quarta-feira, 9 de julho de 2008

Nas telas da imaginação


80.

No correr se sentiam as pernas leves. Carregavam doces e amargos sabores a chocolate preto. Alzira lembra-se de como lhe sabiam tão bem as deliciosas guloseimas que as tias compartilhavam consigo enquanto criança pequena. Esses dias não estão tão longe dali, mas essa distância foi percorrida com a rapidez de um desejo. Essa sensação de veloz desaparecimento da essência de quem se é agora e já não somos amanhã assustou-a e pairava nos seus pensamentos de maneira compassada. Ouvia o seu ofegante respirar motivado pela desmedida correria em que as três se viram envolvidas. Percebia que a tristeza que carregava em si se alimenta através de raízes com origens bem diferentes das que inicialmente tinha compreendido. Bebiam nutrientes com diversas proveniências e dispares inseguranças. Desejava beijos intermináveis, daqueles que lhe pudessem acalmar os receios do escuro que carregava dentro de si. Os receios de crescer e deixar de ser a criança que ainda sente em si bem arraigada. As canções que respira são muito longínquas. Aparecem do outro lado do Atlântico e vão ainda mais longe, atravessando o continente Norte-americano até à costa do Pacífico, selando-lhe o destino com as palavras de cidades californianas que lhe martelam as ideias e as vontades do seu futuro que deseja distante dali, sem saber ainda como. Revelações que lhe são assim despejadas como sonhos de histórias que deseja tornarem-se reais, bem reais. Os olhos não a abandonam nestes projectos. Vão acompanhando com desenhos as palavras destas fantasias que carrega em si e que vai despejando nos seus companheiros diários. Esses seus desenhos são outra das maravilhosas capacidades que Alzira transporta com inata simplicidade. Tem o gosto de uma pequena arquitecta e o talento e a alma de uma artista, tão imensa é a sua capacidade de absorver a beleza em tudo aquilo que a rodeia. A sua sensibilidade é feroz, instintiva e chega a ser cruel na sua ofensiva maneira de se nos dar a conhecer. Para Alzira, é absolutamente normal e natural essa capacidade em interpretar o mundo que nos rodeia das maneiras mais primorosas. Fá-lo com a mesma simplicidade com que os pássaros voam, ou com a mesma facilidade com que as gotas de chuva caem suavemente nos leitos dos rios.
Um abanão fê-la chegar-se mais perto da tia Rosarinho que com ela procurava dar resposta adequada à batota de Berta, causadora de tanto atraso na competição. A casa encontra-se já fora da vista das três senhoritas. A propriedade ficou escondida atrás do arvoredo e não se vislumbra qualquer sinal da tia Berta que se adiantara pelo interior do pequeno bosque em direcção à vitória final.
- Anda, vamos por ali! Estou convencida que será mais engraçado transformar esta corrida num jogo de escondidas. Quando se cansar de estar sozinha, virá procurar-nos. – A tia Rosário apontou para os arbustos que rodeavam parte dos muros e do gradeamento que circundava a quinta, dando informação do destino a seguir. Para lá seguiu, sem se aperceber que a sua sobrinha tinha permanecido imóvel na posição em que se encontrava, observando esta desusada jovialidade da tia. O seu olhar observador ganhou a dimensão de uma realizadora cinematográfica. As pernas esguias da tia correm ao retardador, a preto e branco, ao compasso do coração que lhes transporta o sangue para os músculos que as fazem mover tão velozmente. Os sapatos já não lhe vestem os pés que pisam, apenas nas pontas dos dedos, a fresca relva mal aparada, que ao de leve tapa tão ágeis tornozelos. A imagem que Alzira idealiza mantém-se serena, em câmara lenta, lentíssima. Um grande plano das saias curtas da moda que lhe caíam ligeiramente antes dos joelhos, rodadas, e que provocavam aquele movimento sinuoso na tela, acabando nos pés descalços que mal pisavam a relva na rapidez da sua fuga acelerada em direcção ao esconderijo desejado. Depois a câmara para, abrindo mais o plano, que deixa aparecer na imagem todo o restante corpo da atleta ainda em fuga, ainda em câmara lenta, afastando-se cada vez mais lá ao longe, tornando-se mais e mais pequeno. Na senhora em fuga começaram a vislumbrar-se asas que se desenvolveram e cresceram rapidamente nas omoplatas, enormes, gigantescas para o tamanho de tão pequeno corpo de mulher. Os braços baixaram até ficarem bem juntos, colados ao corpo. As pernas esticadas e firmemente unidas. A cabeça levantada a olhar fixa o céu lá ao alto. As asas começaram a bater ligeiras, tal como as asas amarelas do Drakkar voador do sonho de Alzira. A tia levantou voo por cima das árvores, ganhou enorme velocidade e desapareceu rapidamente da imagem sem dar conta do destino tomado.
Por ali se quedou Alzira, a realizadora, com estas imagens feitas sonhos nas telas da sua imaginação.
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