terça-feira, 17 de junho de 2008

Escalabitana inspiração


64.

Castro sentia tamanha felicidade na visita ao castelo de Santarém. Aquelas pedras davam-lhe uma imensa sensação de tranquilidade. Lá do alto percebe a cidade e o Tejo ao fundo, tão serenos. Correu com tanta vontade que por largos momentos perdeu António Júlio o bicho de vista, mas a tal já começava a estar habituado. Nasceu esta amizade com este código genético impregnado. Súbitas ausências, ora curtas, ora alongadas em tempo, por motivos de canina felicidade ou para resolução de assuntos caninos de vital importância para toda a Humanidade. Tó mantinha consigo uma caneta Mont Blanc que lhe servia para ir registando ideias, locais, pequenas sensações, inspirações especiais. Tudo ia escrevendo num bloco A5 com capa de cabedal negra, de maneira muito descontraída, fazendo mais apelo ao sentido da visão com o qual ia bebendo a paisagem, as cores, as luminosidades tão próprias destes históricos monumentos. Nunca conseguiu explicar a si próprio, de convincente forma, este misterioso apelo que sentia pelas centenárias muralhas ou torres de menagem de fortificações medievas. A forte carga simbólica juntamente com a imagem de protecção secular que estes locais lhe transmitiam era apenas parte dessa justificação.
Começou a rabiscar ideias ao desbarato nesse seu bloco. Passaram já anos desde que se recorda das últimas palavras escritas adornadas ao sabor da poesia que carregava. Histórias a descobrir em si já não as desejava mais carregar em dor.
Mais Alzira, agora muito mais anjo tranquilo, lhe apareceu com ânimo recuperado em seu pensar.
- Aqui estou, rumo ao que falta! Era eu o favorito para tentar descobrir a porta da tua nuvem. Dá-me mais notícias deste caminho. As tuas últimas palavras, quase mudas, transportaram-me até aqui, quem o diria! O nosso tempo constrói-se com as memórias do que já se gastou e com os sonhos do que falta construir. A tua luz caminhará nessa memória dos tempos gastos, tão amigos, e ilumina agora os sonhos ainda possíveis da estrada que continuarei a percorrer. Agora bem mais esperançosa, como sei que me aconteceu, e porque o mereces, dedico-te esse caminho em falta com todas as nossas forças. Nossas e não só minhas, pois em mim carrego a força que me soubeste ensinar a construir!
As guerras travadas nestas muralhas, cobertas de vigorosos actos de coragem, com exércitos de humanas gentes, soldados que nunca desejavam receber o sabor das derrotas, fossem eles defensores de que causas fossem, estavam bem vincadas na dureza do castelo, na sua imponente militar figura.
O céu por cima, o rio ao largo, a cidade ao fundo, o horizonte a toda a largura da paisagem. Castro continuava desaparecido pelas históricas cercanias do lugar.
As ideias para um novo trabalho começavam a chegar em forma de imagens à cabeça de Tó, quase sem dar por isso. Os processos iniciáticos de inspiradoras sessões não se conseguem, de todo, explicar. Cada sentido acto de inspiração é quase como divina forma de sentir. Esta “crise” criativa parece assim ferver na alma de cada artista, seja ele actor, pintor, escritor, arquitecto, músico, escultor, ou nómada observador das variadas substâncias da alma humana.
António Júlio começou aqui, no castelo em Santarém, a sentir de novo as cócegas desse calor.
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