quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Com todas as forças do Mundo


127.

Alzira repousa as suas ideias. Estas novas palavras serão acrescentadas a todas as outras que repousam no interior da caixa que Gamélia lhe ofertou. Juntá-las-á às lembranças daquele longínquo Verão de sessenta e dois.
Fazia algum tempo que Alzira desejava cumprir esta vontade. Desde que António Júlio se despediu de si, faz este Outono três anos, jurou imaginar um enredo em que as posições desta realidade surgissem trocadas, em que fosse ela a ter sofrido as maleitas da doença que lhe levou o companheiro no curto espaço de oito meses. Um enredo em que tivesse sido ela a escolhida para essa viagem. Colocar-se na pele do companheiro de uma vida, com tantas promessas e histórias para dar e receber, tantas poesias, tantos sonhos, tantos romances, tantas viagens para partilhar, tantos sabores. Imaginar as emoções, o sofrimento, a dor, os momentos de solidão e a capacidade em resistir, enfrentar o destino olhos nos olhos, cara a cara, ser capaz de lhe fazer frente, avançar com a vida porque essa é sempre a opção mais correcta, mesmo quando não se encontram listados em nenhum local os termos para essa concretização.
O comboio mantém sempre o rumo destinado pelos carris onde se move. As rodas rodam, rodam, mantendo os seus passageiros numa ilusão de segurança, sentados nas suas poltronas, olhando fixamente a paisagem que se vai desdobrando veloz pelas janelas.
Alzira acrescentou esse prazer de viagens às configurações da sua inspiração. Cada novo passageiro, cada conversa circunstancial que ia bebendo, os rostos e os olhares que foi interpretando, foram originais alinhamentos que depois filtrou e trabalhou de maneira concertada até deles retirar o devido valor em palavras. Teceu-as em estruturados enredos através dos seus dedos experimentados e segundo as instruções que a alma lhe foi comunicando. As inúmeras voltas e viagens destes últimos meses resgataram esta história onde Tó apareceu como actor principal, juntamente com o seu cão Castro, que sofreu como ninguém o desaparecimento do grande amigo. Tal como na história que acabou de criar, Alzira inventou esta maneira de se fazer passar por morta, estendida inerte num imenso sofá emprestado, encenando-a com uma posse propositadamente descuidada, só para sentir o dó e a pena causadas no seu companheiro António Júlio. Sofreu com o sofrimento causado pelo desaparecimento da vida que havia no marido e se esgotou. Transformou-o novamente em vida, trouxe-o de Husadel e imaginou-se no seu lugar, fitando olhos nos olhos o rosto sereno e tranquilo de Gamélia.
O conforto causado pela conclusão desta promessa trouxe-lhe a vontade de um pequeno festejo na tranquilidade da sua casa em Santo Tirso. Desceu as escadas com o peso do solar dos Sousa Bessa a fazer-se sentir nos retratos que decoram a parede em direcção ao piso térreo. A cozinha aguarda sorridente a sua chegada. Um chá de tília e ervas doces será o supremo deleite com que irá dar comemoração a mais este instante do percurso. Avança em direcção ao salão onde se resguarda na antiga “chaise longue”. Aconchega as pernas e prepara-se para dar o primeiro trago neste chá de felicidade. Castro, convidado pelo doce aroma que temperou o ar do salão, resolveu juntar-se à festa da dona, aparecendo sem provocar qualquer ruído e indo-se deitar delicadamente junto às pernas rainha Ana da “chaise”, fazendo companhia às pequenas pantufas de Alzira.
As mãos da escritora desceram até à cabeça negra do animal, tão amigo, tão fiel, em forma de carinho, e por ali se entretiveram a passear este momento de felicidade, desejando com todas as forças do Mundo que esta amizade possa nunca vir a ter um

F I M

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