quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Como uma estátua de Rodin


116.B


Durante todo o tempo que demorou a agitação em que os Drakkars foram sendo soprados, como pequenas partículas de poeira, pela imensidão dos espaços de Husadel, Gamélia permaneceu desmaiada. A sua memória de anjo mulher não captou nada desta caótica correria de embarcações ao sabor destes estranhos ventos autónomos de origem desconhecida. O seu corpo ia sendo agitado ao sabor do grande reboliço do navio que a abrigava. De um lado para outro, cambaleava o seu corpo inerte, ora rebolando de maneira animada, ora sendo violentamente atirado contra as paredes interiores do porão onde se abrigara. O soalho estava literalmente gelado, como uma pista espelhada tratada com os maiores cuidados e cortesias. Nada podia fazer adivinhar aquele imenso caos. As almas dos lagos gelados esvoaçavam delirantes com esta inesperada sensação de liberdade. Estavam literalmente desconhecedoras de tudo o que se estava a passar. As guardiãs das outras embarcações iam procurando, através das suas extraordinárias capacidades de mulher anjo, dar apoio a estas almas aparentemente livres. Encantam-nas das mais diversas formas. Atraídas assim para junto delas, são depois transportadas para um cofre existente junto ao mastro principal dos Drakkars, onde as seguram e abrigam duas a duas com o maior dos respeitos e carinho. Tentam recuperar a totalidade dessas almas. Do desempenho e eficácia com que realizarem esta tarefa dependerá a existência e continuidade da espécie humana.
Gamélia sente agora o frio daquele impecável espelho gelado que lhe foi servido de colchão ao corpo. A cabeça sente pesada, quase como se lhe tivessem acrescentado em dobro o seu efectivo peso. O Drakkar que, valoroso, a protegeu durante as longas horas que durou a terrível tempestade, segue pacífico a sua viagem. A mão passou muito devagar na parte de trás da cabeça. Verificava se tudo se mantinha inteiro no devido lugar. Percebeu rapidamente que algo anormal se teria passado enquanto se manteve ausente de forma forçada. Eram agora oito as almas que sentia junto a si, desorientadas e pedindo auxílio de uma maneira totalmente inaudível para humanos sentidos, mas que se faziam sentir fortes e agudas nos ouvidos de Gamélia. Estas almas necessitavam rapidamente do abrigo do cofre existente junto ao mastro do seu Drakkar, igual a todos os outros existentes nas embarcações voadoras das mulheres anjo. Com todo o cuidado que os seus séculos de existência lhe ensinaram, transportou estas criaturas para cima, até ao mastro, e aí as colocou, duas a duas, como mandam as regras, nos compartimentos construídos dentro do seu cofre protector de almas extraviadas.
Ao longe, vislumbravam-se as luzes de presença dos milhares de milhões de outros Drakkars. Todo o firmamento de Husadel ficou inesperadamente transformado numa estrelada noite de Verão. Os navios bailavam embalados por geladas brisas.
Alzira, com o maior dos cuidados do Mundo, ia delicadamente encerrando o seu diário, evitando quebrar as folhas secretas dos seus sonhos, anseios, pesadelos e meditações. Sem que ela se tenha disso apercebido, desta delicada tarefa dependia a sua própria vida.
O diário já fechado!
Alzira dorme o primeiro sono descansado dos últimos setenta sonos deste agitado Verão que lhe vem moldando o corpo e o espírito, como uma estátua de Rodin.
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