quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Com a coragem de mil adultos


121.
-Há sempre uma razão para tudo. Para os sonhos, os pesadelos, para a escolha dos lugares que visitamos. E existem também razões que nos fazem convidar as lágrimas para passeios em nossos rostos. Tu és tão nova querida Francisca, nova demais para te apoquentares com esses assuntos. Não aparecem com normalidade essas preocupações em meninas assim tão novinhas. Na tua vida não existem inimigos e nem o passar do tempo pode ser suficientemente malévolo para te começar a incomodar com essas ideias, minha querida.
A sonoridade tranquila com que estas palavras foram proferidas pela avó Filomena, serenaram o desassossego da menina, que continuava a apertar as vividas e sábias mãos da avó enquanto Esperança mantinha, sabe Deus com que dificuldade, as palavras guardadas e o volante devidamente estabilizado. Esta agitação repentina de Francisca fizera com que Filomena deixasse de tentar acompanhar as luzes da viatura de António Júlio, que esquecera quase por completo. O pequeno grande ferimento, sentido assim tão forte dentro da alma da neta, carecia de toda a atenção e cuidado. A noite descera sem sobressalto. O restante caminho em falta até casa do pai de Francisca, que iria usufruir este fim-de-semana da companhia da filha tão estimada, assim determinara a justiça, de quinze em quinze dias, foi efectuado em silêncio. Essa foi uma outra dor que a neta teve de aprender a engolir com a coragem de mil adultos, como se uma anterior experiência de vida a tivesse dotado com as sábias astúcias do pressentimento.
A imensa alegria que dos seus olhos transborda quando se realiza no carinho de um cão, que tanto deseja aprender a cuidar, dá um prazer imenso em observar. O enorme gozo que sente esse coração inocente e puro a bater corajoso no peito da neta, faz transbordar os ritmos desse deleite com toda a felicidade do Mundo.
Ao realizar esta complexa análise aos últimos dias passados na companhia de Esperança e Francisca, os olhos de Filomena descobriram a negra forma de Castro, que corria mágica pelo passeio, junto ao edifício da Camâra Municipal. Não conseguiu evitar um certo espanto. Primeiro certificou-se de que era mesmo Castro, e não um outro qualquer cão preto parecido que por ali resolvera praticar as artes da corrida. Aquela coleira agarrada ao pescoço era demasiado estranha para que duas iguais pudessem rondar pescoços de cães semelhantes. Não havia dúvida. Aquele era mesmo o cão do escritor que conheceram na Batalha.
-Olha Francisca! Repara Filomena! Já viram bem quem vai ali no passeio a correr feito um tolinho? É Castro, aquele cão simpático. Mas que coisa tão estranha! Deve ter fugido do dono. Bem nos disse não ter coragem para lhe limitar as vontades.
As ainda húmidas faces de Francisca ganharam revigoradas tonalidades rosadas. O seu olhar adquiriu o brilho luminoso das estrelas. A mão direita avançou automática em direcção ao pequeno botão que ordenou a abertura da janela da porta traseira do carro da mãe.
- Castro! Lindo Castro! Cãozinho lindo! Anda cá, sou eu, a Francisca.
Esperança sentiu um estranho apelo que fez com que a viatura se imobilizasse, de forma rápida, junto a uma paragem de autocarro que ali perto se encontrava. O animal, mal ouviu as palavras doces de Francisca a virem ao seu encontro, saltou com a dedicação da amizade em direcção à voz da amiga.
A porta aberta por Francisca deu a indicação do caminho a seguir. Castro resolveu aceitar o afectuoso convite da menina. Tudo aquilo que a cidade lhe acabara de fornecer em lembranças renovadas desaparecera das suas memórias no exacto instante em que a porta da viatura se fechou atrás de si, comandada pelas contentíssimas mãos da pequena menina. Francisca abraçou Castro, ou terá sido o contrário, tanto faz. No momento em que se deu início a esse gesto de carinho, Francisca fechou os olhos e aproveitou aquele abraço como se tivesse sido apenas o primeiro.
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