segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Deo Gratias


126.

Organizadas numa concordante serenidade, retemperadas de todos os ritmos destas encruzilhadas, as almas destes viajantes apartados nos avanços e recuos do tempo atingiram um novo degrau no seu caminho. Aguardam os novos ritmos destinados nas palavras escritas pelos Deuses no livro dos mortos, tão religiosamente lido vezes e vezes sem conta por todas as mulheres anjo de Husadel.
António Júlio sentiu a perna direita morna, junto à zona da coxa. A sua mão avançou na direcção do bolso das calças, de forma quase mecânica. Esse sentido aquecimento provinha do seu interior. Deu conta do pequeno cartão que Filomena lhe entregou no encontro da Batalha com um sorriso nos olhos. As letras em azul ultramarino que nele lhe davam todas as informações necessárias, do nome, morada e contactos, saltavam tranquilamente naquele rectângulo de rosa pálido, num doce e tépido bailado que lhe chamara a atenção. O futuro estava ali, ao virar daquele sorriso, na serenidade e sensibilidade descobertas nas palavras daquela mulher. O futuro continua a ser destinado pelas suas mãos, pela coragem das suas palavras que passa para papel em forma de poemas, em forma de contos, em forma de romances, em forma de sonhos que alimentam os sonhos de outras tantas almas que os vão depois encontrar e decifrar, tornando seus.
Francisca já não tinha mais medo da morte, nem do futuro, nem do destino que lhe proporcionarão os muitos e muitos anos que a sua vida se encarregará de fazer crescer em si. O forte abraço com que se encontra unida ao seu fiel amigo negro é tudo o que necessita para que o Mundo se encontre pintado com as deliciosas cores do Paraíso. Para duas crianças como estas, nada tem maior importância ou mais doce e perfumado sabor do que o sentido abraço da verdadeira amizade.
Gamélia observa do alto do seu pássaro de asas tão delicadas como robustas toda a azáfama com que os Deuses reconstroem as paisagens geladas de Husadel. As barcaças dos infinitos espaços daquelas paragens avançam em direcção aos lugares destinados a cada mulher anjo. Tal como Gamélia, também as outras mágicas mulheres não conseguem deixar de se sentir esmagadas por tanta perfeição, pela tamanha dimensão daquele acto de Divinas proporções, pelo forte sentimento de alívio que sentem ao relembrar toda a destruição que por ali lhes foi servida e as imagens que agora voltam a ter à frente de seus olhos. Duas pequenas lágrimas rapidamente se sentiram congelar nas faces do seu rosto perfeito. Sabia que Alzira já não iria necessitar da sua companhia, o que lhe provocou alegria mas também a tristeza de não mais poder vir a sentir o prazer da sua companhia física. A estas mulheres anjo só muito raramente são concedidas estas incumbências. Só acontecem de seiscentos em seiscentos anos e a Gamélia nem foi dada a possibilidade de dela se ter despedido, tal como era a sua primeira intenção. Sabia que, apesar de tudo, Alzira já tinha descoberto as respostas para a verdadeira dimensão das suas dúvidas. A caixa que lhe desejava presentear estava bem guardada em si, dentro da extraordinária sensibilidade e coragem da jovem menina adormecida. Foi ela que conseguiu salvar este extraordinário universo de Husadel, através das forças que encontrou para conseguir encerrar com perícia e todo o cuidado do Mundo, as páginas geladas do seu diário. A caixa e as peças do puzzle que se vai construindo com o seu nome na tampa, não são mais que as extraordinárias histórias que deposita nesses seus espantosos diários, com a coragem da razão e a força determinada da sua imensa esperança.
Este Verão construiu e fortaleceu o seu carácter em força e com vibrante sensibilidade, como em mais nenhum outro voltará a realizar.
Castro, pajem feito homem num reino em construção, repleto de medievas histórias de conquista, avistava as figuras que se aproximavam do jardim desenhado no interior dos pátios do castelo de Tomar. Fernando Dias e os seus Templários chegavam vindos de Montemor com as certezas do dever cumprido, de mais uma página de história acrescentada aos muitos capítulos das suas vidas, sempre ao serviço de Nosso Senhor, com o sempre presente mistério das Divinas equações a aquecerem os seus passos, a temperarem a construção das suas caminhadas. Desceu feito um louco ao seu encontro, revigorado pela esperança das sábias palavras de Henry de Villepin, com a vontade acrescida de honrar aquele Santo e Sagrado local com o mais revigorante e fraterno dos abraços. Ao descer da sua montada, Fernando Dias foi assaltado pelo corpo esfuziante daquele jovem, cuja incontida alegria em o ver vivo e em perfeitas condições de saúde lhe provocara aquele acometimento de loucura. Os olhos de Fernando Dias cobriram-se de sentimentos de contentamento ao observarem o saudável pajem, correndo acelerado ao seu encontro. No frutuoso abraço paternal que se seguiu, deitaram-se abaixo as barreiras das necessárias e contidas regras de comedimento, falaram mais alto os sentimentos primários de satisfação e alegria.
Mestre Fernando Dias virou-se para os seus valorosos cavaleiros e com a alegria bem carregada na face iluminou o ar com estas palavras:
- A vida é construída pelos corajosos, pela esperança e pela vontade em continuarmos unidos na defesa daquilo que consideramos justo, Divino e Sagrado. A felicidade sentida aqui, neste momento, significa que cumprimos e levámos a bom porto uma santa missão. Que o Divino Espírito Santo proteja para sempre este Reino e ilumine os caminhos daqueles que o governam e de todos os que carregam nas costas a espinhosa tarefa de ajudar na sua edificação.
Com as armas na mão esquerda, a direita bem aberta sobre o peito, o olhar em direcção ao infinito céu, depois virado em oração na direcção do solo, todos os cavaleiros deram graças a Nosso Senhor Jesus Cristo. Conseguiram manter-se firmes e resguardados dos perigos que surgem na escuridão dos caminhos e que tantas vezes impedem o cumprimento das Santas Missões.
El-rei Dom Sancho I acompanhava a Infanta Dona Teresa no passeio de regresso ao Lorvão, cativa que a tivera mantido, resguardada em segredo e retiro durante todo este período de ameaças, no castelo de Pinhel. As notícias já lhe tinham sido comunicadas, bem como as evidências que provaram a morte de Sabiano Raimundo. Não mais se encontra no reino dos vivos, nem qualquer dos outros que o acompanharam na sua infernal demanda por terras Lusitanas, espalhando o medo, a morte e a crueldade, fazendo crescer nas raízes do povo o boato de que o Demónio tinha descido dos Céus para na Terra fazer sua justiça. As esperançosas e revigoradas cores pintadas no coração de el-rei Dom Sancho I servirão para alimentar e dar sustento em coragem para os seus próximos anos de reinado. Aí guarda também um local especial para os seus honrados e fiéis Templários, sempre preparados para proporcionar as necessárias ajudas na construção e defesa dos reais interesses desta tão nova Nação.
Pai e filha, de mãos dadas, avançam de olhos postos num esperançoso futuro com os corpos carregados de genuína felicidade.
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