segunda-feira, 21 de julho de 2008

Paixão segundo São João

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94.
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Imagens de felizes tempos já passados surgiram às senhoritas no que restava do caminho até ao alpendre, lá ao fundo, já a descobrir-se. Queriam desejar-se novamente pequenas, naqueles tempos de meninas bem mais inocentes, onde tudo tinha o doce e amendoado perfume do chocolatinho que dividiam felizes entre si. Alzira ia balançando os sapatos da tia Berta na sua mão direita, trauteando uma melodia que de repente, sem dar conta, lhe foi encomendada pelas memórias desses tempos não muito longínquos. As tias deram conta da canção que a sobrinha mantinha baixinho dentro da sua boca juvenil, e prontas se lhe juntaram nesse musical acompanhamento. Assim se foram aproximando as três da notícia que lhes iria estragar o Agosto do resto das suas vidas.
Não tinham dado conta da grande algazarra que de dentro de casa se estava a fazer sentir. A criadagem andava num frenesi estridente, a polícia tinha uma viatura estacionada na entrada da porta principal, junto às garagens. As três trocaram entre si rápidos olhares de apoquentação e estranheza, numa mistura dolorosa que lhes sufocava a garganta, o espírito e as cores do rosto. Duas figuras de fato cinzento e de chapéu escuro como o céu em dias de tempestade olharam para elas do local onde se encontravam, aguardando pela chegada do aturdido trio.
- Meu Deus! O que terá acontecido? Não estou a gostar nada deste cenário que por ali se vai construindo.
As gémeas mantinham o andamento pesado, pois palpitaram que daqueles personagens não iria surgir boa notícia. Os seus corações batiam num compasso bastante acelerado, sentiam a sua rápida frequência martelar-lhes perto das têmporas, que disso lhes iam dando sinal. A mão esquerda de Alzira apertada pela tia Berta num acesso instintivo de defesa. O ambiente tornou-se muito assustador. Ruídos de choros compulsivos e incontrolados vindos do interior da habitação eram agora perfeitamente perceptíveis do local onde já se encontravam. As pernas sentiram a ceder. Rosarinho foi a primeira a dar conta dessa fraqueza e tombou descontrolada, caindo de joelhos no meio da gravilha do pavimento, ferindo ao de leve os joelhos com pintadinhas de sangue. Ao assistirem à queda desamparada da gémea, as figuras cinzentas dos dois homens de bigode avançaram na sua direcção para prestar o devido auxílio. Estava em definitivo estragado o resto deste Verão imaculado.
Onde estava agora Gamélia?
Alzira deixara de ouvir os sons deste lugar. Estava petrificada perante esta cena e ficou estática, sem reacção. O seu corpo deixou de controlar.
Berta auxiliava a irmã, tendo largado a mão gelada da sobrinha, que ali ficou isolada perante a situação. As vozes dos homens apenas as conseguia ouvir bem lá ao longe, como barulho desconexo e sem sentido. Sentiu-se desvanecer. A imagem começou a turvar-se, o chão a fugir-lhe debaixo dos pés, tal como o convés do enorme Drakkar voador, e eis que pelo seu escuro interior se sentiu desaparecer, como nas profundezas do imenso oceano do sonho da noite anterior. Não guardou qualquer memória dos acontecimentos seguintes ao seu desmaio. Soube mais tarde que esteve duas horas sem recuperar os sentidos. Duas horas da sua vida que lhe foram roubadas naquela manhã que jamais esqueceria.
Alguém a transportou até ao seu quarto, na sua cama a deitou, a vigiou, e por ali aguardou que acordasse para lhe poder dar conta do que, afinal, tinha acontecido. Nem Gamélia, durante estas horas de súbito desaparecimento da alma, lhe deu a companhia desejada. Se tivesse já a mágica caixa com o seu nome em letras de puzzle gravadas, dar-lhe-ia uso para saber tudo o que se passou nessas horas, qual a razão da misteriosa situação que lhe provocara o desmaio.
As tias estavam na cabeceira da cama, aguardando pelo doloroso acordar de Alzira, para lhe comunicarem a funesta novidade. Lembra-se dos seus rostos carregados de dor e de lágrimas. Lembra-se das frias mãos que lhe amparavam as suas em trémula ligação. Lembra-se das escuras e sombrias cores com que lhe apareceram vestidas e dos negros véus que lhes abrigavam os rostos. Recorda-se que não foi necessária qualquer frase, conversa, sílaba ou movimento dos lábios para perceber que sua mãe não fazia já parte deste Mundo. Alzira tinha ficado órfã de pai e mãe no curto espaço de um ano. Restavam-lhe as gémeas tias e a avó Matilde que a tudo ia resistindo com a força de um rochedo granítico lá longe, no Brasil. Sentiu que jamais seria quem até então tinha por ali crescido e se feito moça. Este trágico acontecimento não lhe permitia outra saída que não fosse a de honrar a imensa coragem dos Sousa Bessa, de quem se sentia herdeira e fiel depositária da corajosa linhagem que sempre os caracterizara. Mas neste momento as forças ainda são escassas, e deixou-se sentir ali deitada mais uns instantes, só mais uns breves eternos instantes, como se o colchão fosse nuvem branca nos céus deste Verão, soprada por doce brisa ao som da paixão segundo São João de J.S. Bach.
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