sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Dentes-de-leão


123.A

Para esta noite se adivinham descomedidos actos de dissonante loucura. Acabar esta fresca madrugada com a presentação de todo o alfabeto de tortura àqueles que protegem a infanta Teresa, à própria filha de el-rei Dom Sancho I, aos animais, a quem ouse aparecer-lhes pela frente, a qualquer criatura que resolva fazer passagem pelo proscénio deste acontecimento. Nada se mexe naquela pintura nocturna, nada, nem a força da pequena brisa ganha coragem suficiente para fazer bailar os adormecidos dentes-de-leão. O tempo serenou de uma forma tal que se diria estar parado.
Os vultos de Raimundo e dos seus acompanhantes serpenteavam como víboras pelas pequenas elevações de terreno que cercavam as muralhas do castelo em Montemor. Fugiam com todas as cautelas da vigilância ritmada com que os guardas, lá em cima, iam resguardando o repouso da real infanta. Estava serena e profundamente adormecida, com as aias respectivas, nos aposentos do castelo, na sua ala mais a Este, virada para os longos azuis esverdeados das belas águas do Mondego.
A sabedoria de Raimundo conseguiu congeminar um estratagema para que a entrada pela porta principal do castelo se efectuasse com a maior das naturalidades. A família do panificador encontrava-se já de viagem para as divinas terras de Nosso Senhor. As três crianças que a mãe mantinha abrigadas junto a si, foram os primeiros anjos acrescentados em companhia aos que pelos divinos céus bailam etéreos. Aos horrorizados gritos de dor daquela mãe amargurada, juntaram-lhe os gritos de dor física sentidos na aplicação de um firme e rápido golpe de sabre, que lhe pintou o corpo com as cores de uma cascata avermelhada. A todo este acto de insana desumanidade, o destroçado homem, que trabalha no fabrico e na distribuição do alimento da vida para as muitas gentes trabalhadoras das terras de Montemor, foi obrigado a assistir pelos assassinos de Raimundo. Colocaram-no, com o produto daquela madrugada de labuta, na carroça das viagens de entrega, com as rédeas das montadas na mão. Escondidos no meio do muito pão de milho, de broas de batata e pães de cevada, colocaram-se seis dos homens de Sabiano, armados de todas as vontades de morte. Ao lado do desgraçado homem, colocou-se o mercenário Faysal, de adaga bem encostada ao corpo do panificador, que ia ameaçando de morte. Caso ele desse aviso à guarda do castelo que ali se encontrava um destino bem diferente do doce sabor a pão quente que provinha de tanta saborosa fartura, os seus intestinos rapidamente conheceriam as tintas com que se pintava aquela madrugada.
-Como se pode avançar nesta escuridão de medos, onde os receios nos cobrem o corpo de alto a baixo com negrume? Tantas desgraçadas vidas já ceifadas em nome de causas de conquista, de credos ou de Justiças Divinas. Tantas mortes perpetuadas pelas ordens dos importantes senhores que nos comandam as vontades e os actos como astutos generais sem medo. Por que se mata, tantas vezes, ao descuido de ordens transmitidas sem que delas se faça o devido e necessário entendimento? Neste perpetuado mistério vão-se as almas completando, entrelaçando, enleando em complicadas teias de quebradiço carvão. Hoje é a noite e o dia em que a tarefa de salvar a vida da filha do nosso rei será realizada. Nem que para isso nos arranquem todos os ossos do corpo, apagando-lhe o sopro desta vida. Palavra de Fernando Dias!
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