quarta-feira, 16 de julho de 2008

A atonia dos dias vulgares


85.

A tia já tinha sumido bem alto, ocultando-se nas perfeitas nuvens brancas do céu. Que seja verdade, apesar das hipótese serem remotas, a história que as tias gémeas lhe contavam quando era pequena boneca em suas mãos. Segundo elas, as gémeas são uma espécie muito rara de anjos. Na altura em que temos de decidir se desejamos nascer anjos ou pessoas, alguns de nós ficam muito divididos quanto à escolha a tomar. Gera-se uma enorme agitação da qual, felizmente, não se guardam recordações pois são muito penosas. As células ganham vida própria, digladiam-se, procuram cada qual levar a sua avante nesta contenda brutal. Quando as forças de cada vontade acabam por se igualar em dimensão e determinação, geram-se gémeos, alguns verdadeiros, outros falsos, mas por motivos de igual origem.
Alzira ainda não tinha conseguido, até esta data, descobrir qual das duas tinha optado por ser anjo ou pessoa. Agora que ficou a conhecer Gamélia, já meditou nos motivos pelos quais, quando as suas células foram confrontadas com a dimensão brutal da escolha, optaram por seguir o caminho da humana existência. Dessa escolha nada resta nas nossas memórias, por vias das dolorosas cicatrizes deixadas como marcas nas células que acabam por perecer. Somos, afinal, aquilo que não desejámos abandonar, isto, claro, no que aos gémeos diz respeito. Mesmo aos que acabam por ser em número bem superior ao das suas tias, que são raros, mas que existem. Trigémeos e quádruplos, ou ainda mais, são o resultado de dúvidas bem profundas e vincadas. Lutas titânicas que aguardavam por resolução e que acabaram por resultar em fracassadas guerras com empates gigantescos, dando origem a esses fenómenos surpreendentes, raros mas verdadeiramente surpreendentes.
Olha serenamente as nuvens lá no alto. Tenta perceber que destino tomou a tia Berta. Deixou de conseguir suportar a intensidade da luz solar que se adivinhava por detrás de tanta brancura. Levantou a mão direita e o braço ajudou-a a tapar os olhos, que cerrou para assim se proteger da força do astro rei.
- Alzira! Alzira! Mas o que estarás tu a fazer assim especada a olhar o sol de frente? Faz mais de dez minutos que estou à vossa espera junto do portão do vizinho António. O cão que lhe guarda a casa parecia louco quando me viu chegar em tamanha correria. Mas afinal de contas, onde está a Berta? E tu, continuas feita tontinha a olhar para o céu! Mas por acaso estarão todas a ficar doidinhas? A tia Rosário, com as faces carregadas de um rosa acolhedor, parecia ter aterrado num planeta distante, onde os seus habitantes manifestam estranhos hábitos de acolhimento perante novos descobridores.
Por que terá sido a tia Berta a escolher ter permanecido anjo em forma de gente? Das duas tias, seria aquela de quem menos esperaria tamanha audácia. Se me dissesse a tia Rosarinho que ia agora levantar voo, só por instantes, só para não se esquecer como é maravilhosa a sensação de usar as asas com que o destino lhe pintou as costas, não seria nada que eu não estivesse secretamente à espera. Mas a tia Berta? Como foi possível? Correu, levantou voo de forma espantosa e desapareceu veloz por detrás daquelas nuvens ali em cima, igualzinha a Gamélia!
Os arbustos à sua frente começaram lentamente a dar indicação de que alguém se escondia por detrás deles. As alvas canelas da tia Berta disso não deixavam motivo para dúvidas. Rosarinho pegou Alzira pela mão, puxou-a delicadamente na direcção do arbusto que escondia a irmã, ajeitou o pequeno pendente de ouro e diamantes que trazia ao pescoço, herança da avó Matilde, como que a invocando para a tarefa que se adivinhava. Baixou-se, apontou para as pernas da irmã e, sussurrando, virou-se para a sobrinha dizendo:
- Ali está a Berta! Não voa, não tem asas, apenas se esconde como se fosse novamente criança. Este calor da manhã talvez esteja a provocar alguns desajustes e pequenas alucinações, nada de grave. O que achas Alzira? Vamos agora chamá-la e dizer que a descobrimos?
A pequena senhora continuava a julgar toda esta cena como realizadora cinematográfica. De dentro do arbusto saiu Berta com um objecto luminoso das mãos. Olhava para ele com estranheza, pois a forte luminosidade provocara-lhe encantamento e motivos de alegria. Tinha encontrado a caixa mágica de Alzira. A mesma que Gamélia lhe desejara entregar no sonho que tinha tido. O nome lá estava, escrito com peças coloridas de um bonito puzzle, embutido na tampa da caixa mágica. A tia Berta caminhava na sua direcção, segurando o presente nas mãos com todo o cuidado para o colocar, seguro, nas mãos de Alzira!
- Olha, com tamanha correria e precipitação, escorreguei, tropecei numa raiz que ali estava ao pé do muro, e o salto do sapato partiu-se. Vou ter de ir assim descalça até casa para calçar os azuis e brancos que trouxe de reserva.
A magia cinematográfica dissolveu-se da cabeça da realizadora, e fez-se nesse mesmo instante sóbria realidade. Afinal o que Berta trazia seguro nas mãos era o seu sapato de salto quebrado. Nem Cinderella sofrera tamanha desilusão quando perdeu a cristalina forma que lhe vestira o pé após o baile real. Alzira não tinha percebido como é que aquele anjo tinha descido tão rapidamente para dentro do arbusto. Não tinha percebido como é que a bela caixa de Gamélia se tinha evaporado e se tinha rapidamente transformado em sapato estragado de tia Berta.
Afinal de contas, o poder contido na mente de cada um de nós é bem mais forte e perturbador do que aquilo que à primeira vista poderíamos supor. É um poder imenso, gigantesco. Cabe a cada pessoa dar-lhe sustento ou deixá-lo definhar na atonia dos dias vulgares.
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