quarta-feira, 4 de junho de 2008

Reflexos citadinos da capital


44.


Castro aguardou de forma terna por uma carícia de Tó. Não percebeu aquele turbilhão de ideias tão “quase reais” por si sentidas no jardim. Foi como se um cinema ao retardador lhe tivesse invadido o cérebro. Ficou ali petrificado a olhar para aquela bonita criança de chapéu verde. Nem sabe dizer quanto tempo terá assim permanecido. Tudo lhe veio à cabeça num ápice, sem aviso. Coisas muito, muito estranhas. Cavalos, gentes de vestes estranhas e muito antigas carregadas de sangue e dor. Cheiros muito acres, até os confundia com cheiros de coisas que melhor seria não virem nas lembranças de um cão! Queria ser capaz de falar, dizer que desta forma tão intensa tinha sido a primeira vez que sofrera destas visões caninas. Lá estava ele a ladrar, rouco, cavernoso. Sentia uma diferente configuração no seu ladrar, António Júlio seria suficientemente perspicaz para lhe sentir alteração.
- Vamos Castro, amanhã será o dia em que prepararemos um passeio até ao Norte. Esta cidade acaba por nos abafar a esperança, apesar das cores e tonalidades da sua paleta. Lembrei-me agora dos quadros de Maluda. Aquelas janelas em que pintava os reflexos citadinos da capital. Pergunto-me porque deixava escondidas as vidas e histórias das pessoas que viviam lá dentro? Sabes, é assim que me recordo das estranhas formas de inspiração que me vinham das coisas perfumadas dos dias. Por vezes, sem me dar conta, as ideias para os meus contos irrompiam assim, como pequenos voos da alma.
O cão olhava para Tó de forma ainda sofrida, o que lhe veio a causar espanto. Foi a primeira vez que lhe sentiu tristeza no olhar.
- Castro, mas que tens tu? Não desejas sair daqui? Estás a pensar nos amigos de rua, a tua malta das corridas e das voltas pelos telhados da liberdade? Não desejarás um pouco de novos horizontes nessa tua linda cabeça de cão?
A língua do animal saiu-lhe da boca dando sinal de contentamento. A Castro a viagem iria saber às mil maravilhas. Estava mesmo a necessitar de uma mudança de ares. E algo lhe dizia que Tó também ganharia nova alma com este passeio para fora da grande cidade. E uma frase batucava neste exacto momento a cabeça, agora mais arejada, de António Júlio:
- Benditas as bicas abençoadas das manhãs de sábados madrugadores!
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