domingo, 13 de julho de 2008

Somos as diferentes verdades deste Mundo


82.
- As verdades já estão no Mundo, quer as encontremos, quer não! Mas saiba Vossa Senhoria que el Rei padece de maleitas bem mais profundas do que as do corpo que lhe pertence. O espírito de Dom Sancho vem-lhe colocando sérias questões e responde-lhe com a omnipresença da Sua voz, com o direito que lhe dão as divinas entidades que detém a guarda das chaves dos reais mistérios e das reais averiguações do seu espírito. Entregou o seu destino a essa voz com a calma que só El rei sabe manter. Ultimamente não consulta sequer os reais conselheiros do reino. As misteriosas mortes devidas por peste e maleitas diversas ferem a ousadia dos seus pensamentos esperançosos. Contudo, eleva ainda aos Céus as suas preces e os seus ideais de expansão, unificação e conquista para este reino de Portugal, ainda tão novo! Dúvidas. Eram, seguramente, as dúvidas que mantinham El rei ainda sentado em real trono na presença desta pequena figura de gente ali prostrada à sua frente.
Gonçalo de Arriconha fora apresentado a El rei Dom Sancho I, que dera ordens a Fernando Dias para com ele manter conversa privada. O tempo que considerasse necessário. Era este o início da demorada conversa que daria a Dom Sancho I conhecimento dos alimentos que cuidam das maleitas da alma e algumas das respostas desejadas para os seus reais receios.
- Vemo-nos aqui e agora pela primeira vez! Onde tem estado? É demasiado tarde, ainda, para descobrir tudo? As mensagens divinas que temos recebido no nosso reino, são verdadeiras, têm significado, encontra-se explicação racional para os fenómenos, ou são apenas coincidências que a imaginação dos homens deseja ampliar para lhes dar significados de estratagemas divinos? Sabe, ao menos, ao que me refiro? Não repetirei uma só palavra. Fale comigo agora!
Gonçalo olhava para o chão dos aposentos reais fixamente, nunca, sem ordem expressa do Rei, se devia olhar em sua direcção.
- Nada daquilo que está a acontecer, aconteceu, de facto, na realidade. Tudo está ainda por acontecer e tudo está, de facto, a acontecer já aqui e agora. Na verdade, existem tempos distintos que a nossa incapacidade física não consegue ainda decifrar com os conhecimentos actuais e apenas nos permite perspectivar e antecipar em ideias. Serve esse Divino propósito para a nossa própria protecção, meu Senhor. Imagine como seriam os nossos dias se, por acaso, desejássemos saber qual o dia em que morremos. E se soubéssemos interpretar, no dia de hoje, os sinais que nos dão a exacta resposta a essa pergunta? Que seria dos nossos actos, das nossas visões, do nosso vulgar dia a dia? Que lugar teria o Sagrado na nossa humana existência? E que seria dos povos se soubessem que outros já foram? E se soubessem que mais formas de existência irão ainda experimentar no seu infinito e renovado caminho? E que tudo, afinal, mais não são que meros sinais indicadores que nos providenciam a Luz neste caminho?
El rei levantou-se, com convicção. Acalmou-se. Sentiu em si uma estranha vontade em apertar o pescoço ao rapaz. Mas que paranóia passaria pela cabeça de tão nova personagem. Possui perigosas capacidades de, pelas artes da oratória, captar as atenções das plateias, mesmo que sejam constituídas por público tão escasso como é aqui o caso. Só que Gonçalo sentiu a transformação que as suas palavras produziram na pele de Dom Sancho e, sem grande hesitação, continuou.
- A filha mais velha de El rei foi ameaçada faz pouco tempo. Mais do que simples ameaça, as vontades que carregam são fortes e com sentido. Tristeza me é transmitida pelos seus pensamentos. Vossa Senhoria sentiu nelas vontade em dar-lhes concretização, quando este novo reino tanto carece da sua Real liderança. Sente-se cansado, doente, atraiçoado por seus conselheiros. Amaldiçoado por um Papa severo e desonrado por um clero em constantes quezílias e intrigas intestinas. Está na hora de mostrar a todos a fibra do seu carácter e a força que sabe trazer ainda em si escondida.
Dom Sancho ficou quase petrificado com estas palavras de Gonçalo. Como podia ele saber dos pensamentos de abandono causados pela possibilidade de uma conspiração lhe trazer escondida a morte. Aquela mão decepada fora sinal evidente de que personalidades habilidosas lhe indiciam homicídio. A sua filha mandara retirar do Lorvão, sem a ninguém ter dado conta. Como poderia saber este Gonçalo desse facto? Ter descoberto isso estava completamente fora das suas terrenas possibilidades. Muito menos ter dado conta dos seus próprios sentimentos e pensamentos. Mas Gonçalo continuava, imparável, e com voz doce, a dar conta a El rei de mais miraculosas novidades servidas com meiga conversa.
- Vossa Alteza mais não fez que pensar em aproveitar essa ameaça para, através dela, abandonar esta existência! Não o faça jamais! A coragem que em si transporta obterá renovadas formas de construção no grupo de Templários que me trouxe até si! E que dedicação extremosa por Vós nutrem e semeiam! Mais ninguém neste reino por Vós carrega aos ombros tanta abnegação e reverência! Fazem-no pelo mais respeitador desejo em dar a este reino de Portugal o rei que tanto merece. Sabe também Vossa Alteza que essa mão foi portadora de um sinal Cristão da maior importância. O Bispo dom Pedro Soares já disso lhe deu sinal. Foi Mancussio, o Genovês, que interpretou a mensagem da cruz bizantina que os conspiradores deixaram, com a mão decepada, na caixa encontrada no Lorvão por Dona Teresa. Vai já a caminho da santa cidade de Roma para disso fazer indicação ao Papa.
Dom Sancho continuava em pé, olhando para o corpo aninhado do jovem, a quem iria dar ordem para se erguer. Como sabia ele tantas coisas acerca dos acontecimentos importantes no reino, na corte e com os seus párocos? A protecção dos secretos caminhos, construída com os cuidados extremos das privadas conversas, sempre mantida naqueles aposentos isolados por paredes inexpugnáveis, eram, ainda assim, quebradas perante estas improváveis capacidades adivinhadoras de tão frágil corpo humano! E mais ainda, as suas palavras soavam puras, como só recorda em algumas das frases de seu pai, enquanto jovem. Gonçalo continuava a conversa.
- Demasiados crimes afectam o povo. São encomendas de almas doentias, inicialmente a soldo de seu antigo genro Afonso IX de Leão. Raimundo, o bárbaro zanata perseguido pelos Templários que me escoltaram até a sua presença, é portador de uma maleita mental que tempera com alucinadas maquinações cruéis, providas pelos brutais serviçais que cegamente o acompanham. São eles os responsáveis pelos assassinatos das grávidas, dos habitantes das pequenas povoações cruelmente martirizadas, dos muitos religiosos padres, desde que entraram, há anos, pelo Guadiana em terrenos bem a Sul ainda com Al Mansur. Daí foram subindo em direcção ao Norte tendo avançado até Rates. São eles que conspiram a morte de El rei. Já não lhes basta o sustento das mortes das figuras de Cristo ou as carnificinas provocadas em gentes rurais. Agora, só a morte das altas individualidades do reino, com El Rei Dom Sancho à cabeça, é desafio de valor para o jogo infernal que esse diabo em forma de gente vai mantendo com a sua alma torturada.
Recuperando a sua posse real, segurando o ombro esquerdo de Gonçalo, acalmou as suas dúvidas dando expressa ordem ao pequeno rapaz para se erguer e olhar El rei de frente.
- Quem és tu, afinal? Não me foi dado conhecimento, quer em sonhos, quer de qualquer outra forma, que pessoa como tu me viesse trazer alento ou causar estranheza nas lides do meu reinar. Até tentei fazer o mesmo que tu! Jogar com as palavras que ouço em minha mente. Perguntar-me se tudo não passa, afinal, de um grande erro. E depois, o que vejo? Padres, figuras verdadeiramente santas a morrer ao tentar dar ajuda a enfermos da peste. Importantes figuras da igreja, quase loucas, a lutarem pelos diferentes poderes que a missão de Cristo na Terra lhes destinou. As coisas pequenas da vida e da morte a causarem-me tamanhas maleitas no peito que as entranhas me saem em sangue jorrado pela boca que tosse. Em breve estará tudo terminado caro Gonçalo. As cartas já estão destinadas e distribuídas pelas divinas leis. Quem somos nós para as questionar?
Sem nenhuma dificuldade o pequeno rapaz deu rápida resposta a El rei Dom Sancho I.
- Somos as diferentes verdades deste Mundo!
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