terça-feira, 1 de julho de 2008

Onde reside o amor?


76.

- Onde reside o amor, Castro? Deixei selar o coração como uma concha de praia privada, pertencente a um grupo restrito de misteriosos bivalves desconhecidos para a ciência. Desde a morte de Alzira, já lá vão mais de três anos, que me sentia impedido de agradecer o que quer que fosse, e parecia que nada fazia sentido. Correspondências mantidas até atingirem pequenas montanhas de papel amontoado no chão da entrada de casa, como ofertas do Diabo, lá ficaram durante os primeiros meses, até que lhes forneci o devido afastamento com a fuga do remate. Alegava que os deuses não me deixavam outra alternativa que não fosse a condução do corpo e da alma pelos horrores da humana privação da solidão. Tentar mudar os movimentos e as rotinas de uma vida a dois, tão dolorosamente aniquilada pela divina força da intimação feita a Alzira. Antes me tivessem convocado a mim, ou aos dois juntos, porque não? Os anos parecem dias, por vezes mesmo minutos, quando os analisamos com a vontade de os fazer retornar às imagens do que agora não passa de mera memória. Uma nave espacial que pudesse fazer voltar atrás o tempo, só por breves anos, não mais. Tantas vezes desejei essa máquina em sonhos após a viagem de Alzira. Poder beijá-la de novo, sentir o seu cheiro. Pensar que tantos outros são bem menos importantes nesta vida e por cá continuam a sua existência banal. Mas como são frágeis estas superficiais observações da minha alma, Castro, como são superficiais e terrivelmente frágeis. Por acaso não me estarás a arranjar um bonito apelido com o qual me possas baptizar depois destas meus azedos pensamentos em voz alta? Olhas para mim assim e eu sinto que estás a avaliar a intensidade da força que ainda vai restando ao suporte de vida que me sustenta a existência. Tal e qual! É mesmo isso que parece quando me olhas assim Castro, com esses teus olhos vigorosos. Despes a minha vontade em esconder segredos na alma. Isso é bom, faz-me respirar as paisagens com novo e revigorado alento. Como foi doloroso nunca ter conseguido a proeza de sermos pais. Francisco ou Francisca, para a casa ficar brilhante como o Céu! Alguém pequeno para amar e ajudar a crescer. Uma família que desapareceu sem ter acontecido. As simples palavras de amor que uma mãe e um pai desejam poder fazer chegar carinhosamente aos corações dos seus filhos. Foi penoso Castro! Não nos foi dada essa possibilidade em Terra, como no Céu!
Alzira permanecia imóvel por largos momentos, sentada num dos bancos daquele jardim em frente a casa, a olhar enternecida para os Franciscos e Franciscas que se deliciavam com as suas inocentes brincadeiras de crianças.
- Muitas foram as finais de tarde em que dei com ela assim presa a esse melancólico passatempo. Sentava-me junto a si. A minha mão desaparecia no meio das dela e ali permanecíamos naquela dor comum que muito dificilmente nos ajudámos a ultrapassar. Acalmava as nossas mentes mas a obsessão era sombria, genial na maneira como tecia a sua teia de perpétuas vontades. Queríamos acalmá-la mas por vezes a dor era verdadeiramente insuportável, como agora, um gigante a dar-nos valentes pontapés no estômago.
Castro deixou por instantes cair o seu focinho para o interior das patas dianteiras! Sentiu neste relato de António Júlio a marca da confiança. Em si já sente um amigo confidente. Sentiu que já noutra altura alguém consigo tivera atitude semelhante. Levantou novamente o focinho, olhou por instantes para o rosto de Tó que continuava a olhar na sua direcção. Virou depois o seu esperto olhar de cão na direcção da estrada e só teve tempo de ladrar com todas as forças que lhe couberam na garganta, três, quatro, cinco vezes seguidas! António Júlio tinha-se distraído naquela pequena viagem pelas memórias do seu mais recente passado e não dera conta da condução. Tinha saído da sua mão e pouco faltava para colidirem de frente com um enorme camião de mercadorias que vinha em sua direcção!
No reflexo daquele instante, António Júlio teve ainda tempo para se considerar, ou não, apto em guinar o volante do Taunus na direcção da salvação. Talvez deixar que aquela viagem os conduzisse bem depressa até à porta de entrada da sua Alzira, lá no alto, pertinho daquelas nuvens onde os pássaros que Castro tinha admirado há instantes ainda passeavam as suas intenções de passeios.
Ao quinto latido de Castro as mãos de Tó sentiram a força da vontade a puxarem-lhe as intenções para a direita, deixando assim o lado errado da estrada para a passagem bem ruidosa do atrapalhado camião de mercadorias. Castro viu os olhos de António Júlio ganharem lágrimas de sal.
O amor reside tantas e tantas vezes nestas misteriosas forças feitas de esperança. Quando quem amamos nos envia assim de longe estas divinas mensagens.
- Tó, meu bondoso esposo. Continua dedicado às simples causas de humanas tarefas terrenas. Pensa no nosso amor e não optes pelo mais óbvio! Ainda carregas em ti muita Alzira para dares a conhecer ao Mundo. Ainda escondes em ti muitos Antónios Júlios por revelar nas histórias que vais ter de contar.
A mão direita de Tó avançou calmamente para o afago aconchegado na cabeça negra do amigo Castro que se mantinha agora bem atento e de latido à espreita.
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