domingo, 13 de julho de 2008

Mais um arrepio


81.

O que se passa com este homem simpático?
Castro percebia que as vontades de António Júlio ainda lhe provocam estes desvios desanimadores nas rectas das suas estradas. Os caminhos que se percorrem transferem peso para as memórias, marcam na alma de cada existência as cicatrizes de cada um, os reinos que já foram de quem não somos e que apostamos na felicidade do que ainda está para acontecer.
O cão andava confuso. Sabia que era mais seguro passear na companhia do Tó. Sentia que a companhia que proporciona ao novo companheiro já lhe tinha sido bastante auspiciosa. Se ainda contemplam o futuro devem-no aos atentos cuidados dos seus sonoros e desviantes latidos salvadores. Soubera ele conduzir, e já teria colocado as patas ao volante para ajudar o amigo no descanso do passeio. São já trinta os minutos em que Castro não desvia o focinho da estrada à sua frente, como se aquele instante, há pouco, o tivesse transformado em gárgula medieval. Só assim se sentia seguro naquela tentativa de proporcionar a ambos a continuidade deste destino agora comum.
Anda falta um pouco para chegarem a Coimbra, e antes de Leiria a aparição do Mosteiro da Batalha na descida da nacional, após curva para a direita. Em Castro, mais um arrepio! Sentiu uma simbiose entre este presente e um passado longínquo que lhe enche por vezes o copo das lembranças. Pareciam cromos mal colados que lhe escapam de dentro das velhas páginas soltas e amareladas do seu álbum de memórias. As inspiradas imagens, cheiros, sensações e formas de outros locais por si já pisados, tanto lhe surgiam assim como punhaladas brutais, como lhe apareciam embrulhadas em bonitos sonhos com suaves tonalidades pastel. São filmes antigos sujeitos a processos de colorização à posteriori.
Olhou para o amigo, os olhos pediram paragem na sombra do monumento. Abriu-se assim à história do passeio a possibilidade de lhe acrescentar em riqueza o recurso perfeito desta memória.
- É imponente, verdade Castro? Deixa-nos perplexos com tamanha beleza e com o peso da história que por aqui se foi carregando e construindo. Não precisas de me fazer mais sinais nessa tua tão sábia forma de fazeres chegar a água ao teu moinho. É claro que iremos parar aqui. Para descansar e para desenferrujar os músculos das pernas e das minhas lembranças.
O cão sentiu contentamento e um leve quentinho a aconchegar-lhe o preto tapete que lhe cobre a existência. Mais um afago carinhoso do amigo condutor lhe transportou tranquilidade e acalmou os receios com compreensão.
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