domingo, 29 de junho de 2008

Corrida olímpica


75.

- Pareceria um crime não aproveitar os serenos perfumes desta temperada manhã! Os estranhos processos de eliminação mental colocaram bem distantes os trabalhos da faculdade que preocupavam as tias de Alzira. Registavam agora os doces aromas perfumados do campo das suas infâncias. A sobrinha já tão crescida, ainda não senhora, mas muito senhora da sua vontade e dos valores em que acredita. Tão frágil e simultaneamente tão poderosa em carácter. Sentiam ter sido a sua sobrinha atacada pela mesma obstinada e vigorosa marca dos Sousa Bessa! Outra ideia em recados lhe fazia zumbir o pensamento. E se Alzira fosse incapaz de suportar o peso dessa sua obstinada vontade? E se esse mesmo peso lhe fracturasse a capacidade de aceitação da razão?
- Alzira, meu anjo! É por ter por ti tamanha admiração que o digo, e é muito pessoal este meu pensar. Tenho de perguntar, Alzira! Tens de nos dizer o que te trás tão atormentada? Não faz para nós grande sentido essa fuga apavorada em corrida desorientada para perto do rio, tão longe daqui. Não faz para nós sentido, nem para a tia Carminho. Foi um súbito acesso de raiva? Uma paixão não correspondida? Uma amizade traidora, um acordo rompido de maneira insustentável? O que significou, afinal, aquela fuga?
A irmã não conseguiu disfarçar a cara de insatisfação. Fê-lo de maneira vigorosa, em voz alta e com profunda irritação:
- Mana! Então!? Façamos já de conta que nenhuma dessas questões foi por si colocada! Façamos de conta que estava só a pensar em voz muito alta! Tão alta que lhe conseguimos ouvir os pensamentos, mais nada!
Alzira olhou para trás e viu esta disputa verbal arranhar a perfeição da manhã. Não gostava nada de sentir as tias em discussão por sua causa. A importância que atribuíra ao que sucedera consigo era apenas da sua inteira responsabilidade. Jamais desejara que outras pessoas pudessem ver nisso motivo para amargos de boca ou tristes memórias. Seria necessário um rápido esclarecimento para dar contas da sua vida, talvez de maneira ligeira, ou seria melhor procurar mais complexas formas de dar conta das perplexas imagens que lhe encharcam as ideias? Não! Mais valia nunca do que tarde!
Ainda procura ela própria descobrir quem é Gamélia? O que significam, afinal, todas as eficazes imagens dos seus sonhos tão reais? Que bonita caixa é aquela que lhe desejam dar de presente os seus sonhos? Qual o nome da nova morada da sua grande amiga Marilyn? Que fascínio é este que sentiu esta madrugada pela primeira vez, no rescaldo do passeio realizado pelos dedos de suas mãos?
Olhou para a desordem das conversas que as tias iam agora provando. Sorriu! Não conseguiu deixar de se sentir importante. Era esta a prova segura de que continuava a ser uma menina bastante importante para muita gente. Ainda sentia que o era, pelo menos para as suas queridas tias.
- E que tal irmos ver se o cão do vizinho António ainda se lembra do sabor que tem correr atrás de nós? Vamos até lá? Deixem lá essa discussão sem sentido ficar aí estendida ao pé da horta. Vamos, despachem-se! Aposto que mesmo com estes sapatos de princesa de conto de fadas sou capaz de correr bem mais depressa do que as tias!
A pressão daquela corrida olímpica acabou por produzir o efeito desejado por Alzira na conclusão daquela descabida discussão. Rapidamente se apressaram três fantásticas corredoras, no meio de um verdejante e mal aparado relvado, a caminho do canino animal que lhes daria o sinal de meta para tão veloz competição!
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