quinta-feira, 24 de julho de 2008

Os lagos gelados de Husadel


99.

Os homens raramente mantêm a cabeça fria. Gamélia tem as mãos vestidas com umas belas luvas brancas forradas a pele de iaque. Interpreta as tragédias dos vivos que lhe vão chegando reflectidas nas águas dos brilhantes lagos gelados de Husadel. Comove-se com os momentos de alegria e tristeza que vai decifrando nas frias imagens congeladas. Todas as vidas que observa, todos os rituais, os desaparecimentos, as mortes, as arrebatadoras paixões, as vidas que se vão renovando, desenham-se em promessas nos lagos. Pelos vistos, todos crescemos, mesmo antes de termos a noção do que acarreta essa variável. O tempo esquece sempre a hora de nos dar aviso dessa situação.
Gamélia não se pode aventurar muito para além da beira das suas margens pois o gelo mantém-se sempre quebradiço. A meio de um desses brilhantes e transparentes ecrãs existe uma longa ponte de madeira por onde o anjo-mulher gosta de passear. Olha para os lagos lá de cima. Procura vidas para ler. Esse é, aliás, o único passatempo permitido por aquelas gélidas paragens. Os lagos de Husadel são os únicos locais onde dá algum descanso à sua eternidade. Para lá das margens destes lagos, uma imensa e desértica dimensão feita de branco. Ainda mais ao longe, onde a vista se deixa entreter com as bamboleantes miragens boreais, surgem as formas do Drakkar, colaborador e expectante, quebrando a linha do horizonte com a verticalidade decorativa das suas imensas velas brancas e vermelhas.
Mortes por motivos de causas naturais são as que estes anjos procuram não descobrir. Resistem mas não conseguem, pois as ondas de choque produzidas por todas as outras mortes por vias de outros motivos, passam sempre pelas leituras interpretativas por parte destes anjos analistas de Husadel. Um forte sinal deu aviso a Gamélia que algo de muito importante necessitava da sua leitura atenta. O lago começou a cintilar com brilhantes luzes de um azul intenso, em flashes intermitentes. Não havia história de uma activação luminosa assim tão forte naqueles lagos, desde que se recorda de por lá fazer leituras. A missão deveria ser levada até ao fim. As almas de vidas ceifadas de maneiras dolorosas são apagadas com intenções de não serem recebidas por nenhum animal com os restos das memórias que carregavam. São mantidas congeladas em Husadel, até que estes anjos-mulher decidam quando e como voltarão a ter sustento na eternidade do seu caminho. A alma de Maria do Carmo tinha acabado de ser servida para leitura num desses lagos aos cuidados de Gamélia. Percebeu que a pequena Alzira necessitaria de uma rápida visita sua, pois aquela vida maravilhosa tem ainda muitas coisas belas em que se transformar, e precisa urgentemente de saber que rumo deve tomar.
Voou rapidamente na direcção do enorme barco voador, que levantou as velas e os remos com destino ao quarto gelado de Alzira. De olhos bem abertos, estava já sentada na cama a adivinhar a tranquila chegada do Drakkar.
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