quinta-feira, 17 de julho de 2008

Intensas sensações de felicidade


86.

Castro, assim que sentiu o motor do velho Taunus a acabar de falar, abriu a porta da viatura com mestria assustadora e correu feito doido em direcção à vontade de se aliviar. Quem poderia saber como tinha adquirido aqueles dotes quase humanos de dar conta de fechaduras e de outras pequenas alavancas ou interruptores, com os quais se entretém na descoberta dos seus usos. Chegaram aqui estes amigos, onde o Mosteiro monumental lhes deseja as boas-tardes do alto do seu gótico avassalador. A dimensão humana das coisas ganha aqui outra relevância. As palavras adormecem, impotentes, perante tamanha façanha arquitectónica. Quando se trata de tentar descrever tudo aquilo que a vista alcança prendem-se as vontades e dotes literários, esquecem-se os adjectivos, que serão sempre toscos e incorrectos ao correrem esse risco.
António Júlio preparava-se para ligar mais um cigarro, admirando a obra, descansando a mente e dando frescura às ideias. Prepara o seu “cahier” para o regresso às palavras escritas. Novamente a grandiosidade e peso histórico destes locais chamam pelos dotes revigorados do escritor. Não se fazendo rogado, reconhecendo já quase em si o António Júlio de outros tempos, detentor das vontades e dos improvisos sonantes que agarra nas folhas do seu querer. E, contudo, sentiu aquele escorregar da direcção do seu velho Ford a levá-lo quase de volta ao caminho do abismo. Sem o desejar, de quando em vez, continua a dar crédito às vozes que lhe chegam do lado de lá do problema. Dizem-lhe que se encontram na porta de entrada da nova morada de Alzira, e que o podem fazer lá chegar, sem grande esforço. Mas Tó sente-as cada vez mais mentirosas e lá as vai repelindo, com as que descobre dentro de si, e com as ajudas deste seu novo companheiro de armas. Estão condenados a caminharem por vias de destinos mais comuns, fazendo agora história a meias.
Castro passeava pelas redondezas do mosteiro, cheirando e sentindo as cores e os seus odores que lhe iam dando informações das suas histórias bem antigas. Neste mosteiro não conseguia antecipar ou vislumbrar as imagens que obteve, com clareza assustadora, em locais anteriormente por si já percorridos. Era já ponto assente que as suas memórias caninas lhe provocam estranhas partidas de outras épocas e outras vivências, vividas enquanto gente e não animal. Imagens de vítimas e de outras estranhas cousas que não sabia descrever, nem por cheiros, nem através de qualquer outra forma ou sensação. Apareciam-lhe sem aviso, assustando-o mais pela forma do que pelo conteúdo das estranhas informações. Dificultavam-lhe tantas vezes o correcto discernimento da realidade e provocam-lhe gélidas sensações desde a nuca até à ponta do seu felpudo e negro rabo.
Não havia muita gente a passear àquela hora pelas cercanias do mosteiro. Alguns turistas iam-se entretendo a realizar as reportagens fotográficas da praxe junto à estátua equestre do Condestável. Outros preocupavam-se com as aventuras e as brincadeiras irreverentes das crianças que trazem à sua guarda. Outros procuram companheiros com quem partilhar restos de passeios ou de férias em conjunto, para aliviar as solitárias andanças. Outros apenas deambulam por estas paragens sem aparente função. Aceleram para o resto do dia que se desfaz já em despedidas, adivinhadas na temperatura da luz que veste este cenário deslumbrante.
Castro lembra-se vagamente do perfume macio e infantil que as suas narinas fixaram neste panorama de final de tarde. Vai revistando a paisagem, passeando as patas pelos passeios e outras saltitantes paragens que percorre em acelerada corrida de investigação. E como se lhe tivesse prometido este encontro, que só podia ter sido marcado por magia, ali estava a menina do chapéu verde, pela mão da sua mãe, acompanhada de outra figura feminina mais idosa. As três gerações de senhoras tinham acabado de sair pela pequena porta lateral do mosteiro, acabando a visita ao histórico local. Ficou ali Castro quase atónito pela coincidência deste terceiro encontro com a linda menina de chapéu cor de alface. Não se conteve e ladrou com quanta força lhe deram as goelas, sem evitar um estridente e bem audível ruído que ecoou por todo aquele lugar como aviso dos céus.
- Estou aqui! Afinal aquele adeus no jardim mais não foi do que um até já!
Francisca não percebera imediatamente que aquele ladrar furioso era do conhecido cãozinho guloso que lhe fizera companhia naquela partilha do saboroso gelado no parque verde, junto à casa de António Júlio. Quando deu conta da proveniência do sonoro cumprimento, largou a mão tranquila da progenitora, olhou para a mãe com um largo sorriso no rosto e avançou para Castro com a vontade de lhe deixar marcado no corpo a enorme satisfação pela surpresa do encontro.
- Querido cãozinho preto, és mesmo tu! Moras aqui por perto ou também andas a passear com a tua mamã? És tão simpático! Gosto muito de ti!
E sem necessitarem de quaisquer ordens ou superiores autorizações, entregaram-se os dois a um longo e intenso abraço de verdadeira amizade.
Nos seus corações ficaram para sempre esculpidas as intensas sensações de felicidade que estas pequenas grandes maravilhas da existência provocam na vida de quem as usufrui.
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