segunda-feira, 14 de julho de 2008

Chamava-se princesa


83.

- O que é que estás a comer? Não vou deixar que te comeces a alimentar de animais cuja proveniência não se conhece. Pode-se mais depressa assassinar importantes figuras pelo seu estômago do que aquilo que se possa imaginar. Ainda para mais sendo tu o cavalo mais importante e insubstituível de todos os corcéis Templários. Meu senhor Fernando Dias nunca me perdoaria se te deixasse ficar doente com maleitas de estômago. Provavelmente mandar-me-ia matar, apesar de todos os anos já passados ao seu serviço, e mesmo depois de tantas histórias ter comigo partilhado. Temos de ser cautelosos. Afinal de contas, não temos mais ninguém. O futuro pouco mais é do que isto! Só temos de olhar para o caminho que temos à nossa frente. Tu, como importante montada de meu senhor, e eu, como seu pajem fiel e honrado, a quem tanto meu Senhor confia. Honra lhe seja feita com a devida estima!
A cidade, cheirada através dos estábulos reais, nem parecia tão amargurada pelas recentes privações passadas pelos seus habitantes. O cheiro de morte entranha-se nas memórias, assim como os restantes odores que se misturam aos odores dos cadáveres, ao mijo e às fezes atiradas pelos moradores pelas janelas, quantas vezes sem os necessários e legislados avisos, quantas vezes misturadas ao vento com outras secretas misturas que nestes dias pela capital do reino são semeadas pelas sarjetas com a trampa dos animais, porcos, cabras, bezerros, galináceos sem eira nem beira, burros, jumentos, éguas velhas, e a dos putos que resolvem ali mesmo aliviar as intestinas vontades, ficando tantas vezes a observar o resultado escultórico de tão perfumado produto. Mais perto dos reais aposentos não se dá tanta conta destes nojos, apesar dos cheiros se misturarem no ar sem pedidos de licença. As árvores bem altas e frondosas semeiam uma fresca sombra junto ao corcel que o valoroso pajem vai escovando. Inspiravam-lhe estes parados mas honrados momentos de trabalho as recordações destes últimos momentos com seu senhor Fernando Dias. Nas artes de manejar as armas, de pelejar, e de as preparar para a função com a fineza de um criado sem comparação. São várias as formas com que as domina e as vai arranjando. Mantém-se sempre concentrado nas tarefas, seja dia, noite ou madrugada. Nunca deixou seu senhor desapontado. Fernando Dias mostrou a sua justeza para com a singeleza e pureza de carácter do seu pajem. Chegou a atribuir-lhe, perante os seus companheiros Templários, funções que só aos mais honrados cavaleiros da ordem estavam destinados. Moldava-lhe assim, dessa forma, perspectivas de superiores esperanças. Desta maneira se devem encarar todas as humanas atribuições mesmo a quem, como ele, sabe bem que nunca poderá aspirar a feitos de heróicas dimensões.
- Sabes, cavalinho valente, que o meu senhor Fernando Dias se encontra agora rezando com fervor as graças divinas por ter cumprido com esta santa missão de carregar em segredo tão importante figura. Aquele pequeno Gonçalo arrisca-se em ser transformado num importantíssimo segredo de estado, mais do que aquilo que se descobre em fontes únicas e extraordinárias. Só agora me apercebi daquilo que ele verdadeiramente me queria dizer. Em sua opinião nós todos carregamos pequenas partes da verdade Divina que é a vida eterna. Só por alguns breves momentos desta nossa existência, partes dessa verdade nos são dadas a conhecer, de formas por vezes bem estranhas, segundo me disse Gonçalo. Confidenciou-me, na presença de meu senhor, que irei ser instrumento de mui importante acontecimento em sua vida e que só então descobrirei a verdadeira razão desta nossa tão forte relação de amizade e respeito.
Do alto do estábulo, do escuro quase insuspeitável da sua superior protecção, uma voz feminina surgiu, rouca, forte, atractiva na sua ríspida sonoridade.
- Eh tu, moço guerreiro, agora me pareces mais como cavalo muleiro, para aí palrando com a besta? Que me dizes comer ou beber pequena porçom de qualquer cousa, antes de te dar a provar meu mexilon?
Assim investia, nestes preparos, menina nada atrapalhada que por ali se encontrava a pesquisar estes novos viandantes recém-chegados. O apelo da carne enchia as vontades da rapariga, e nada ou cousa alguma a faria arredar-se do seu propósito de serenar as comichões sentidas no meio da fonte dos seus prazeres. Os cheiros todos iam-se misturando num frenético cocktail de odores. Naquele instante Castro cerrou os olhos. Conseguiu vislumbrar todas as formas da feminina figura que se escondia no centro daquela escuridão, lá arriba, onde só as escadas de madeira ajudariam às suas intenções. As macias peles cheiravam a brandura. Contrastavam com o tom de voz da jovem senhora. Acabados que estavam os trabalhos de massagem e limpeza do corcel do seu senhor, o jovem pajem seguiu a decisão do seu primário reflexo. Emanava um emaranhado de perfumados odores femininos de deleite, lá no escuro, onde o prazer o aguardava. A voz estava agora transformada em pequenos risinhos histéricos, daqueles com que as senhoras presenteiam, descontroladamente, os jovens mancebos que lhes caem nas teias que arquitectam como ninhos de prazer.
- Que te traz por cá, moço guerreiro? Podias julgar-me como pessoa que pretende possuir a visom sobrenatural das cousas passadas, presentes e futuras. Estavam de grandes lérias tu e o cavalo de batalha, lá em baixo! Aqui se passa para o mundo das quentes e húmidas sensaçons. – e segurando com destreza e mestria as mãos calejadas do rapaz, lenta mas firmemente as transportou até ao local onde os seus seios as aguardavam. Castro, por esta altura, seguia as formas do peito da rapariga através dos desenhos que os seus confusos aromas lhes espetavam na alma. Os olhos mantinha cerrados. Os lábios seus lábios iam mordiscando com apetite, seguindo-se longos beijos, que como clarões de deleite, lhes iam iluminando a escuridão do local. A roupa já lá não existia, só os corpos flutuando no contentamento daquela nuvem de palha e de estrume, naquele doce sonhar acordado todos os sentimentos num só. Todas as coincidências obsessivas da humana existência evocadas e marteladas na alma de Castro através da sua incompreensível capacidade de tudo ver e sentir através de memórias olfactivas. Estranha forma esta de racionalizar os pensamentos que a alma lhe remexe bem lá no fundo. Queria ver a menina nua com os olhos e não apenas através dos seus odores. As pernas traziam-no bem preso e apertado, puxando o seu corpo transpirado e ofegante para mais perto de si. O peso não o sentia! Estava toda ela transformada em princesa de prazer, várias vezes foi vítima dessa transformação, naquela penumbra de satisfação. Já havia sangue na sua boca, pois mordera violentamente os lóbulos de Castro sem este ter disso dado conta. A única forma de distracção que os perturbava de quando em vez eram os ruídos que os cavalos iam produzindo lá em baixo, dando-lhes resposta aos que eles próprios produziam. Quando as mentes lhes começaram a transformar a realidade em ficção analgésica, os corpos arranhados de paixão, a maratona de deleite imprevisível, encontrava-se agora ameaçada com a alvorada, que os acordava para uma realidade que não tinham percebido. As horas que passaram sufocados naquele intenso contentamento carnal passaram em breves instantes fugazes como fumo de um simples detalhe adormecido.
Castro acordou passado um breve instante. Ao seu lado a palha remexida, algum estrume, e os odores da rapariga. Disseram-lhe que aquela noite não tinha sido só um sonho ou uma visão enlouquecida. Algumas das suas fantasias foram estimuladas pelos fabulosos seios daquela que Castro não sabia quem era. Mas sabia seguir as pistas feitas odores que ela, por todos os locais daquele estábulo, tinha deixado como assinatura. Flashes acendiam luzes na sua cabeça. Estava zonzo. Não sabia se era ainda madrugada ou já o dia a acordar, a voltar a si.
Chamara-lhe princesa. Assim o tinha decidido. Aquela tinha sido a noite em que a sua princesa levara como recordação o lóbulo da orelha direita. Era o seu troféu, a marca apaixonada daquelas horas-segundo passadas juntas como um só.
Esta guerra é célebre e as vontades divinas produzem ordens para as manter bem guardadas no coração de cada um de nós, nunca na alma. Tem sido uma grande jornada, verdadeiramente sentida como vida real. É complicada, mas tão maravilhosamente simples, como um beijo quente de menina terna que nos dá o que de melhor traz em si guardado. E sem vergonhas!
Podemos dançar ao som da sua melodia, assim permaneçamos vivos o tempo suficiente para aprendermos as suas correctas coreografias.
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