sábado, 4 de outubro de 2008

Encruzilhadas


114.


As encruzilhadas destas formas de existência, desenhadas a pastel sanguínea de maneira propositadamente aleatória, para transmitir uma aparência clássica e tradicional, estão a ganhar dimensões desordenadas e inesperadas. Este plano regulado pelos Deuses, dir-se-ia alimentado agora com uma sede de protagonismo e autonomia que as divinas entidades seguramente não aguardavam. As tranquilas paisagens de Husadel começaram a ser varridas por ventos fortes e irregulares, cuja intensidade aumenta a cada segundo que passa. Gamélia nunca antes sentira este forte sentimento de insegurança e confusão. O céu cobrira-se por um imenso manto branco voador. As rajadas vinham carregadas de muita neve e gelo, transportados pelos fortes sopros da tempestade. A protecção de mulher anjo começava a ser posta em causa. O gelo conduzido com fúria pelos ares destruía os locais mágicos de Husadel como se fossem papel manteiga. Apenas a forte e muito resistente armadura titânica do Drakkar pode fornecer a devida protecção a Gamélia, que voa célere e com todos os seus sentidos programados para alcançar, no mais curto espaço de tempo, a fantástica embarcação.
Castro ladra desvairadamente desde que sentiu a paisagem nocturna de Coimbra a colorir as janelas do velho Taunus de António Júlio. As fragrâncias que entravam pela pequena fresta da janela da porta do lado do pendura enlouqueciam-no. Com as patas ia esgadanhando o vidro, exercendo pressão na janela para que se abrisse. A estes movimentos acelerados, acompanhava-os com outros com que ia rodando a manivela do elevador da janela tentando alcançar o mesmo objectivo final. António Júlio tudo ia observando com espanto e surpresa. O empenho com que o cão se aplicou na tarefa foi tal, que em pouco tempo o espaço que conseguiu obter era o suficiente para tentar a fuga ambicionada, tão ambicionada como o ar que se respira. Já com o corpo de Castro dentro e fora da viatura, pendurado pela janela da porta, Tó viu-se na eminência de um despiste, travou e guinou o automóvel com brusquidão, provocando o patinar das rodas da frente, que bloquearam na manobra. O negro volume do animal foi projectado com alguma violência pela berma da estrada, junto a uma longa descida antes da ponte que lá ao fundo molda a paisagem da cidade. O carro já não seguia a grande velocidade, felizmente.
- Castro, Castro! Onde estás tu meu tolo? Estás bem? Castro! Castro! Mas para onde raio corres assim tão desvairado? Castro! Vem cá! Castro! Porra para ti bicho de uma figa! Castro! Vem cá! Raios te partam mais às pancadas que te dão as ideias. Parecem as minhas quando as noites de África fazem questão em me ladrar bem no centro dos sonhos! Só espero que não te tenhas magoado. Espero ao menos que não te tenhas ferido na procura de dares cobro a esta tua nova cócega de aventura.
Só já se via uma pequena mancha negra, cada vez mais pequena, a desaparecer ao longe junto à berma da estrada. O carro de António Júlio acabou por ficar parado por ali mais uns instantes pois o pneu direito à frente tinha furado.
- Merda para isto! Raio do bicharoco! Mas que ideia alucinada lhe passou pela cabeça para nem sequer ter pedido licença para sair.
O Drakkar aguardava pela chegada de Gamélia, que se adivinha breve. A tempestade começa então a ganhar contornos verdadeiramente avassaladores. Foi milagrosa a descida ao pequeno porão do navio ensaiada pela mulher anjo. De olhos já cerrados e com uma enorme estalagmite a roçar-lhe tangente o ombro direito, entrou no barco sem disso ter dado conta, e bateu de cabeça com toda a violência nas paredes laterais do tombadilho da embarcação. Levantou voo ligeiro, no meio daquela imensa tormenta de gelo, neve, destroços e da totalidade das almas que se encontravam acauteladas nos lagos gelados de Husadel, agora totalmente destroçados.
Os soldados que vigiavam dos altos torreões as muralhas do castelo de Ourém, gritaram um alerta com todas as forças que os pulmões conseguiram encontrar.
Francisca começou a chorar de forma convulsiva e inexplicável junto ao largo da Portagem, já em plena cidade de Coimbra. Olhou para a avó Filomena, e com um voz tão doce como trémula, agarrando-lhe as mãos com a força que conseguiu arranjar, segredou-lhe baixinho aos ouvidos:
- Avó! Eu não quero morrer Avó! Tenho muito medo da morte Avó! Gosto muito de ti e da mamã!
Filomena sentiu as forças fugirem-lhe frágeis e aceleradas por todos os poros do corpo. Ficou branca e, por instantes, os olhos emocionaram-se com as palavras inesperadas de Francisca. Tanta emoção na sentença, tanto desconhecimento e tanto crescer contido nesta forma de questionar a finita existência agora mesmo em si sentida, como uma febre terrivelmente negra e poderosa.
Raimundo continuava agarrado ao descanso. Acalmou os terríveis e maquinais desvairos com a intensidade demente com que agarrava a cabeça do soldado. Fazia tanta força ao segurá-la e apertá-la contra si, que o estômago quase lhe saía pelas costas. O Céu, lá em cima, continuava a não fornecer qualquer resposta às suas angústias. Ali deitado, julgou ter a vida de si desaparecido. Era uma alma a caminho do merecido e doce descanso eterno. Começou a sentir o chão por baixo de si a ceder, pouco a pouco, ao peso do corpo assim deitado. Fechou os olhos na esperança de lhe dar a morte o merecido repouso, secretamente ambicionado desde há alguns dias. O local ia realmente abrindo uma imensa brecha no pavimento onde se encontrava estirado, mas nada tinha a ver com sonhos ou privadas vontades de Raimundo. Um abalo sísmico de médias dimensões provocou um deslizamento de terras no exacto local onde Sabiano tinha tombado, depois do seu alucinado bailado. Era como se as forças obscuras da natureza o desejassem, apaixonadamente, absorver através desta estranha forma de chamamento.
Alzira levantou-se. Olhou para as últimas palavras do seu secreto diário. O pequeno livro estava ali aberto no meio do chão. Os pés descalços a servirem-lhe a guarda de honra devida. Subitamente, sem qualquer controle sobre as palavras, gritou bem alto para todo o Universo ouvir:
- Gamélia, nem pense ousar também desaparecer da minha vida!
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