quinta-feira, 23 de outubro de 2008

O resto da sua vida


124.

Subitamente, vindas do nada, surgiram muito ternas as memórias infinitas de Alzira, esse doce anjo bege de asas azuis imortais. O velho Taunus recuperara a correcta postura depois de António Júlio ter terminado a tarefa de mudança de pneu. Neste tempo que demorou o exercício, as ideias que lhe fizeram companhia possuíam duas identidades.
A primeira, trazia-lhe as imagens destes últimos renovados dias de esperança, com o corajoso recomeçar da tarefa literária, tão escondida e esquecida em si. Os fôlegos de coragem trazidos e entregues através de um pequeno corpo negro, agitado, camarada, de quatro patas e língua rosada. As caminhadas que realiza ao sabor destas reavivadas vontades, os segredos reencontrados, as imagens feitas palavras. Voltou a sentir em si essa capacidade de criação e o prazer que retira desse acto. A pureza deste oxigénio que agora respira reestruturara-lhe os atrofiados bronquíolos da alma. Relembra ainda a corrida destemida do amigo, pela noite dentro, saltando imprudente no asfalto, em busca de uma qualquer ajudante que lhe trouxesse serenidade àquela coceira.
A segunda, mais antiga, mais etérea e eterna, trazia-lhe as memórias da sua mulher, desenhada como sereno e tranquilo anjo bege de asas azuis. A alegria com que recebe esta estranha dádiva aquece-lhe a confiança, já não fornece angústias destemperadas à alma nem lhe presenteia as memórias com dor. As mãos de Alzira desenham no ar pequenos semicírculos com os dedos, comunicando a António Júlio que será esta a última das vezes que a terá assim em companhia. Muito delicadamente e com gestos demorados e pausados, leva aos lábios a mão direita, que beija amorosamente, um beijo de amor e despedida, que depois lançou na direcção de António Júlio.
O escritor agarrou-se ao volante com as redobradas forças de quem descobrira, neste interregno da viagem, que ali naquele preciso e exacto momento, se dera início ao resto da sua vida.
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