sexta-feira, 18 de julho de 2008

Actus Fidei


87.

- Estavam todos a sentir o cheiro do medo, como se fantasmas de gigantes horríveis pairassem sobre si vindos das profundezas do campo de batalha. Mesmo os mais hábeis e experientes de todos os grandes generais e cavaleiros do reino traziam na pele e na voz marcas desses receios. Prometiam tanto e tanto que o somatório de tantas preces daria para ressuscitar todos os guerreiros desaparecidos das grandes batalhas da história da Humanidade. Muitos barravam as faces com a terra do campo de batalha ainda sem o sal do sangue que sobre si será semeado. Nos momentos que antecipam esses combates e contendas ferozes, as humildes almas que apeadas aguardam as ordens para o início do embate, abrem as portas para as primeiras sanguinolentas hostilidades, despem-se mentalmente das suas terrenas sensações, saram as cicatrizes de todas as carregadas e dolorosas lembranças de vida, encontram as imagens mais poderosas que as crenças lhes comandam e despedem-se da sua humana vulnerabilidade. Mergulham desta forma nas rubras águas dessas históricas batalhas, acreditam nas forças supremas do herói em que se transformam, acreditam que o destino das suas santas missões assim lhes trará a glória dessa divina luz. Defendem o seu pesadelo até as lágrimas de paixão e dor se misturarem com as dos horrores e das privações que os esperam. Permanecerão encarcerados nestes territórios tenebrosos, nas catacumbas mais horríveis e solitárias que a alma de um ser humano pode suportar. Alguns atravessam em glória esse corredor de esperançosa salvação. Do lado de lá da batalha retiram do coração toda a destruição que nele carregam, beijam as armas sagradas da batalha feitas de terra e de sangue, julgam-se imunes e portadores de lembranças salvadoras. Sentem-se perigosamente capazes de dar estaladas nas faces da morte, sem que esta os esgadanhe, prenda, ou retalie. Ficam regenerados com tão notável façanha. Vão mudar o rumo dos acontecimentos do Mundo através deste poder colossal e voltam a embrenhar-se no seio do combate até que apenas se detenham em pé os bem-aventurados heróis triunfantes. Espadas pesadas e cintilantes misturam-se com machados, bestas, setas, cheiros e odores a medo, sangue, fezes, mortes frescas, suores e gritos de fúria, de padecimento e de incitamento, animais velozes e pesados que esmagam corpos com o peso de suas patas, que por eles se despedaçam quando atingidos mortalmente. O cheiro a queimado pelas violentas e modernas maneiras de dar conta das tropas inimigas, elmos ferrugentos e pesados, que ao invés de proteger quem deles faz uso, tornam-se carrascos cruéis por via da temperatura infernal que alcançam no pico do calor destas planícies de contenda. Encontram-se até guerreiros das mesmas partes a darem conta da vida de companheiros de luta, pois a cegueira dos actos de matança torna cinzentas as definições do inimigo. E isso acontece mais vezes do que se poderia supor. Irmãos de armas e de combate acabam com a vida dos seus por engano, ébrias desconfianças e devaneios infernais, que só quem passa por estes assuntos de batalhas e delas regressam vivos, sabe o que se está aqui a apreciar!
O rei Dom Sancho intervalou o seu relato com o olhar carregado de sentida emoção para logo de seguida lhe dar continuação.
- Nestes passeios de guerras e de batalhas passadas, muito da alma deste rei que aqui tem a dar-lhe ouvidos, se construiu e se embruteceu em silêncio. Como deseja que um coração tão destroçado e já tão bárbaro na construção de seu carácter lhe possa dar o justo crédito desejado, pequeno Gonçalo? Sei bem qual é o seu dono! Já tive essa idade e com ela me transportou meu saudoso pai nas garupas de batalhas por ele travadas, para me dar a consistência e moldar a devida formação guerreira. Sabia muito bem Dom Afonso quem lhe herdaria as futuras empreitadas de construção do reino de Portugal.
Gonçalo de Arriconha verificava e sorvia cada palavra desta inspiradora confissão de El rei Dom Sancho I como dádiva do Senhor. Deixou depois que o silêncio dedicasse ao espaço do encontro necessário adoço retemperador.
Passaram assim os minutos com Gonçalo em oração e El rei expectante. Saído depois deste silêncio feito paz, o jovem ergueu a voz que guardara dentro da sua pequena figura de gente, abriu as mãos à sua frente com as palmas viradas para o céu, joelhos dobrados e seguros pelo pavimento do salão e cantando, rezou para Dom Sancho um perfeito Actus Fidei:
-Dómine Deus, firma fide credo et confiteor ómnia et síngula quae Sancta Ecclésia Cathólica propónit, quia tu, Deus, ea ómnia revelásti, qui es aetérna véritas et sapiéntia quae nec fállere nec falli potest. In hac fide vívere et mori státuo. Amen.
Acto de fé :
Senhor Deus, creio firmemente e confesso todas e cada uma das coisas que a Santa Igreja Católica propõe, porque Vós, ó Deus, revelastes todas essas coisas, Vós, que sois a eterna verdade e sabedoria que não pode enganar nem ser enganada. Nesta fé, é minha determinação viver e morrer. Amén ..
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