domingo, 26 de outubro de 2008

Todo o verbo é um sinal Divino


125.

Novas imagens de dor e prostração eram servidas em sangrentas imagens a Castro, com muita intensidade, derramadas lentamente na alma em dolorosos pesadelos. Novos cavaleiros Templários, nos quais não figurava o seu senhor Fernando Dias ou qualquer dos outros elementos do seu fidelíssimo grupo de combatentes, eram sujeitos aos maiores e mais bárbaros actos de selvajaria, torturas e mortes em quantidades tais que nenhum desses homens acabaria por se salvar desse expurgo. O receio em falhar a concretização da missão que lhe foi secretamente destinada, ainda mais a tão curta distância do seu destino final, trazia o pajem muito cansado, nervoso e alterado. Todas as imagens lhe começam a parecer turvas e pouco silenciosas, sem garantias de consistência.
- A aflição e o cansaço começam a fazer de mim cativo. Repito tantas e tantas noites de fraco descanso, inclinado ao sagrado peso deste divino objecto que tamanha honra me abona e tanta apoquentação me tem talhado no espírito. Estas cruéis imagens de santos e fiéis homens em sofrimento que me são comunicadas com tanta densidade e veracidade em cheiros, sons e sabores de morte, são tristes novidades a aguardarem que o tempo as possa vir a trazer à luz da realidade, ou as faça para sempre desaparecer das páginas dos livros que escrevem o futuro da história dos homens.
O castelo de Tomar servirá de morada e abrigo a este objecto Sagrado, que desde a saída de Coimbra tem trazido Castro em tamanha aflição, mas ao mesmo tempo, seguro de que a sua vida não mais será a mesma. O seu mestre Fernando Dias deu-lhe ordens bem determinadas do local onde o deveria entregar e a quem o deveria fazer. Em Tomar, dar a cruz sagrada a um Templário cego chamado Henry de Villepin, às ordens de Phillipe de Pessiéz, guardador de segredos infinitos. De seu mestre recorda as palavras que lhe ouviu dizer acerca deste sábio homem cego que deverá encontrar em Tomar. Para ele não existe o infinito, pois o infinito surpreende-nos com a revelação da surpresa encarcerada nos seus limites. Já aquela tarde ia adiantando a chegada da escura noite, quando numa sala da alta torre de menagem do castelo de Tomar lhe foi dado a conhecer esse cego Templário Henry de Villepin. Movendo-se como se a visão não lhe tivesse sido retirada por castigo, avançou na direcção de Castro, apoiou ambas as mãos nos ombros do jovem e segredou-lhe as seguintes palavras em voz baixa e pausada, junto ao seu ouvido esquerdo.
- As pequenas areias que cada existência carrega em si, que esmagam pela constatação da sua impotência, vão bem para além da propagação dessa realidade, prolongam-se para lá dessa ideia de pequenez e fazem-se renascer num imenso infinito. Transfiguram-se em dor, pois a percepção que nasce da contemplação desse infinito é extremamente dolorosa e inquietante. O infinito passa a ser apenas essa intensa dor da razão que nos assalta o corpo. O infinito é o enorme peso de um pequeno e intemporal instante, que se dilata e solidifica marcando assim a sua mensagem, comunicando por gestos que se desejam eternos. Esses gestos são os trajectos a seguir, os pontos de destinos, as encruzilhadas nos caminhos, os vários estuários, e não são nem início nem fim de nada. Não existe qualquer vontade num gesto, apenas o impacto que produz, e a esse impacto não existe forma de lhe podermos escapar. Todo o verbo é um sinal Divino, um signo a decifrar, uma mensagem, e todas as palavras que dizemos, escrevemos ou que ainda iremos escutar, fazem todas parte deste mesmo texto do infinito. As cúpulas douradas da Sagrada existência permanecem dentro de cada um de nós, sendo impossível discernir a verdadeira dimensão desta intemporalidade. Esse objecto que tem em seu poder, encarregar-me-ei de colocar no local destinado, tal como escrito nesse texto infinito.
Seguidamente, passou as mãos pelo rosto de Castro para lhe sentir o retrato em pormenor, para lhe sentir o regresso da tranquilidade ao corpo, para lhe pedir, com um forte abraço de amizade, que lhe entregasse a Lignum Sanctae Crucis. Castro deixou finalmente de sentir o peso asfixiante daquela missão e, sem que para tal tivesse encontrado explicação, deixou também de ter medo da morte. O pajem entregou naquelas calejadas mãos do cego Templário o Sagrado objecto que tão bem protegera.
Foi desta forma que se voltou a agarrar à vida com as redobradas forças de quem descobrira, neste interregno da viagem, que ali naquele preciso e exacto momento, se dera início ao resto da sua vida.
.

Sem comentários: