segunda-feira, 21 de julho de 2008

Coisas de bandulho


93.


- O que é que aconteceu? Como se dão as correctas honrarias a estes exercícios de descomunais reais dimensões?
Os dias são agora momentos de longos e cavalheirescos repastos. Usam-se as mãos como talheres, tudo o que se apresenta para o manjar deve ser provado, saboreado, mastigado nas vezes da real etiqueta, nem mais nem menos do que aquelas que El rei decide, com atitude sensata, no início da refeição. Mesmo com os negros dias de peste e fome de que se tem vestido a vida na cidade, a ocasião proporcionada pela inesperada visita de tão nobres cavaleiros Templários, seu mestre Fernando e a singular figura do pequeno jovem Gonçalo, deram motivos a El rei para dar uso das correctas formas de recebimentos às nobres figuras do reino. Acrescido a este facto, que só por si seria já suficiente para proporcionar recepção de idêntica qualidade aos Templários do reino, a oferenda com que El rei Dom Sancho I selou este pacto de proporções divinas, ainda mais o justificava.
Regras de etiqueta deviam ser cumpridas. Nada de bruscos movimentos, ruídos exacerbados ou divertimentos de guerreiras dimensões. Grandes, imensas as quantidades de magníficas iguarias que aqueles cinco dias de provimento e deleite das coisas de bandulho trouxeram às cansadas cavaleiras figuras. Estes dias gloriosos não serviam só para matar o tempo. El rei praticava nestes encontros os seus dotes de trovador poeta, com leituras e práticas de cantorias por trovadores que animavam os finais de tarde e a investida da ceia, que se prolongava noite bem dentro, até os estômagos quase estourarem com todos aqueles culinários prazeres. As mesas iam servindo de cama, as roupas já nadavam em molhos, vinhos, e toda uma confusa mistura de outras cores de diversas proveniências, como peças de caça, muitos javalis bem temperados, perdizes, lebres, faisões, enchidos de carnes de todas as espécies, patos dançando depois em arroz de fessura, carneiros e cabritos, nacos inteiros de boi embebidos em vinho tinto, galinhas, frangos, pães de cevada, centeio e castanha, muitas couves, aboborinhas, cebolas, espinafres, sopas de deleite suprema temperadas com bons azeites, alecrim, manjericão, mesas carregadas com ovos que formavam torres, uns cozidos outros ainda crus, que provocavam misturas de odores azedos ao seu redor, compotas e muito mel para consumir até à exaustão. Um dos serões dedicaram ao pescado, quer de água doce quer vindo dos marinhos ares das praias das redondezas. Tudo carregado de sal até ao topo. El rei deliciava-se com os grelhados sabores do peixe. Considerava as suas tenras carnes brancas criação sublime. Muitas e muitas cestas com fruta de época. Peras, imensas laranjas, maçãs, cerejas, que El rei adorava misturar com as sopas de tripas de vitela que sorvia de malgas feitas de prata. Gorduras até à exaustão serviam os dedos daquele manjar. Banhas de porco, toucinhos, presuntos crus e manteigas de variadas proveniências. Também os queijos, morcelas divinais, tigeladas servidas no interior de enormes melões e melancias cortados em metades, biscoitos de mel e azeitonas, serviam para acompanhar os bailados e outras danças manejadas com malabarismos de fogo que algumas cortesãs e outras donzelas fizeram o favor de a todos apresentar.
Estes festejos caíam muito mal ao bispo e às demais importantes figuras religiosas da cidade, pois neles se antecipavam e praticavam os pecados da gula e outros bem mais carnais e inseparáveis, que de maneira pouco misteriosa, a eles se acabavam por juntar. Essas questões nada incomodavam El rei, nem destes assuntos falava com os responsáveis do clero. Os homens guerreiros e os que carregam às costas o colossal peso da sempre obstinada missão de comandar os destinos de um reino, não se compadecem com esse tipo de pieguices. Do alto do seu trono, já bem bebido, comido e faustosamente servido das carnais delícias de sua amantíssima D. Maria Aires de Fornelos, ia dela arrecadando o que para si eram merecidos reais favores, e assim continuava Maria Aires, mágica e divertida, cheirando a guisado de alfazema, e aos reais desejos dando concedimentos e libidinosos amparos, como se fossem eles terrível doença real.
No final dos cinco dias de festim, aquelas almas feitas tapete humano descobriram-se adormecidas e amparadas pelo fresco pavimento do salão. Estavam abrigadas desta viagem, num lento acordar que a alguns chegou a relembrar as dores sentidas quando as mães os pariram e assim os confiaram de presente ao Mundo.
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