sábado, 11 de outubro de 2008

O mais maravilhoso e enigmático segredo do Universo


118.


O ar fresco da noite iluminava o local onde António Júlio praticava a tarefa de mudança de pneu. Servia-se daquele interregno para apaziguar parte da ira sentida pelo acto irreflectido de Castro. Os cães não possuem grandes capacidades de reflexão, logo, para quê ficar tão alterado com a louca atitude do animal. Alguma coisa lhe provocou tamanha alteração na postura. Sentiu bem forte uma imensa vontade em abalar para fora da viatura em direcção ao exterior, e tudo isso sem que tivesse possibilitado, ao menos, a paragem do carro. Se correu ágil e esbaforido dali para o centro da noite, então certamente não estaria ferido ou com maleita susceptível de causar constrangimento e preocupação a António Júlio. O amigo teve um ataque de ansiedade, uma incontrolável vontade, mais uma cócega. E depois? Que mal pode vir daí ao Mundo? Provavelmente, tal como já sucedera anteriormente, antes que se dê conta, lá estará Castro a lamber-lhe as bochechas barbadas e tudo voltará a ser como dantes, sem erosão causada no alinho da sua amizade. Mas se assim o vai pensando, porque raio não consegue afastar aquela estranha sensação de ansiedade de quem acabou mesmo agora de perder um ente querido. Seria apenas a sua cabeça desalinhada a promover em si essa imagem de desilusão. A ideia do não regresso deste novo amigo. Firmada que estava esta amizade, estimada com um pacto de solenidade e esperança que não conseguiria imaginar há algumas semanas atrás, seria uma perversidade tamanha se Castro simplesmente resolvesse não mais aparecer. E Tó sabe muitíssimo bem que a estas almas livres coisa nenhuma, a não ser as vontades dos ventos, provocam alterações nas ondas das suas ritmadas marés.
Castro correu em direcção aos odores quase milenares que as riquezas perfumadas da cidade lhe misturam em imagens nas lembranças. Impossível seria tentar adivinhar as voltas que teria de dar para conseguir tocar e manter estas fortíssimas sensações que lhe vão arrebatando os sentidos. Subitamente, alguém abriu as comportas de uma colossal barragem hidroeléctrica na cabeça do pequeno cão negro. Esta cascata de milhares de imagens por segundo que invadiam as memórias do animal, provocam-lhe perturbação e ao mesmo tempo inebriantes sensações. Castro assume uma postura muito complexa. Vai tentando rotular, decifrar, interpretar e tão rapidamente quanto possível, arquivar e catalogar em novas localizações do seu concentradíssimo cérebro esta imensa quantidade de informação. Corre em direcção a alguns dos locais que este turbilhão de imagens lhe vai desenhando nas memórias. As opções são, contudo, imensas. Esta cidade de Coimbra adocicou-lhe a poesia dos sonhos. Uma imagem lhe surgia, com os mistérios dos sentidos, acima de todas as outras. Os adocicados e deleitosos odores daquela Princesa que lhe surgia bela, mágica e tão deliciosamente jovem, provinham lá do alto da cidade, onde as imagens de muralhas e construções medievas se misturam com estas modernas luzes da cidade. Acima de todas as imagens, odores e perfumes, surgia a memória de uma jovem quente, com sabores a rosa e caril, pimenta, alecrim, jasmim, palhas húmidas e odores a transpiração humana saturada com todos os incensos do prazer. Cada vez que a sua imagem e os deliciosos perfumes que a ela lhe estavam associados se tornam mais nítidos na cabeça de Castro, mais lhe dói a orelha ferida no salto para a liberdade que praticou há alguns instantes. Ladra e corre como um jovem menino cão a quem os Deuses decidiram mostrar, por breves instantes, o mais maravilhoso e enigmático segredo do Universo. Como se encontram interrelacionadas as memórias de todos os nossos passados e futuros comuns. Este sistema de correntes que protege e muda todos os destinos que giram, perpetuados, nos fortes elos que os seguram e apertam. São as veias e o sangue que nos dão a vida e a coragem para nela continuarmos a viajar, cambaleando, como pequenas crianças na descoberta dos seus primeiros passos.
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