sábado, 18 de outubro de 2008

No sossego dos silêncios



123.B

Raimundo aguardava pelas novidades do grupo enviado naquela espécie de missão de Tróia. Entrar juntamente com os pães que irão servir as manhãs da senhora infanta e de todo o séquito real, foi algo que lhe foi segredado enquanto permaneceu deitado com a cabeça de Mohammed agarrada com firmeza junto ao estômago. Cheirava as instruções que aguardava caídas do alto das muralhas em forma de cordas. Por elas treparão até se juntarem aos restantes camaradas de combate. Assim serão em número suficiente para enfrentarem a guarda que se mantém mais próxima de Dona Teresa, constituída por um muito maior número de homens e bem mais experientes nas artes do combate corpo a corpo. O tempo permanecia silencioso e estático. Aguardava pelo desenrolar do enredo desta orquestrada guerrilha. A decisão do Zanata estava tomada desde a saída do Lorvão onde sentiu quase de imediato um grande arrependimento. Não devia ter tomado a resolução de apenas amedrontar a figura da infanta. Logo ali lhe deveria ter proporcionado o devido falecimento.
Do lado Oeste avançam, cansadas, as forças Templárias de Fernando Dias, com planos para surpreenderem os protagonistas desta guerrilha de terror que vem sendo orquestrada nos últimos anos pelos dementes mercenários de Sabiano Raimundo. O tempo recomeçou o seu movimento de forma espontânea, mal sentiu os cavalos a aproximarem-se, corajosos, avançando encobertos pela noite, em direcção a Montemor.
Dentro das muralhas do Castelo, dois dos quatro guardas responsáveis pela guarda do portão principal preparam-se para a rotina daquelas horas. A pesada portada foi aberta ao panificador e a outros fornecedores que aí vieram apresentar os mantimentos e outros víveres, para se manterem novidades frescas nas mesas dos seus reais habitantes, todas as manhãs. O nervoso padeiro sofria a pressão da morte a ser cravada, já com a ponta ensanguentada, no baixo-ventre, por Faysal Bin Ali, sem qualquer relaxamento. A passagem para o interior da fortificação foi realizada debaixo dos sorrisos da guarda que muito apreciava o cheiro delicioso que emanava do pão quente protegido e transportado na traseira da carroça, nervosamente governada pelas trémulas mãos do desgraçado panificador. Já não conseguia amparar as lágrimas de dor, medo e sentimento, pela terrível perda que aqueles infames lhe tinham há bem pouco tempo proporcionado. No interior do castelo, os restantes mercenários saíram com a rapidez de gatos do deserto do fundo da carroça onde se encobriam, munidos de bestas tão letais como a eficácia da pontaria com que retiraram a vida aos quatro vigilantes da portada. Ainda sorriam quando as muitas setas os começaram a trespassar.
Ao padeiro, Faysal cumpriu com o prometido. Presenteou-o com um brusco e pouco doloroso fenecimento, para que se pudesse juntar à restante família no curto espaço de uma lâmina requintada.
- Rápido, não temos mais tempo a perder! Atiremos, com o sossego dos silêncios, as escadas de corda pelas muralhas abaixo. Façam sinais para que os nossos as subam e aqui se venham juntar. Façam-no com calma. Os combates que ainda nos aguardam não se compadecem com falhas ou desconcentrações.
Assim que terminou o sibilante ruído da queda das escadas de corda, Raimundo e todos os restantes mercenários subiram com ligeireza e muita perícia por elas acima, alcançando rapidamente o topo das muralhas e esgueirando-se para o interior do castelo por entre as ameias da imensa parede de pedra virada a Oriente. Os corpos dos guardas jaziam inclinados como estátuas guerreiras, colocados que foram uns sobre os outros, como um pequeno monte de sobejo humano sem significado. Raimundo deu ordens para que os deixassem assim, já preparados para servirem de rastilho às labaredas que lhes serão ateadas e a todos os restantes que ainda lhes serão acrescentados.
O cérebro de Sabiano não pára de lhe dar instruções. Muitas são as ferramentas que continuam a operar a sua enlouquecida crueldade sem darem mostras de qualquer espécie de cansaço. Demonstra, talvez por isso mesmo, uma frieza e lucidez de espírito que lhe permite encontrar-se a poucos instantes do objectivo desta missão delirante. Dar seguimento aos actos de infernal e sanguinária barbaridade, perpetuando no reino de Portugal, nesta terra abençoada por Nosso Senhor Jesus Cristo, todos os medos e todos os pavores existentes nas profundezas obscuras dos abismos Infernais. Nada melhor para alimentar esses intentos e horrores do que ir fornecendo ao Rei e ao seu povo os restos mortais da jovem infanta, feita noviça Beneditina em Lorvão, em pequenos pedaços, com a regularidade e os intervalos que a sua insanidade lhe vier a comunicar.
Fernando Dias encontra-se a poucos minutos da entrada do castelo, carregando com os seus Templários os frescos odores marinhos do Atlântico e uma sentida vontade em terminar aqui a tormentosa perseguição que se arrasta, cinzenta, por longos meses de agitadas e infrutíferas digressões. O cansaço provocado pelos estéreis resultados desta demanda foi, mais uma vez, afastado pela visão do monumento onde repousa o santo resultado desta sagrada missão.
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