sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Para sempre minha amiga


113.


- É bonito. A vontade de ir-me embora e deixar desaparecer para sempre estas últimas recordações é tão forte, tão poderosa, que já não consigo perceber o tempo. Juro, com todas as minhas forças, que o facto de ter adormecido no meio do banho nada tem a ver com esta minha forte vontade. Estou apenas um pouco mal disposta. Preciso de me deitar, descansar destes últimos dias de pesadelos. Necessito regressar a Husadel. Neste momento parece ser o único local com um real significado para mim. Apesar do secretismo da sua distância, é sempre muito mais autêntico e sentido do que toda esta realidade que me tem cercado ultimamente. Podia passar muito bem sem a ter em companhia. Desejo que todos os dias sejam, a partir de hoje, Domingo. Desejo que todas as minhas estranhas vontades não mais necessitem de motivos de explicação. Desejo nunca mais acordar, quando essa for, realmente, a minha vontade. Não mais acordar como menina assustada que já não se reconhece neste corpo larvar que possui. Tenho saudades da pessoa que sei que já sou sem ainda a ter vivido. Como é isso possível se ainda não vivi essa vida que me espreita, que me acena já ali atrás da porta, atrás do muro da quinta, atrás do enorme Atlântico, que me separa do sonho de quem já sou. Fará sentido estar viva assim, desta forma embrionária que me provoca arrepios sempre que a questiono com maior intensidade? Sinto-me como se estivesse a fazer de morta, estendida inerte num imenso sofá emprestado, encenando-a com uma posse propositadamente descuidada, só para que sintam dó e pena de mim. Ficar a ver quem vem chorar esta minha morte artificial. Obviamente, ficar a observar quem sofre com o desaparecimento da vida que havia em mim e se esgotou. Gamélia acabará por vir, mas de sorriso nos lábios. Saberá imediatamente que se trata de um enorme embuste. Todas as noites de Husadel duram meses inteiros, tal e qual as geladas noites escuras dos Invernos dos nossos pólos. As luzes que cintilam nos seus lagos são tão intensamente belas, mas as notícias que concedem gelam-nos para sempre a coragem com o delirante e cruel peso do seu conteúdo. A mulher anjo acredita nas verdades cintilantes que interpreta nessas geladas leituras que pratica. Saberia imediatamente, como anjo que é, que só o fiz porque tenho imensa curiosidade em saber qual o conteúdo da minha caixa em forma de coração. Qual o significado do puzzle que desenha o meu nome na tampa? Porque razão diz desconhecer o seu paradeiro, se foi ela que quase me colocou a caixa nas mãos e me salvou junto ao leito do Ave? Apenas desejo que possa ser sempre minha amiga. Sou fiel na minha amizade para consigo. No futuro, se a voltar a encontrar, não mais lhe colocarei questões acerca da caixa.
Todas estas ideias, Alzira escreveu no seu diário, apaixonadamente. A sua vida depende agora desta sua necessidade. Não deixar fugir nenhum dos seus pensamentos mais receosos ou escondidos. É desta forma, completamente inconsciente e pueril, que vai construindo e usando a caixa secreta que Gamélia diz ter para lhe oferecer.
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