dedos, pensou em todas as vidas que já por si foram despedidas e sentiu pela primeira vez que era portador de uma estranha doença da alma que lhe aterroriza a existência desde que se lembra de ser Raimundo.
O sabor ferroso dos seus dedos, esse, continuou a saber-lhe ao mais delicioso de todos os doces sabores da vida.
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sábado, 21 de junho de 2008

A caminho da capital do reino


69.

Nas conversas demoradas pelas divinas razões existentes nas palavras de Gonçalo de Arriconha, se adivinham tempos em que figuras muito humildes e de irrepreensível humanidade cristã surgirão com novos padrões de modéstia, candura e esforço, na procura do correcto desempenho das práticas da vida de Cristo. Tais figuras terão tremenda responsabilidade na visão distinta e despida das apetecíveis terrenas riquezas com as quais as actuais cúpulas religiosas se vão actualmente “embriagando”. Serão esclarecidas por Nosso Senhor, segundo as palavras de Gonçalo, através de uma variedade de sinais, visões, divinas indicações ou outras formas sagradas com que Deus lhes fará chegar a sua mensagem e destino. As exigências exigidas na defesa do verdadeiro reino do Senhor, constantemente ameaçado pelas humanas formas de actuar, fazem também com que este Ocidental reino de Portugal, tão recentemente criado, seja iluminado e abençoado por Deus. Foi esta jovem nação e suas gentes consideradas de vital importância para o futuro da palavra do Senhor.
Assim ia Adalberto fazendo caminhar as palavras do jovem num registo escrito para que nada se pudesse esquecer daquele encontro, para que o necessário exame desapaixonado que a presença forte em carácter de Gonçalo de Arriconha lhes configurava, com espantosa firmeza e sábio fundamento. Era por demais evidente que Fernando Dias já tinha entendido, tal como Adalberto, que seria muito importante para este grupo de Templários de Idanha poder contar no seio do seu grupo com tão extraordinária companhia. São evidentes os dotes premonitórios do rapaz. A importância de que se revestem valida a extraordinária força da sua alma imensa, suportada por tão pequeno corpo de gente. Se El rei Dom Sancho I o conhecer contará com a força dos segredos que carrega. Os Templários se encarregarão de dotar tão franzina figura da protecção necessária e devida. Para tal deve Gonçalo ser consultado, dar conhecimento a quem o protege sob a alçada do bispado de Braga. Gonçalo, como se conseguisse dar conta destes pensamentos sobre acompanhamentos novos em seu destino mais próximo, saltou da cadeira de forma resoluta e em pé, com os olhos bem fixos nos de Fernando Dias assim falou:
- Mestre Fernando. Mais importante do que me conduzires secretamente e com a protecção devida à presença de El rei Dom Sancho I, será a rapidez com que deve proporcionar essa viagem. Seguramente nunca a sua real figura passou por um tão grande perigo de vida como o que agora paira sobre a sua coroa. Outras vidas, daqueles que lhe são mais chegados no lidar as coisas mundanas do dia a dia da corte, padecem do mesmo perigo de morte, pois assim o começo intensamente a sentir. Desaparecimentos estranhos de relevantes símbolos divinos, a aparição de outros igualmente divinos com misteriosas implicações, são já sinais das mudanças que se começam a conjugar no Reino de Nosso Senhor e da estratégica utilização deste nosso pequeno reino terrestre para dar passagem a essas importantes mensagens sagradas. Em Coimbra se conjuga a sorte deste Reino e de lá surgem sinais de importância vital para os destinos em Terra da palavra de Deus Nosso Senhor.
O mestre Templário ergueu-se sem nada dizer e olhou para Adalberto, que trazia no rosto a marca da preocupação. Dirigiram-se para Gonçalo, um de cada lado lhe ampararam os braços puxando-o com ligeireza para fora daquele lugar. Passaram por mim em passos apressados e deram comando para os acompanhar imediatamente.
- Não resta a mais pequena dúvida que o caminho que daqui seguiremos será o da capital do reino que devemos alcançar o quanto antes!
Foram estas as palavras que no final das mais de quatro horas de conversas secretas saíram, com a força da preocupação, da boca de meu senhor Fernando Dias!
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sexta-feira, 20 de junho de 2008

Manhã de convívio


68.


Maria do Carmo tinha saído cedo pela manhã. Foi levantar uma encomenda vinda do Ultramar na estação de correios local.
As tias de Alzira estavam a tomar o pequeno-almoço empenhadas em aproveitar a ausência da irmã mais velha para conversar com a sobrinha sobre os acontecimentos da véspera. Alzira tinha descansado pouco nessa madrugada. Como já é seu hábito, os preparos e cuidados que colocou na impecável organização do seu acordar, disso não deram sinal. A roupa escolhida com critério, a beleza de sua pele perfumada e delicadamente rosada com as sábias artes da cosmética. O cabelo impecavelmente escovado, brilhantemente solto por sobre os ombros de menina moça. Dois pequenos ganchos dourados criteriosamente colocados para deles obter o efeito pretendido. O olhar irradiava uma aura de rara inteligência, brilhando com uma intensidade misteriosamente feminina. Hipnotizava na sua azulada profundidade.
Assim foi ter com as tias que se encontravam no alpendre onde tinham colocado a mesa e as cadeiras por forma a poderem tirar partido daquela perfeita manhã de Verão.
- Alzira! Meu Deus. Como estás bonita! Vem, senta-te aqui e faz-nos companhia no que resta deste nosso pequeno-almoço.
A menina sorriu delicadamente, puxou para si uma cadeira, ajeitou a saia rodada do vestido por debaixo das coxas e sentou-se em frente às tias, que não conseguiram parar de a observar.
- É mesmo verdade! Tu não fazes ideia do quanto cresceste e te fizeste senhora nestes meses que passaram desde a Páscoa. É incrível, mas a verdade é que estás muito mais crescida, quer em pose, quer em beleza, como se tal ainda fosse possível.
Alzira notou que as tias estavam sinceramente admiradas e que a impressão que lhes tinha causado era real e intensa.
- A mamã não está? Preciso ter com ela uma séria conversa. Devo-lhe a explicação do inexplicável! Pedir perdão pelos meus devaneios e alterados comportamentos dos últimos dias.
As tias sorriram, trocaram olhares de complacência. Sentiram que em Alzira o Mundo de criança começava a deixar de existir e provocara este terramoto de sentidos e acções irreflectidas. Perceberam que o bom-senso da razão vai mantendo a alma da sobrinha numa tranquila estabilidade emocional com as eventuais sacudidelas do crescer.
- A sua mamã saiu ainda cedo pela manhã. Disse-nos que tinha de ir à vila levantar uma encomenda aos correios. Já não deve tardar em regressar.
Iam bebendo um fresco sumo de laranja enquanto entretinham os dedos com uma delicada fatia de pão-de-ló que lhes adoçava o matinal encontro. As perguntas iam sendo carregadas na camioneta das questões que lhes estava estacionada na garagem da vontade, prontinha a arrancar em direcção a Alzira.
- Queres conversar acerca dos motivos que ontem te levaram para tão longe daqui? Ainda consegues ver em nós as amigas de outros tempos a quem tu dedicavas segredos como se fôssemos as fadas-madrinhas das tuas histórias de encantar?
Alzira sentia a cabeça um pouco pesada. Ia bebendo do sumo que retirara do jarro para o copo enquanto pensava na resposta a dar às tias, que apenas procuravam dar-lhe ajuda.
- E as tias? Como vai a vossa vida lá pelo Porto? Conseguem ver em mim uma confidente, alguém com quem não se incomodam de partilhar os segredos e angústias? Como se fosse, como vós, uma igual leal amiga com quem podem desabafar?
Silêncio! Por instantes os voos dos pássaros eram os únicos ruídos que animavam musicalmente aquele encontro familiar.
Assim permaneceram as três, deliciadas na fruição daquela manhã de convívio.
Assim permaneceram as três, deliciadas por se encontrarem ali reunidas a desfrutar aquela esplendorosa manhã de Verão.
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Os diferentes códigos da palavra do Senhor


67.

-Vês onde estamos! Devemos concentrarmo-nos para não nos envolvermos em algo tão abominável. Alguém matou um padre!
Os olhos percebem a intenção dada pelo objecto. Dedos fracturados, pulso partido e violentamente cortado com, tudo leva a supor, um machado de lâminas duplas. A tensão sentia-se enquanto os dois eclesiásticos responsáveis pelas coisas de doenças analisavam o objecto que tinha sido largado, de forma intencional, junto a uma das entradas do Mosteiro de Lorvão. O mais novo de entre os dois sentiu um arrepio percorrer de alto abaixo o seu corpo enquanto o mais observador insistiu em cortar a mão desde o pulso até ao centro da palma com uma espécie de faca com lâmina de sua criação. Similares procedimentos de análise científica só mais tarde no tempo foram utilizados mas frade Mancussio, recentemente chegado a Coimbra vindo de Génova e agora estudioso das implicações surpreendentes da peste na cidade do Mondego, analisava cuidadosamente o interior agora exposto como se dali procurasse respostas para perguntas que, supostamente, a sua mente lhe ia colocando. Mandou lavá-la com óleos e álcool enquanto continuava a observar com cuidado a caixa onde tinha sido encontrada. Identificou e analisou pormenorizadamente todos os pequenos indícios da mão. O inchaço, a cor escura e o seu intenso cheiro a podre davam-lhe certezas de que o dono daquela mão estaria morto há dias.
El Rei Dom Sancho tinha requisitado estas estudiosas figuras ao Mosteiro de Santa Cruz para que lhe pudessem dar alguma luz sobre a proveniência, intenção ou até tentar descobrir quem seria o dono daquela mão largada no Lorvão. O padre Genovês considerou bastante estranho o crucifixo que a acompanhava. Era de cruz Bizantina notavelmente pintado à mão com riqueza de pormenor. Atrás da figura pintada de Cristo está o seu túmulo aberto, tendo ainda dois grupos de dois anjos pintados por sob as suas mãos. Cristo tem os olhos abertos, está vivo e venceu a morte. Por baixo dos pés de Jesus estão representados seis santos aparentemente desconhecidos. Talvez sejam Damião, Rufino, Miguel, João Baptista, Pedro e Paulo, todos patronos de igrejas na área de Assis. Estava esta parte da pintura muito danificada e não permitia uma mais ajustada identificação. São Damião era o patrono de uma pequena igreja onde Mancussio se recordara de ter observado uma cruz bizantina, exactamente igual a esta pequena e maravilhosa réplica que tinha agora na frente de seus espantados olhos. São Rufino era o patrono de Assis.
O Padre tremeu! Sentiu que estava a ser utilizado para receber sinal de que algo verdadeiramente grandioso estava ou estaria perto de acontecer. O seu corpo cedeu, as pernas perderam forças. Caiu sobre os joelhos desamparado. Tinha de voltar para Génova e daí para o sul. Aquela cruz deveria seguir caminho consigo e dela dar comunicação rápida ao papa Inocêncio pois foi essa a força da palavra que lhe aqueceu suavemente a lembrança. Rezou horas a fio procurando por mais iluminadas instruções. Comunicou todas estas experiências ao bispo em Coimbra, Dom Pedro Soares, que a El Rei Dom Sancho as replicou. Ficaram assim o Rei e o Bispo, durante largos instantes, pensativos nestas sinaléticas de coisas sagradas. Estava este novo reino a ser testemunha de mui importantes mensagens divinas. Não restam dúvidas a Dom Sancho que as cristãs terras Lusitanas eram utilizadas pelo Senhor para nelas fazer passar os diferentes códigos da sua Palavra.
Mancussio tinha partido pela manhã acompanhado por um séquito de uma vintena de importantes religiosos e outras militares figuras da confiança do Rei, todas envoltas no mais discreto secretismo. Aquele crucifixo bem como o portador da sua divina mensagem terão de chegar incólumes até junto do Papa Inocêncio III.
Seja feita a Sua vontade, assim na terra como no Céu!
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quinta-feira, 19 de junho de 2008

Perfume luminoso


66.

Fazia vento! Castro correu até lhe doerem as patas, a sorver aqueles odores de históricos locais. Os deuses que aos cães, de forma secreta e expedita, resolveram trabalhar as almas com tantos segredos infantis, deliciavam-se na observação das suas inocentes reinações. Lá andava o bicho, deliciado e retemperado, com a frescura da brisa que vestia aquele medieval lugar. Ao correr deliciava-se com o abrir de boca sorvendo, como água fresca, enormes garfadas de oxigénio que lhe abriam os pulmões em alegria. Observava Tó lá ao longe, sentado junto à muralha observando a paisagem, envolvido com o seu rabiscar. Travou a corrida. Sentou-se usando as patas traseiras para dar descanso ao negro corpo e ficou ali, afastado, a observar a figura daquela humana amizade novamente acordada para a delicada arte das palavras. Dava-lhe um real gozo verificar a maneira absorvida como António Júlio se dedicava à função. Conseguiu dar conta de um novo perfume trazido pelo vento Norte ao descrever invisível passagem pelo escritor. Fez-lhe chegar às narinas o ar carregado de brilhantes aromas. Deu-lhe vontade de ladrar, chamar pelo amigo, dar-lhe conta que ali estava a observá-lo. Travou essa sua vontade. Algo em si assim o avisou. Disse que não incomodasse Tó na sua renovada inspiração. Gostava de lhe sentir o semblante com novo brilho.
Recorda-se do odor da mão de Tó pendurada no banco de jardim. Nela farejou abatimento, desalento, a par de esperançosas doses de grande companheirismo. Foi este último sentir que em si guiou vontades em conhecer melhor esta figura. Nunca uma tão intensa fragrância a camaradagem suas células alguma vez tinham sentido.
Gostava de saber escrever. Deve ser bonito ter a capacidade de colocar em palavras e frases as ideias, os sonhos, aquilo que carregamos na alma. O rosto iluminado do amigo dava a Castro essa impressão. Os prazeres que sentia eram apenas de físicas performances. Agarrar mais rapidamente as latas escorregadias dos enfeites metálicos dos automóveis das senhoras. Correr, em ziguezagues fugidios, provas de velocidade e de fundo com amigos de quatro patas. Provocar humanas figuras de guarda, delas escapando com requintes de solidária e canina irresponsabilidade, alegrando as vontades com estes actos aventureiros de conquista ladina. Mas a alma dos cães não pode dar uso a humanos actos de criação.
Castro estava extasiado com a luz que descobria no perfume do escritor e desejou, de forma sincera, poder ser humano só por instantes. Queria dar conta do sabor dessa deliciosa magia que António Júlio voltara a descobrir dentro de si.
António Júlio gozava as suas novas palavras escritas em papel como límpido e saboroso fôlego dos sentidos. Deu lá ao longe conta de Castro que o observava serenamente. Sorriu. Castro pareceu retorquir. Um leve assobio saiu da boca do Tó, convocando desta forma ligeira o animal. O bicho levantou-se da sombra do seu retiro e foi andando em direcção do amigo, continuando a sentir nas ideias o perfume luminoso que o vento Norte continuava a carregar até junto de si.
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quarta-feira, 18 de junho de 2008

Complexa equação dos sentidos


65.

Do diário de Alzira, segredos guardados como relíquias imortais, pelo conteúdo, pelo trato dado, de adolescentes formas de sentir. As paixões exacerbadas, os exageros desmesurados, os receios em crescer, em sentir medos, em colocar a morte na ponta dos dedos, essa sensação de finito que ganha sempre contornos densos e pesados nesse patamar do humano crescimento.
O corpo ganha apetecíveis formas e confusas sensações. Alzira sentia-se como uma artista de circo. Uma engolidora de fogo e de espadas, jurando ser capaz de actos de magnífico assombramento com os quais colocava o público em delírio, ovacionando por largos minutos as suas audazes actuações. Não se sentia humana, nem conseguia perceber aquelas novas formas como suas. Subitamente, ao olhar para si, era como se uma vida dupla lhe vestisse as ideias e tomasse conta dos sentimentos mais escondidos. O fogo cuspido pela boca enlouquecia um público cada vez mais enfeitiçado pelas cores de labaredas inebriantes. Alzira delirava com estes seus novos poderes arrebatadores. As roupas que em si julgava ver vestidas eram de inspiração indiana, como as bailarinas hindus que, descalças, vão envolvendo os espectadores em misticismo brâmane, utilizando coreografias de La Bayadére.
Como podia Alzira explicar esta tamanha confusão de ideias, a não ser dando uso às secretas folhas de seu diário para nelas colocar as antestreias da alma. Não as desejava perder, não as desejava codificar em segredos de salvação. Não conseguia suportar estas alterações se não se detivesse por instantes nas suas escritas explosivas que iam rebentando como bombas nas perfumadas folhas dos seus diários.
Não fazia a mais pálida ideia de como os seus pensamentos lhe ardiam assim a função. Sabia que não existia pessoa alguma a quem tivesse coragem de dar a conhecer estas novas forças que cresciam como lava dentro de si. Surpreendentemente, as mãos passaram a ser suas apaixonadas ajudantes, concedendo-lhe internos prazeres que pensava serem de desencorajar pois pecaminosos lhe surgiam. O respirar tornava-se mais selvagem. Os dedos examinavam os espaços do prazer a correrem-lhe desenfreados por entre as suas pontas.
A razão recomendava-lhe comedimento. O corpo e os sentidos davam-lhe contrárias indicações, acenando-lhe como belos jovens feiticeiros nas clareiras de mágicas florestas de sedução. Depois das descobertas destes novos prazeres, depois de aberta esta caixa de Pandora dos sentidos, Alzira sentiu novo formigueiro nos dedos. Tinha de lhes dar alimento para as necessidades de escritura.
Com as sábias palavras com que tecia as conversações secretas das perfumadas páginas dos seus sonhos, este gigantesco segredo juvenil foi acrescentado à colectânea de registos com que vai alimentando os seus amigos fiéis. Esta complexa equação dos seus sentidos veio acrescentar à já conturbada agitação destes últimos dias, uma ainda maior desorientação de ideias. Mas a felicidade, essa, continua a ser construída por estas “estranhas pequenas coisas”, estes pequenos grandes segredos sem preço que nos são dados a conhecer quantas vezes sem o prévio aviso da razão.
Mais uma noite sem descanso!
Alzira acabou por descobrir que naqueles novos desenhos de constelações, lá bem alto, onde a sua amiga Marilyn agora respira, existiu uma conspiração política da responsabilidade da actriz. Foi por ela decretado que as divindades femininas fossem convocadas e lhe propiciassem assim, sem aviso, estas novas formas tão humanamente intensas de descobrir os escondidos prazeres de se sentir mulher.
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terça-feira, 17 de junho de 2008

Escalabitana inspiração


64.

Castro sentia tamanha felicidade na visita ao castelo de Santarém. Aquelas pedras davam-lhe uma imensa sensação de tranquilidade. Lá do alto percebe a cidade e o Tejo ao fundo, tão serenos. Correu com tanta vontade que por largos momentos perdeu António Júlio o bicho de vista, mas a tal já começava a estar habituado. Nasceu esta amizade com este código genético impregnado. Súbitas ausências, ora curtas, ora alongadas em tempo, por motivos de canina felicidade ou para resolução de assuntos caninos de vital importância para toda a Humanidade. Tó mantinha consigo uma caneta Mont Blanc que lhe servia para ir registando ideias, locais, pequenas sensações, inspirações especiais. Tudo ia escrevendo num bloco A5 com capa de cabedal negra, de maneira muito descontraída, fazendo mais apelo ao sentido da visão com o qual ia bebendo a paisagem, as cores, as luminosidades tão próprias destes históricos monumentos. Nunca conseguiu explicar a si próprio, de convincente forma, este misterioso apelo que sentia pelas centenárias muralhas ou torres de menagem de fortificações medievas. A forte carga simbólica juntamente com a imagem de protecção secular que estes locais lhe transmitiam era apenas parte dessa justificação.
Começou a rabiscar ideias ao desbarato nesse seu bloco. Passaram já anos desde que se recorda das últimas palavras escritas adornadas ao sabor da poesia que carregava. Histórias a descobrir em si já não as desejava mais carregar em dor.
Mais Alzira, agora muito mais anjo tranquilo, lhe apareceu com ânimo recuperado em seu pensar.
- Aqui estou, rumo ao que falta! Era eu o favorito para tentar descobrir a porta da tua nuvem. Dá-me mais notícias deste caminho. As tuas últimas palavras, quase mudas, transportaram-me até aqui, quem o diria! O nosso tempo constrói-se com as memórias do que já se gastou e com os sonhos do que falta construir. A tua luz caminhará nessa memória dos tempos gastos, tão amigos, e ilumina agora os sonhos ainda possíveis da estrada que continuarei a percorrer. Agora bem mais esperançosa, como sei que me aconteceu, e porque o mereces, dedico-te esse caminho em falta com todas as nossas forças. Nossas e não só minhas, pois em mim carrego a força que me soubeste ensinar a construir!
As guerras travadas nestas muralhas, cobertas de vigorosos actos de coragem, com exércitos de humanas gentes, soldados que nunca desejavam receber o sabor das derrotas, fossem eles defensores de que causas fossem, estavam bem vincadas na dureza do castelo, na sua imponente militar figura.
O céu por cima, o rio ao largo, a cidade ao fundo, o horizonte a toda a largura da paisagem. Castro continuava desaparecido pelas históricas cercanias do lugar.
As ideias para um novo trabalho começavam a chegar em forma de imagens à cabeça de Tó, quase sem dar por isso. Os processos iniciáticos de inspiradoras sessões não se conseguem, de todo, explicar. Cada sentido acto de inspiração é quase como divina forma de sentir. Esta “crise” criativa parece assim ferver na alma de cada artista, seja ele actor, pintor, escritor, arquitecto, músico, escultor, ou nómada observador das variadas substâncias da alma humana.
António Júlio começou aqui, no castelo em Santarém, a sentir de novo as cócegas desse calor.
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segunda-feira, 16 de junho de 2008

Uma imensa má fé


63. B.

A conversa mantida entre estas três figuras versou importantes visões premonitórias da parte de Gonçalo de Arriconha. Fernando Dias desejou que estas fossem dadas a conhecer a Adalberto. Testemunhar estes relatos de visões era de importância extrema para lhes dar devido crédito. Este Templário chamado por Fernando Dias era versado nas incumbências religiosas de avaliar as mensagens de divinas figuras, actos ou propostas de fé. Perante tudo aquilo que Gonçalo de Arriconha ia mencionando, Adalberto ia anotando com fervoroso rigor e delas ia fazendo comentário. A algumas colocava questões que considerava pertinentes para o relato havido. O pequeno rapaz foi dando conta de determinados assuntos de igreja que têm sido debatidos entre os clérigos de Braga desde que a sua influência e importância foi reconhecida por Inocêncio III, tendo, inclusivamente, alargado a Braga e não a Santiago o número de sufragâneas a seu cargo. Estes bispos desejam alargar o poder da igreja de Roma, aumentar a sua enorme influência, as riquezas em rendas, oferendas, domínios e, pelas conversas escutadas por Gonçalo, estas pretensões não deverão olhar a meios para que os fins sejam alcançados. Segundo ele, muitos são os actuais interesses em jogo por toda a Hispânia, Europa Central, Península Itálica e as terras do próximo Oriente. As fés contrárias às da fé Cristã terão tratamento devido, com instruções papais para eliminar, se tal for necessário, todas as outras divergentes formas de fé. Estes intentos não fazem prever bonança nos tempos que por aí chegarão. Serão os homens e mulheres justos, figuras santas por serem santas as suas humanas atitudes Cristãs, que em breve ganharão extraordinária importância pela generosidade com que darão as suas vidas ao serviço das reais causas Cristãs. Muito sangue irá ainda ser derramado. Muitas violentas mortas serão aplicadas tendo no seu baptismo a palavra do Senhor, utilizada com imensa má fé. Para estas próximas semanas previu ainda Gonçalo que a primeira das intenções da quarta cruzada, que caminha em direcção a Constantinopla, será totalmente afastada do seu intento primeiro. Muitas mortes e tristes resultados para a história de Cristo desse facto resultarão. Adalberto ia dando conta, com tristeza no semblante, que todas estas afirmações iam sendo confirmadas por Gonçalo com firmeza do verso e uma clareza de espírito assombrosa para alguém tão novo em idade e parecença.
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Interlúdio em Ferreira



63. A

O Templário Adalberto encontrava-se em repouso junto a uma zona do estaleiro de Ferreira de onde se podia admirar toda a grandiosidade da construção do templo. Um dos arquitectos de Castela dava-lhe indicações acerca do andamento dos trabalhos. Apontava para uma zona inacabada do tecto do edifício. Ia desenhando com a mão direita invisíveis linhas no espaço, pretendendo com elas dar ideia ao templário de como ficará a obra após a sua conclusão. Aproximei-me de forma tranquila e aguardei pela conclusão das explicações que o arquitecto ia fornecendo ao Templário. Entendi, de algumas de suas palavras, que o monumento trazia preocupados alguns dos pedreiros da obra pela delicada exigência ornamental dos capitéis. Alguns artífices e mestres vindos de Coimbra teriam tido dificuldade em entender as maneiras distintas de trabalhar a pedra por parte dos seus congéneres de Castela. Também a exigência, em matéria de engenharia, dos trabalhos de levantamento da abóbada da capela-mor, têm atrasado a obra e colocado problemas que só um árabe da sua equipa de mestres pedreiros parecia conseguir resolver.
- Senhores, desculpem interromper vossas mercês! Mestre Fernando Dias, meu senhor, ordenou-me de junto a si vir dar conta que deseja vossa presença para tratar importantes assuntos. Venho também conceder-lhe companhia e indicar o local para onde nos devemos dirigir.
Adalberto despediu-se informalmente do arquitecto, dirigiu-se a meu encontro e juntos avançámos para o local onde Fernando Dias e Gonçalo de Arriconha se encontravam. Depois de cinco boas centenas de metros termos percorrido chegámos junto ao abrigado local. Entrámos, com Adalberto á frente.
- Senhor, aqui estamos, conforme seu pedido.
Fernando Dias deu-me sinal para voltar a meu exercício anterior. Indicou a Adalberto um local para se sentar, olhou com gravidade para o pequeno rapaz e deu continuação a conversas que foram mantendo até já a noite ter descido sobre Ferreira.
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domingo, 15 de junho de 2008

Os fiéis amigos do reino


62.


Nada vem por acaso. Os tempos que correm são vividos em sobressaltos tamanhos. Fernando Dias chamou-me de dentro da pequena construção onde se reunia com Gonçalo de Arriconha.
- Valoroso e fiel pajem, peço-lhe que vá rapidamente chamar o Templário Adalberto pois dele necessitamos serviço. Vá, e assim que cheguem apresentem-se a minha presença.
Assim o fiz. Os Templários estavam agora em diversas tarefas de apoio aos religiosos. Alguns preparavam as montadas, limpavam as armas, tratavam de preparar os diferentes tipos de mantimentos necessários para o que ainda de nós aguarda esta missão. O Templário Gabriel, um dos mais idosos do grupo, juntamente com Patrício de Zamora, trocavam conversa numa sombra que lhes protegia os corpos e os rostos. Os seus elmos e armas descansavam junto a eles dando conta do espírito mais liberto que os cavaleiros já em si carregam. Eram estes dois templários dos mais nobres em porte e conversa. Todos lhes dignavam a maior das admirações e respeito. Segundo constava, a estas duas figuras, mais de quarenta anos em serviço de cruzadas e da ordem templária carregavam os seus corpos. Suspeita-se que Gabriel de Béziers tenha sido um dos mais proeminentes defensores de Jerusalém aquando da sua tomada pelas forças de Saladino. Essas memórias, contudo, nunca ninguém ousou indagar ou descobrir. Gabriel jamais as terá referenciado ou delas dado conta, salvo ao próprio Fernando Dias. Há quem diga, mas disso não se pode fazer fé, que foram tantas as vidas humanas que ceifou, tantas as que protegeu, tantas as que não defendeu, que jurou dedicar o resto de sua vida, até falecer, a penitenciar-se para remissão dos pecados. Esteve os últimos quinze anos em quase total silêncio por via dos votos realizados. Encontrou em Fernando Dias e nos seus Templários a luz do seu destino. Dizem que continua secreto e introspectivo nas formas e trejeitos e que é o mais fiel de todos os fiéis templários do grupo. Ele e Patrício de Zamora. Este último, sabem todos que assistiu, ainda jovem, à assinatura do célebre tratado entre o pai de Afonso I de Portugal e o Rei Afonso VII de Leão e Castela e Imperador de toda a Hispânia. Foi aí reconhecida a passagem a novo reino de Portugal ao condado Portucalense e fizeram de Dom Afonso Henriques novo vassalo da Santa Sé. Sendo o pai de Patrício de Zamora devoto amigo de um arcebispo de Braga, acabou por enviar Patrício para as terras do novo reino e aí dar-lhe educação. Também acompanhou, mais tarde, tal como Gabriel de Béziers, os cruzados e a integração na ordem templária, onde juntos permanecem agora às ordens de meu senhor Fernando Dias, quase como inseparáveis irmãos de sangue. Aliás, irmãos existem que em nada se aparentam em relacionamento com a destes dois nobres cavaleiros Templários que na verdade não o são. Quanto a Adalberto, era figura bem mais nova e extrovertida, muito hábil no manejo de bestas, espadas e de toda a arte de cavalgar. Servia em Idanha vindo de terras mais a Sul. Em Santarém tinha seu pai dado luta na conquista da cidade. Acompanhou depois Gualdim Pais em toda a enorme tarefa de edificação do convento em Tomar. Esteve ainda com eles seu Pai, mestre Gualdim, Fernando Dias, entre tantos outros Templários, em 1190, na defesa do Mosteiro contra o invasor muçulmano ajudando assim a evitar ataques mais furiosos a Norte da cidade, onde o filho de Al Mansur tentava reconquista de território para a causa muçulmana. Toda esta mui nobre gente, acompanhada por fiéis e serviçais nobres homens dedicados à causa do templo, dotam este grupo de homens de uma nobreza de causa e de carácter como desde há muito não se via no seio da nação cristã. E estão aqui reunidos, neste reino tão jovem, auxiliando-o de formas tão rigorosas e protegendo de maneira verdadeiramente admirável nosso Rei Dom Sancho I.
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sábado, 14 de junho de 2008

Humanos pensamentos Reais


61.

El Rei Dom Sancho não conseguia serenar a sua temperada personalidade nestes dias de peste. A morte de mais de uma vintena de cónegos do Mosteiro de Santa Cruz, que auxiliavam o povo na dor e que ministravam os sagrados sacramentos, maior raiva lhe causava. Como era possível que em tão sagrada e nobre causa de auxílio ao próximo, se findem assim as vidas de quem os defende e ampara? A tudo isto e a muitos outros assuntos de estado, de índole religiosa e política, de particulares e régios poderes, de intensas e nem sempre justas imposições papais, de estranhos relatos chegados de Veneza acerca de acordos à revelia do Papa Inocêncio III para alterações aos planos iniciais da quarta cruzada a Oriente, de estranhas e muito cruéis mortes de frades e religiosos a Norte, mais a de quarenta habitantes de uma aldeia inteira, vítimas de uma estranha e indescritível chacina. Nada trazia, por estes dias, a paz de espírito que os quase cinquenta anos de idade da real figura já ansiavam. Também a Infanta D. Teresa, desde o anulamento do seu casamento com Afonso IX de Leão, tem sido de difícil trato na maneira como tem lidado com as alterações que impôs no Mosteiro em Lorvão, passando agora a ser apenas regido por monjas e de ordem Cistercense. O Rei tem tido alguns dissabores, pois ama verdadeiramente a sua infanta, filha mais velha, e sofre como Pai extremoso, as agruras sentidas pela filha nas exigências impostas por Inocêncio III e pelo próprio Rei de Leão, seu antigo genro.
O Rei sabe, pois sucesso têm tido as secretas formas de fazer chegar notícias sobre a missão de Fernando Dias e seus templários a Norte, que as figuras que deseja ver desaparecidas, continuam ainda as suas acções miseráveis. Os cobardes actos de guerrilha desse bando de criminosos chegaram já há algum tempo ao conhecimento régio. Desde os tempos de Pinhel que suspeita de actos não isolados de um grupo de marginais, que acredita agora, sempre terem estado a soldo de Afonso IX de Leão!
A vista que tem à sua frente de Coimbra é perfeita, mais tranquila e cenográfica seria seguramente difícil. As obras da Sé Catedral correm a bom ritmo. Os arquitectos franceses que tão bom trabalho vêem realizando, tinham novamente chegado de Lisboa para darem conta de alguns detalhes e pormenores de melhoramentos nas estruturas finais dos claustros. O Mondego corria livre e esperançoso!
Se as tarefas mais nobres de perpetuação de divinos acontecimentos correm de forma satisfatória, porque lhe responde Deus Nosso Senhor com estes dias de peste, lhe mata os fiéis e a quem, de tão santas formas de agir, fez também em santidade o percurso de suas vidas? Porque levou, em último sacrifício, o Seu próprio Filho? Porque mantém em poderes tão elevados figuras como a deste papa Inocêncio, que enriquece a igreja de Roma de formas tão desumanas, que tanta dor e agitação vem causando, que não se digna a olhar o seu rebanho, o rebanho de Cristo e de Pedro, conforme no início a Santa igreja Cristã, pobre e intensa na aplicação do espírito de Deus, assim designou?
Pensa para si, Dom Sancho, que estes são pensamentos hereges. Não fosse ele a mais importante figura do reino, quem deve, senão o próprio, com cuidado supremo, temperar, com brandura, serenas calmarias nesses pensamentos impuros. Qual é o peso desse crime? As vozes de pensamentos humanos serão por Deus escutadas, como tal… a resposta a estes trágicos dias e aos sucessivos relatos de tragédias no reino e além dele, tornaram Sancho convencido que seriam estes seus pensamentos mais incautos, os portadores destas divinas desgraças.
- Não haverá assim construção em Terra, conquista em Fé, pagamento em dádivas e peregrinas viagens a destinos sagrados que lhe possam aplacar a ira por via destas deslocações do espírito? Quem será então o herói de Sancho, meu Senhor? Quem será então o herói que fará com que este Reino possa viver dias de mais temperada luminosidade?
Estava assim perdido em pensamentos mais audíveis quando um mensageiro deu conta de encomenda através de real aviso dela feito.
- Meu senhor, El Rei Dom Sancho de Portugal. Por ordem da infanta Dona Teresa, sua filha em Lorvão, lhe fazemos chegar em mãos encomenda por esta via.
O selo de Teresa destruído de maneira rápida, um papel que a Infanta lhe escrevera, fazendo informação a seu Pai que um imenso horror lhe tinha aquela caixa provocado. Dela, um cheiro putrefacto emanava. Encontrara a Infanta em passeio matinal pelo mosteiro, aquela caixa junto à porta que dá acesso ao exterior do átrio. Todos os dias a usava para sair em passeio e oração. O cheiro causou estranheza, o conteúdo perplexidade!
Era uma mão decepada, os ossos no pulso esmagados pela violência utilizada ao dar uso ao instrumento de corte. O sangue já seco, o cheiro horroroso e por entre os dedos da mão um santo crucifixo. No dedo anelar trazia um anel de importante figura da igreja, aí deixado com a intenção segura de dar ajuda na identificação do dono desta mão.
-Trágicas são as vontades mantidas entre sábios homens destes desejos de mortes cruéis! Este sinal não é mais que uma ameaça aberta à vida de minha própria filha e, em última instância, uma ameaça séria à própria vida do Rei!
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Uma pergunta um tudo-nada indiscreta


60.


Ainda se sentia abalada com o voo náutico que o estranho sonho lhe proporcionara. A água estava fresca e sabia-lhe bem. Alzira sentia o seu corpo a pisar pavimentos mais sólidos do que o convés daquele sonhado navio. Houve momentos em que não distinguiu se aquilo que observara era sonho ou a mais pura das realidades. A imensa queda. As palavras perfumadas de Gamélia, a doce sensação fresca das águas do mar da fantasia, a gélida escuridão dos seus profundos abismos. Tudo tão perto dos reais sentidos que não podia ter sido mero sonho, não podia! E que bela caixa aquela que Gamélia segurava em suas mãos! Lembra-se Alzira de, por instantes, as letras de um pequeno puzzle se moverem lentamente até formarem o desenho com o seu nome na tampa do objecto. Não podia ter sido tudo invenção do seu inconsciente! As lembranças dos sonhos desaparecem ligeiras como o nevoeiro cerrado com o sol das manhãs. Mas estas suas lembranças de sonhos recentes teimam em não lhe abandonarem a memória. E quanto mais se recorda desses acontecimentos em sonho experimentados, mais fortes se tornam as imagens, os sons e até os odores que neles viveu.
- Alzira. Minha querida Alzira! Anda por aqui descalça no chão da cozinha?
A menina moça jurou que, por instantes, estas palavras assim ouvidas sem ter delas dado conta lhe pareceram iguais às da fresca voz da mulher anjo dos sonhos. Mas logo o timbre se tornou familiar e distinto. Era a Tia Rosário que dando conta dos moderados ruídos de seus gestos, desceu para ver o que se estava por ali a passar.
- Tia! Não se preocupe! Estou apenas a beber um pouco de água. Sinto-me ligeiramente febril e vim até à cozinha descansar as ideias. Estes dias têm sido muito agitados. Tenho causado bastante embaraço às tias e a minha mãe. Nem eu própria sei bem o que se tem andado a passar comigo!
Rosarinho não quis puxar conversa com a sobrinha. Era muito tarde, quase três horas da manhã desenhava o grande relógio americano de parede que adornava a sala de jantar. Seguramente não faltariam momentos mais apropriados para poder falar com Alzira sobre estes e outros assuntos importantes. A semana, afinal de contas, ainda mal tinha começado. Motivos para conversas, esses, são já em número bastante desde que chegou na véspera pela hora do almoço com sua irmã.
- Vou acompanhar-te e beber também um pouco de água. A noite está muito bonita. Lá em cima as estrelas parecem mágicas. É tão tranquilo olhar o céu estrelado nestas amenas noites de Verão. A mim dá-me sempre a estranha sensação de que somos observados. Que todos os seres que já por este nosso planeta Terra existiram habitam algures no firmamento e zelam pelas vidas dos que por cá agora moram. Cada estrela no firmamento podia muito bem ser um deles. Será isso o que significa infinito?
Depois de ter considerado que este não seria o mais apropriado momento para conversações, o certo é que para Rosarinho elas acabam sempre por se parecer como cerejas, doces e consecutivas.
- Acho que vou novamente subir até ao meu quarto! Necessito de dar descanso ao corpo Tia Rosarinho. Doem-me um pouco as pernas. Não me vai levar a mal, pois não?
A tia percebeu imediatamente a forma inteligente como Alzira se escusou assim a dar-lhe condições para conversas mais demoradas.
- Não meu doce, claro que não! Vou eu ficar por aqui mais um pouco a observar as luzes deste céu. Até já e durma um resto de sono descansado que bem o merece!
Alzira enviou um beijo amigo na direcção da Tia, em forma de terno gesto com a mão. Avançou em direcção às escadas. Subiu dois degraus muito lentamente, olhou por instantes para os seus pés descalços e parou. Virou-se para trás, desceu novamente os degraus em direcção à cozinha, agora de forma mais expedita e espreitando para dentro desta, encostada à porta, perguntou assim a Rosarinho:
- Tia, posso fazer-lhe uma pergunta um tudo-nada indiscreta?
Rosarinho, como que antecipando esta possibilidade, manteve o seu corpo na exacta posição em que se encontrava, de frente para a janela que dava para o imenso alpendre, continuando a mirar as estrelas.
- Sim minha sobrinha. Qual é a sua questão?
Alzira hesitou por brevíssimos instantes, quase imperceptível esta sua indecisão. Depois continuou:
- A tia acredita em anjos? Acha mesmo possível que seja real a sua existência? Podem eles aparecer e ajudar-nos a acreditar que tudo na vida, afinal, faz algum sentido?
Rosarinho manteve-se tranquila a olhar as estrelas do céu, imóvel. Apenas o copo ia levando à boca de forma serena, como se estivesse a procurar em si as palavras correctas para responder a Alzira. Foi então que a resposta se fez ouvir por detrás da menina, quase que por magia, sem que esta tivesse à espera, pois a questão foi atirada para dentro da cozinha e era dali que aguardava a felicidade da solução.
- Mas é claro que sim minha bela sobrinha, mas é claro que sim! Basta olhar para o seu rosto perfeito e para a maneira tão doce como tudo de si parece desabrochar. Só alguém desprovido de razão não vê logo que os anjos são criaturas indispensáveis para toda a existência humana, e alguns como tu, Alzira, são mesmo a mais humana e perfeita forma de gente na Terra.
Alzira corou! Jurou a pés juntos que não tinha dado conta da Tia Berta. A sua súbita aparição causou-lhe embaraço e emoção. Deu-lhe um beijo na face, um sorriso de menina e subiu de forma ritmada as escadas em direcção ao quarto. Deitou-se na cama e apertou a segunda almofada bem tenra no meio dos braços. Fixava o tecto do quarto. A imagem de Gamélia, que não conseguia apagar da sua lembrança, apareceu tão perfeitamente desenhada no rosto de Berta que quase lhe segurou os braços com vontade em descobrir se, afinal, a caixa em forma de coração sempre tinha secretos segredos para revelar!
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quinta-feira, 12 de junho de 2008

Lignum Sanctae Crucis


59.

- Senhor Fernando, o motivo pelo qual aqui me trazeis prende-se com a necessidade que em si viu crescer de procurar respostas para as palavras que lhe fui apresentando, não é assim? O mestre Templário acenou afirmativamente à questão colocada por Gonçalo de Arriconha. Depois de por breves instantes terem dado descanso à sede, Fernando Dias olhou para o infantil rosto do adolescente, ainda não refeito da forte impressão que esta figura tinha em si provocado. Passeou a mão esquerda pelo rosto entretendo as barbas. Vestiu a cara com um semblante sério e circunspecto e começou a conversa:
- Caríssimo Gonçalo, como calcula, tem sido extraordinária esta experiência! O facto de o ter conhecido, as formas com que adorna os seus gestos e palavras, a capacidade de análise às maneiras de ser e de agir dos que giram à sua volta são verdadeiramente notáveis. Revelam dotes ou dádivas tão impares que se mal utilizadas ou interpretadas poderão trazer dissabores imensos, não só à sua pessoa mas também àqueles que consigo vão lidando. A sua idade careceria ainda de muito tempo para o honrar com a sabedoria necessária para que esses dotes pudessem sair de si assim tão fluidos. Estes acontecimentos tiveram o mérito de confrontar meu meditar com a possibilidade de que o Gonçalo carrega algo de verdadeiramente divino em seu destino. É muito novo para que possa já agir dessa forma tão lúcida e sensata. Tão firme no transportar das certezas que alguns idosos sábios jamais experimentaram ao longo de suas vidas.
O rapaz permanecia muito tranquilo, sereno, sentado de forma recta. Suas pernas não atingiam o chão mas o seu olhar carregava o peso de segredos e certezas por revelar. Esteve muito concentrado nas palavras do Templário. Com as mãos pousadas na mesa que entre ambos repousava, olhar de moço e rápido verbo, respondeu:
- Fernando, Mestre Fernando! Não posso deixar de agradecer as suas palavras, pois nelas estão desenhados perfis de alguma admiração e espantamento. Não me leve muito em conta pois as coisas são somente aquilo que as coisas são. Tenho relevantes relatos para lhe transmitir. A importância de que se revestem é grande pois vivemos conturbados tempos de políticos e religiosos interesses que irão causar enorme devastação e variadas cissões dentro da própria casa do Senhor. São os símbolos sagrados, aqueles que em si transportam a verdadeira fé e essência do espírito Cristão, que nos compete preservar e defender a todo o custo. As nossas vidas nada são quando comparadas com a força das reais relíquias insignes e do poder que estas possuem. É nosso dever manter a chama do Cristianismo pura, como pura é a palavra do Senhor, como puros foram os seus ensinamentos e a capacidade miraculosa de fazer mudar as pagãs mentalidades de outrora. Ouvi a meu religioso professor, Frei Humberto de Poitiers, que Coimbra foi palco de um desaparecimento verdadeiramente assombroso já há alguns anos atrás, seguramente há mais de duas dezenas. Uma magnífica e nobilíssima cruz em ouro foi dada como desaparecida da Sé de Coimbra. Essa importante cruz foi depois resgatada pelo antigo bispo de Coimbra, Dom Miguel Salomão, que dela acabou por fazer doação para espólio da Sé em construção, de forma a conseguir incentivos ao financiamento de tão importante e valoroso monumento. Pelo documento secretíssimo que consegui ler, sem que disso tivessem dado conta as bracarenses figuras reunidas em plenário episcopal, essa cruz encontra-se ornada com as pedras do Santo Sepulcro, sendo uma maior e as outras mais pequenas. Além destas pedras, essencialmente preciosas no plano espiritual, atendendo à sua procedência, a referida cruz ostenta outras pedras do Monte Calvário. Ao centro, encontra-se a imagem do Cristo crucificado, artisticamente esculpida. Aos pés, um fragmento do Santo Lenho. Num lado, encontra-se a imagem da Virgem Mãe, de pé, junto à Cruz. Do outro, a de S. João. Esta preciosa cruz apoia-se numa pedra do Calvário que, por sua vez, tem sobreposta uma pedra do túmulo do Senhor, com uma relíquia do Santo Lenho, embutida, em forma de cruz e perfeitamente visível. Podemos dizer que esta artística cruz constitui uma genuína reconstituição do Calvário, não só pelas personagens representadas mas também pelos materiais utilizados. Acredita-se, com as forças que a vontade divina nos carrega em fé dedicada, que devem ser considerados como autênticos. Como compreende, é totalmente desnecessário insistir no simbolismo que lhe está subjacente em termos doutrinários e mentais e no seu interesse para o tema que nos ocupa. Se esta cruz for resgatada ou caso se possa saber a sua actual morada, também desnecessária é a explicação do poder e da extraordinária importância que a posse dessa cruz trará a seus portadores.
Fernando Dias estava seguro que estas palavras de Gonçalo procuravam de si a resposta que ele próprio desejava dar já naquele instante. Reveste-se de importância primeira a tentativa de dar mérito a esse documento que Gonçalo disse ter lido. Necessita de provas muito concretas e fidedignas pois se esse importante símbolo cair em erradas mãos, perder-se-á por anos incontáveis a possibilidade de dar o correcto uso a tão divino poder.
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Mem ramires



58.


Santarém aguarda as figuras de Castro e António com prazer. António Júlio tinha especial predilecção pelas terras com passado histórico ligado às épocas de conquistas dos primórdios da nação. Antes da chegada foi dando conta a Castro de como o burgo de Santarém foi tomado aos Mouros no longínquo ano de 1147 por um real exército saído de Coimbra composto por cerca de 250 homens, entre cavaleiros, alguns Templários e demais soldados. Um valoroso cavaleiro de nome Mem Ramires, que falava árabe, foi mandado pelo rei fazer o reconhecimento à praça. Dizem os relatos históricos que esta batalha pela conquista da cidade só foi dada em conhecimento às tropas na véspera do ataque. Todo o percurso foi feito pelo abrigo da noite, por caminhos escondidos das vigilâncias árabes. Ao cabo de quatro dias chegaram e permaneceram em Pernes, onde o rei rezou fazendo promessa a Santa Maria de Claraval em lhe construir santa morada caso esta o protegesse na batalha.
Castro estava atento a esta explicação histórica de António Júlio. Algumas das suas palavras soaram-lhe estranhamente familiares, apesar de as ter ouvido pela primeira vez. Voltou novamente o olhar para a paisagem rolante, para os pássaros que os iam seguindo, para as bonitas cores com que a já avançada hora da manhã ia colorindo os céus. Dizem que os cães são daltónicos mas os cães vêm as formas e as cores da mesma maneira que nós, só que a hierarquia de importância dos sentidos é completamente distinta da nossa. E continuou Tó com o pequeno relato histórico da conquista de Santarém aos Mouros:
- Pela calada da noite, bem tempestuosa e escura, segundo consta, guiados por Mem Ramires, deu este plano para encostarem à muralha dez escadas em local já por si escolhido. Queria lançar por lá uma centena de homens que dessem conta das sentinelas e corressem depois a abrir as portas aos que ficassem para trás em espera. Mas o plano falhou pois as sentinelas permaneciam bem atentas no seu posto. Tiveram que aguardar ainda algumas horas até que acabassem por ser derrotadas pelo sono. Uma escada foi logo içada. Por ela logo subiu Mem Ramires, o alferes-mor com pendão real e o soldado que devia atar a escada às ameias. Este alvoroço despertou uma das sentinelas. Mem Ramires estrangulou-o e gritou a bons pulmões:
-«Nazarenos!»
Depois reunidos e em conjunto gritaram por «Santiago!», arrombando brutalmente as trancas que seguravam a porta. O restante grupo que aguardava do lado de fora entrou de forma decidida, com o Rei à frente, pelo castelo dentro. Ao romper do dia estava já cativa toda a árabe guarnição, caindo assim Santarém no poder das lusitanas tropas.
Castro continuava atento às palavras de António Júlio. Com elas ia descobrindo nas escondidas escarpas das suas lembranças, caminhos lhe permitiam atingir locais ocultos que julgava serem impossíveis de visitar.
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Importantes memórias de voos passados


57.

A conversa com Gonçalo de Arriconha quis meu senhor manter em segredo. Deu informação ao cónego de Braga encarregue da sua educação que com ele iria manter importante diálogo e que disso não fizesse qualquer menção. O religioso, confesso fiel devoto e grande defensor dos novos interesses da diocese à qual pertence e recentemente alargada com as sufragâneas de Coimbra, Viseu e Porto por ordem expressa do papa Inocêncio III desde 1199, estava mais preocupado com a recolha e guarda de valiosos relicários. Não dedicou por esse motivo grande importância ao pedido.
A conversa entre Fernando Dias e o jovem Gonçalo foi de imensa importância para o desenvolvimento de todos os acontecimentos que a partir de então vieram a acontecer. Reconheceu meu senhor Fernando Dias ter realizado difícil esforço em manter todo esse secretismo no período de tempo que considerou necessário para a salvaguarda do mesmo. A secreta conversação que os dois mantiveram prolongou-se por horas, até findar aquele cansativo dia de regresso. Num dos casebres mais ocultos do estaleiro de construção encontraram a necessária discrição e a mim deram ordens de vigia. Que nenhum elemento os incomodasse, só por motivos extraordinários, de vida ou morte como me disse meu senhor. Um sólido silêncio foi com eles e a Natureza assinado avisando que esta conversa possuía temática verdadeiramente importante. Preciosos foram esses instantes. Os pássaros trouxeram amigos. Muitas espécies nunca antes por ali vistas deram aos mais atentos notícia da relevância extraordinária daquele encontro.
Ajudei naquilo que pude meu senhor. Senti, ao observar todo aquele espectáculo de voos soberbos, que dava custódia a santo acontecimento.
Castro estava hipnotizado a fixar o céu lá nas alturas. O Taunus tinha acabado de sair em direcção à estrada nacional em Vila Franca e deixado para trás a rápida estrada dos apressados. O cão não conseguia desviar a sua atenção das formações que os pássaros iam desenhando nos céus, lá no alto. Pareciam a lua cheia a acompanhar de forma bizarra as nocturnas viagens de ferrugentos animais de quatro rodas. A velocidade parecia copiada da máquina rolante. O cão estava embriagado com aquela sensação bizarra de “déjà vu”. Continuava a sentir uma total incapacidade em afastar o olhar que mantinha fixo naqueles animais aéreos. Qualquer coisa neles lhe transmitia impulsos de idênticas imagens já anteriormente percepcionadas só não conseguia trazer a si a exacta memória do local onde as tinha experimentado.
- Castro, de repente ficaste bem mais tranquilo! Deves ter dado conta de algo deveras extraordinário na paisagem da viagem! Ainda bem! Começava a pensar que tinhas ficado doidinho, tantas foram as vezes e as voltas por ti dadas sem descanso até termos feito saída por Vila Franca.
O bicho preto continuava tão consumido no voo dos pássaros e na tentativa de dar conta das anteriores memórias de voos que mal ouviu as palavras de Tó. Sentiu, contudo, que aqueles pássaros a voar lá no alto eram sinónimo de coisas importantes na sua existência, fosse ela a actual, fosse ela a anterior vida de pajem medieval ao serviço do senhor Fernando Dias.
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quarta-feira, 11 de junho de 2008

Misteriosas sensações premonitórias


56.

- Sabia que esta retirada de Ferreira teria regresso ditoso! Sentia eu uma amena sensação de paz. Dava-me o corpo assim sinais que validavam em mim essa certeza. Já não é de agora que meu corpo parece entender, através destas misteriosas sensações que dificilmente sei colocar em palavras, coisas assim estranhas. Antecipo resultados de contendas, doenças e maleitas. Até coisas mundanas como a capacidade da terra em dotar com proveitos serenos a quem a cultiva ou em antecipar catástrofes que as ponham em causa.
Fernando Dias mantinha-se concentrado na conversa com Gonçalo, mas conservava nele seguras distâncias na fé que desejava dar a tais confissões. O Mosteiro estava já à distância de um olhar. Os religiosos, arquitectos e demais acompanhantes sentiam agora e só agora a tranquilidade em forma de certeza.
- Sei aquilo que o trás por cá senhor Fernando Dias. A coincidência ou o esboço do seu destino fez com que vossos Templários acabassem por ter reais motivos para por cá ceder passagem. Não era esta a primeira das razões que aqui vos trazia em demanda. Mas disso nem a seu pajem deu ainda relato e contudo, tantas foram já as conversas que em segredo lhe foi tecendo na razão.
Fernando Dias não conseguiu evitar um olhar de estranheza lançado em minha direcção ao ouvir estas palavras a Gonçalo. Esperava alguma confissão desenhada nos músculos de minha face. Procurava a certeza de que com o rapaz eu teria quebrado aquele secreto pacto de confiança. De que maneira teria podido aquele jovem ter dado conta de tão bem guardadas informações? Em todo este vai e vem não se apercebera de um instante que fosse em que Gonçalo e eu tivéssemos estado a sós ou que ele de nós tivesse marcado rápida ausência.
- Não tente encontrar respostas a esta minha capacidade de ler acontecimentos a ocorrer. Outros existem que as gentes julgam bem guardados nos impenetráveis cofres de suas almas. Já lhe confessei, meu senhor, que nem eu mesmo consigo dar explicação a esta capacidade que vem em mim crescendo com o passar dos dias. O certo é que consigo decifrar qual a verdadeira e secreta razão da sua vinda a Ferreira. E digo-lhe que nada tinha que ver com a protecção que nos acabou por ser devida pela possível destruição do Mosteiro pelos ataques brutais de um grupo de sanguinários e bárbaros assassinos a soldo de Afonso XI de Leão.
Fernando Dias olhava agora para a pequena mas muito singela figura de Gonçalo de Arriconha com a certeza de estar perante um verdadeiro caso de vida. São estas figuras capazes de fazer o vulgar homem sentir vontades de veneração. Sabia bem, por própria experiência, que estes são tempos em que uma pessoa como Gonçalo de Arriconha facilmente faria crescer no povo a vontade em o transformar numa santa figura de veneração.
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As negras tonalidades da morte


55.


As imagens corriam demasiado dantescas. Sabiano dava calmaria às vozes que carregava em si. Ao fazê-lo tudo corria lento. Os movimentos e os sons soavam-lhe distorcidos. As preces e esgares de dor das vítimas não as ouvia. Transpirava abundantemente. Da testa caíam as gotas misturadas com o vermelho com que ia pintando a paleta. Os golpes de morte que ia aplicando eram controlados de maneira ritmada e com demónica frequência, um após outro, após outro, após outro e as vidas ao desbarato ia ceifando, sem critério. Dar alimento àquelas vozes e à sua necessidade de sentir, de sentir qualquer coisa que fosse, pois nenhuma dor terrena pelo seu corpo era experimentada. Os seus companheiros seguiam-lhe os gestos, as competentes formas de matar e infligir dores insensatas. Fazer sofrer física e psicologicamente as inocentes vítimas sem descanso, rindo, gritando, cantando, dando configuração expansiva a todo este banquete insano.
Os seus olhos inexpressivos. Dir-se-ia possuído, tão alheado de uma plausível realidade terrena se mostrava, tão ausente e tão compassado no infligir dos seus propósitos.
- Sentir, quero sentir, desejo sentir, desejo sentir desejo, qualquer coisa que me traga sustento e razão para a minha existência. Não vejo. Estou cego nesta dança de rosadas tonalidades de morte. Os olhos trago cerrados e as imagens continuam tão reais em mim, não consigo por isso acalmar estas vontades. Estão famintas de extinção, de mortes, muitas mortes para alimentar a voracidade das filhas destas vozes que me espetam os ferros na memória! Cumpria com todos os secretos rituais ao aplacar os últimos instantes de sopro de vida daquelas gentes de Gandra, onde Sabiano Raimundo descobriu o pasto para as suas alucinadas demências.
Não parava, não dava conta de cansaço, não existiam vivas gentes que escapassem às desvairadas formas de mortandade que ia exercitando. Juntou os escalpes em montes, as mãos decepadas num outro. Aplicava os cortes certeiros com um machado duplo nos tornozelos das ainda vivas vítimas, ceifando-lhes assim os pés que mandava colocar numa fogueira já ateada no centro da povoação por dois de seus serviçais. Os rostos dos restantes criminosos não podiam dar conta de benevolentes impulsos pois Raimundo sentiria neles esses propósitos e terminaria rapidamente com suas vidas.
Não se consegue entender no tempo a exacta medida daquele martírio. Foi de todos o mais perverso, bárbaro e pérfido que Raimundo e os seus alguma vez aplicaram até então. O rasto de destruição e sangue era tal que julgaríamos ter sido transportados para uma antecâmara do inferno.
Pegaram em mantimentos e em montadas de mortos, pilharam tudo o que por ali lhes deu proveito. Pegaram fogo aos casebres e outras habitações e de forma desesperantemente tranquila, como se este evento fosse absolutamente natural, abalaram sem certeza de destino.
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terça-feira, 10 de junho de 2008

O voo do Drakkar


54.

Estavam as ondas do mar muito suaves. Navegava-se de forma tranquila e no horizonte, para qualquer lugar que se olhasse, só um imenso azul. Confundia-se com o próprio azul do céu. O cheiro do mar e a fresca brisa salgada enchiam os pulmões com este perfume aquático. Os ruídos do enorme navio Drakkar a rasgar o oceano soavam como uma música tranquila, melodiosa, quase hipnotizadora dos sentidos. No céu nem uma única nuvem a enfeitá-lo, nem uma só, para que se pudesse dizer que os celestes deuses das artes estavam em alerta naquele dia.
Neste solitário cenário onde a tranquilidade parecia ter encontrado refúgio, uma figura de menina respirava o panorama junta à beirada do navio, com os cabelos a produzirem aleatórias danças ao suave sabor da aragem do mar. Fixou o olhar nas brancas ondulações que o barco produzia ao cortar o mar como se nelas conseguisse ler histórias de encantar. Assim permaneceu por tempos infinitos como uma estátua de Tussauds.
Os remos batiam num ritmo seguro e perfeito produzindo acelerado compasso à embarcação o que provocou na menina estranheza. Não esperava esta alteração à anterior tranquilidade da viagem. A velocidade começou a aumentar de forma gradual. A brisa ligeira passou a ventania, castigando agora o rosto da jovem que recebia também repetidos perfumes salgados lançados pelos remos do navio. Aguardava uma refreada nestes ritmos quando o seu compasso começou a ganhar ainda mais vigor. A embarcação ganhou tamanha velocidade que a rapariga ficou com receio que esta começasse a voar. Os remos acabaram mesmo por se transformar em gigantescas asas amarelas, de um amarelo dourado como o sol dos fins de tarde de Verão. O Drakkar subia agora ligeiro em voo controlado, flectindo um pouco sobre o seu lado esquerdo, contornando as alvas marcas deixadas lá em baixo no imenso oceano. Ganhou uma velocidade tão surpreendente que obrigava ao cerrar de olhos constante para que o vento não fustigasse os instrumentos da visão. Só pela popa do navio se podia observar a paisagem que ganhava desfigurados contornos como as pinturas de Bacon, tal era a sua rapidez.
- Não posso voltar, mas o tempo também é meu amigo! Está tudo bem, está tudo bem….
Repetia estas palavras vezes sem conta como se disso dependesse a tentativa em encontrar respostas científicas ao que com ela se estava naquele momento a passar.
- Não posso voltar, mas o tempo também é meu amigo! Está tudo bem, está tudo bem…
O enorme pássaro acalmava a sua fúria desacelerando de forma gradual e serena, sentindo na miúda uma solidão gigantesca, uma confusão e uma inquietude que desejava fazer desaparecer. As receitas que o gigante dos céus lhe desejava passar para as mãos, dando-lhe assim repouso aos receios que a consumiam, estavam guardados numa pequena caixa em forma de coração. Por fora trazia gravado o nome Alzira em letras com forma de puzzle, o que deixou estupefacta a menina. Entendeu que aquela caixa seria um presente para si. Gamélia trazia-a segura nas mãos e dirigiu-se calmamente para junto de Alzira que pareceu não estranhar este regresso do anjo mulher.
- Olá! Sabes que temos uma enorme vontade em te dar a conhecer o conteúdo deste segredo? Afinal de contas, o que aqui está guardado só a ti diz respeito. É a tua herança futura. Tudo o que de ti e em ti desejas obter. O que estarás a fazer daqui a cinco, dez, vinte, cem anos. As receitas e as respostas aos teus secretos anseios e às dúvidas mais profundas. Os porquês das tuas lágrimas! Está tudo aqui ao abrir de uma pequena cobertura com o teu nome gravado. Só precisas de sentir em ti coragem em voltar!
Alzira ficou estática, sem palavras. Queria falar mas as palavras não saíam articuladas da boca. Gesticulava furiosamente e tentava alcançar Gamélia, abraçá-la, sentir o seu toque, mas parecia ter um peso gigante do mais denso metal a pesar-lhe nos pés. Esse peso ficou tão forte, tão inaceitável, que o navio começou a abrir brechas no convés mesmo por debaixo de Alzira. Uma enorme abertura formou-se e Alzira desapareceu, deixando Gamélia com o presente nas mãos, órfão de aniversariante.
A queda de Alzira foi brutal. Os braços nem conseguiam mover-se. O peso que a sugava na direcção do mar era verdadeiramente feroz e ao entrar com violência no oceano, este engoliu-a para bem fundo das suas entranhas até onde a luz jamais conseguiu penetrar.
Gamélia assistiu a tudo isto lá bem do alto no Drakkar e sorriu. Sabia que este sonho de Alzira, pois de um sonho se tratava, mais não era que um secreto ritual de iniciação que os futuros anjos mulher têm de suportar. Nada é aquilo que parece. As histórias não se despedaçam sempre em finais felizes, tudo é sentimento. Um dia saboreamos o sabor da vitória, noutro, precisamos das lições contidas nas derrotas das coisas banais da vida para a fortificação dos seus alicerces. Isto já Gamélia percebera nos seus curtos oitocentos anos de existência.
Alzira estava alagada em suor. A sua cama parecia ter sido resgatada de um naufrágio mesmo há instantes. Tinha acordado sobressaltada. Um estranho sonho transportou-a até ao chão do quarto onde acabou por dar por si mesmo junto à cabeceira da cama. Passou a mão no rosto transpirado. A testa ardia.
Este Agosto tem servido a Alzira histórias tocantes e susceptíveis de lhe moldarem o futuro mais próximo. A sede que tem leva-a a descer as escadas em direcção à cozinha. Descalça, alcança um copo na cristaleira da sala e enche-o com a fresca água do jarro que repousava junto ao balcão da cozinha. Ficou ali a saborear a frescura daquele descanso e vieram-lhe à cabeça as imagens do estranho sonho que desligou mesmo à instantes da alma.
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segunda-feira, 9 de junho de 2008

Os milagres também existem


53.

Tudo estava pronto para a partida. Castro desde muito cedo que se ocupava com voltas e mais voltas como se antecipasse regalias supremas nesta jornada. António Júlio tinha dedicado as primeiras horas da manhã a terminar pequenas arrumações. Bolachas para apaziguar as vontades de mastigação, garrafas de água, dois mapas antigos, um casaco mais soalheiro e outras pequenas coisas das quais o cão já não sabia que uso lhes daria o amigo.
- Vamos lá Castro? Tudo pronto para arrancar daqui para fora? Vamos seguir em direcção a Sacavém mas em Vila Franca saímos pela estrada nacional pois de auto-estrada não se respira a paisagem.
O velho Taunus brilhava na luz desta manhã como se tivesse rejuvenescido das décadas que já possuía. Parecia também ele revigorado com esta viagem. Para que serve um automóvel se não for para viajar e prover os seus ocupantes com o conforto e a segurança necessária para alcançarem os destinos desejados. Não se pode calcular ou quantificar a alegria que neste momento ia na cabeça do cão! Uma criança antecipa com jovialidade incontida o nervosismo que uma simples mudança de ares comporta. Este passeio, sem que o conseguisse explicar, trazia a Castro imagens e reflexos de luz que na sua memória pareciam acordá-lo para recordações das quais não possuía noção.
A chave foi rodada na ignição. O motor acordou com firmeza e os olhares dos amigos cruzaram-se com satisfação. O dia estava azul e o trânsito ajudava à festa. Que mais poderiam estes novos camaradas desejar senão uma óptima jornada a caminho de uma esperança bem mais arejada. É destas pequenas coisas da vida que, sem nos apercebermos, se cravam as imagens e odores para memória futura como se os reflexos desses instantes permanecessem para sempre colados nesse álbum de perfumados cromos imemoriais.
A mudança foi engrenada e a estrada passava agora como um pacífico tapete rolante por debaixo da viatura. Castro não sabia se colocava já a cabeça de fora da janela ou se deveria manter-se ainda sereno, apesar de assistir a cores e desviantes maravilhas a chamarem pelo seu nome de todos os lados das janelas da viatura. A primeira paragem estava destinada para Santarém. Por volta das onze estava prevista a chegada à capital do distrito. Tó teve o cuidado de atestar o depósito do Taunus na véspera para evitar algum atraso na saída da capital.
- Então Castro, vamos lá sentir o pulsar deste nosso País. Quero ver até que ponto as paisagens me conseguirão dar o retorno em personagens para as novas histórias a construir.
O cão mantinha o corpo alegre nas reviravoltas que ia dando para trás e para a frente no carro. Ora espreitando pela janela da retaguarda da viatura, ora pelo vidro da traseira do condutor, ora pelo vidro da porta do pendura, Castro mantinha uma atenta vigilância a todos os detalhes da saída de Lisboa. Os ruídos dos pássaros de ferro a aproximarem o corpo da Portela, as sirenes das apressadas ambulâncias com escondidos destinos a socorrer, as árvores que desaparecem loucas numa corrida desfocada pelas beiras dos passeios da estrada, as crianças que lhe iam acenando festivamente dos carros onde habitavam, alguns outros cães que, como ele, se adaptavam como podiam àquele nervoso ambiente rolante, enormes viaturas com gigantescas rodas do tamanho de montanhas, enfim, a tudo naquele espantoso ecrã em movimento ritmado ele conseguia dar atenção. Toda esta intensa circulação ia dando sinais a Castro de que, afinal, os milagres também existem.
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