sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Bafo dos infernos


102.

Era sufocante o calor naquele fim de manhã. Atacou em cheio o grupo de cavaleiros Templários de forma impiedosa, já com Ourém lá longe à distância do olhar. Não é possível descrever com a devida correcção a forma asfixiante como aquele ar quente secava as gargantas de todos os seres vivos que avançavam na direcção das muralhas. Bailavam no horizonte, tamanha a violência do braseiro. Dar conta da imensa dificuldade causada pelo forte estio, que a todos apanhou de surpresa, pela maneira sorrateira e rápida com que caiu naquele dia e assim se fez anunciar, é dar conta do próprio bafo dos Infernos.
Passaram poucos dias desde a saída do grupo de Coimbra em direcção ao destino traçado por el-rei D. Sancho. Nenhum deles se tinha sequer aproximado em temperatura ao Infernal e seco hálito de hoje.
- Nem uma sombra por perto, nem uma clemente aragem retemperadora. Apenas este manto invisível que nos transtorna as ideias e transforma as armaduras em fornos de lenha atiçada. Mais não nos resta que aguentar este tempero e salvarmos os corpos aflitos com movimentos lentos e compassados na direcção de Ourém. Mais um par de horas e estaremos resguardados nos frescos abrigos dos seus aposentos graníticos. Pensemos desta forma para nos alentarmos ao longo do restante suplício.
Fernando Dias dava conta, nestes termos, das grandes dificuldades por todos sentidas. Apesar do sofrido passeio, as almas destes homens não se deixam vergar com facilidade pelas terrenas cruezas das intempéries.
Castro rodeava o seu pensamento, as suas ideias, com os acontecimentos experimentados em Coimbra. Aquela mistura moldou-lhe as novas faces do seu carácter. A sua nova orelha, mordiscada pelo intenso prazer de quem voou nas asas do desejo como mais nenhum outro ser antes de si. Os segredos guardados e compartilhados com as figuras mais importantes deste reino. O crescer em força e em vivência de adolescente, feito homem nesta demanda entre a vida terrena e as muito misteriosas coisas do Divino, abriram nele tantos sabores que nunca se tinha sentido tão intensamente vivo como agora. A vida nunca se lhe tinha apresentado com tantas variáveis e sobre tantos pontos de vista. Conseguia agora ter mais do que uma ideia de como este Mundo se apresenta. Lê nele forças com incomensuráveis enigmas e infinitos sabores de deleite, a par de outros tantos infinitos sabores de desprazimento e de dor. Regressa às memórias do seu passado recente e menos recente, vagueia pelas lembranças da segurança do seu posto de pajem Templário e do homem que dele vai fazendo crescer homem com a força da amizade e do rigor feito Fé.
-Fernando Dias tem sido mais do que um pai para mim, tem sido a iluminada segurança de um propósito que ruiria se não fosse a vontade urdida na imensa força contida no coração desse homem. A tarefa destinada agora neste corpo que carrego é tão importante que dele nada mais me resta. Carregar com segurança e em segredo este objecto de destino que transporto aos ombros, mais nada faz sentido ou tem valor. Sou essa ferramenta de vital ligação entre a consagração do Sagrado e do Terreno, num objecto de proporções tão incalculáveis como pequeno é a forma que lhe pertence.
O calor começava a estragar as ideias aos cavaleiros, a cegar-lhes a vista, a torrar-lhes as percepções com labaredas descomunais. E corpos começaram a dar baixa e a ceder à intensidade do calor sentido. Ficavam parados, sentados no solo ardente, dando descanso às montadas, com as ideias tão turvas que alguns julgaram ter alcançado as portas do Paraíso. Outros tombavam mesmo para o chão, sem aviso, como se tivessem sido fulminados por raios disparados do céu como setas de bestas de combate. O mestre Templário deu instruções para que todos os que começavam a dar sinais de fraqueza fossem ajudados pelos restantes cavaleiros. Das fraquezas arranjar forças, tornar a colocar os corpos dos companheiros no dorso das montadas e seguir caminho na direcção da protecção das sombras guardadas lá longe, no fortificado castelo de Ourém.
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