terça-feira, 21 de outubro de 2008

A fragilidade de um suave sopro


123.D

Aguardam pela morte como pássaros perdidos. As primeiras aves que trinam o amanhecer, acalmam o seu canto espiando todos os acontecimentos no largo, junto à capela da fortificação.
Não pode existir outro desfecho para aquele grupo de homens. No centro daquela circunferência humana esperam pelas certeiras saraivadas. As setas encontram-se preparadas nas afinadas armas dos combatentes de Dom Sancho I e de alguns cavaleiros Templários de mestre Fernando Dias. Quando esta companheira aparece de forma imprevista as almas não produzem antecipadas imagens das suas histórias de vida. Carregam-se as mentes de uma letargia amorfa, doando aos membros dolência e movimentos inconsistentes. A surpresa vence a vontade em agir e reagir perante a situação assim criada. Ibrahim Abdul ergueu o alfange, levantando bem alto os seus braços. As mãos cerradas com as forças do destino agarram a arma com as vontades do adeus. Gritou um palavreado incompreensível, seguramente audível para lá da capital do reino e avançou ao acaso na direcção de um dos mais de cinquenta soldados armados que constituíam guarda naquela construção geométrica. Ao segundo dos passos da corrida já o seu corpo se encontrava sem vida, trespassado por quatro ou cinco setas saídas das bestas de outros tantos cavaleiros armados que os cercavam. A chuva de setas começou então a fazer-se sentir com maior intensidade e com impressionante perícia, sempre certeira nos alvos que procura encontrar. Os avanços dos outros mercenários, ao som do mesmo incompreensível palavreado de Ibrahim, surgiam como resultado das tentativas desesperadas em passar pela porta do destino final com a dignidade de um guerreiro. Os seus corpos eram servidos completamente cravados de setas, como se fossem alvos usados em treino acessível, ao barqueiro encarregue de os transportar para lá dessa porta do destino, em direcção aos iluminados lagos gelados de Husadel. As mulheres anjo já os aguardavam.
Sabiano Raimundo não consegue acreditar naquilo que os seus olhos observam. Num ápice, com a mesma rapidez com que um sonho se desfaz, com que uma vida se dilui, os seus companheiros de viagem vão caindo um após outro, cravejados sem dó nem piedade. Encontram os caminhos da morte com a dignidade de verdadeiros combatentes. O Zanata começou a ouvir o som das vozes dos guerreiros do deserto, os mesmos que o encontraram, tão novo, junto ao monte de cadáveres que lhe serviu de protecção. Relembra o calor, os odores, a sede e a angústia causada por esses sentimentos. Nenhum lhe ecoa tão intenso como a lembrança da aspereza da voz do chefe tribal que o resgatou, ao dar conhecimento da sua descoberta. Ouve essa voz com tanta clareza dentro de si, como se voltasse a ter a idade dessa sua tenra infância. Sente também a áspera areia misturada com o sangue seco que lhe pintava as parcas vestes, os braços e o rosto. Encobriam-lhe as maleitas de pele, atacada pelo inclemente sol do escaldante deserto berbere.
O tempo parado! Todas as vidas que ceifou recordadas num brevíssimo instante, através das imagens dos rostos que lhe iam cuspindo a face com desdém e com um forte sentimento de ódio. Os vultos protegidos dos homens que congeminaram esta bem urdida teia onde se enleou, passam em frente dos seus olhos, com maior repouso, cada um deles aguardando a ordem final que dará o comando para a conclusão da sua vida. Faysal e Sabiano aguardam firmes os gestos dos Templários. Olham-se cara a cara com os olhos vítreos e ramificados com as rubras marcas de uma vida gasta em infinitas viagens e outras tantas insensatas cruéis carnificinas. As suas vidas cansadas irão acabar ali e agora, sem remissão, sem honra, com a fragilidade de um suave sopro, ao som dos gelados silvos provocados pelos voos certeiros das setas lançadas por mais de uma vintena de certeiras bestas de combate.
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