segunda-feira, 9 de junho de 2008

Os milagres também existem


53.

Tudo estava pronto para a partida. Castro desde muito cedo que se ocupava com voltas e mais voltas como se antecipasse regalias supremas nesta jornada. António Júlio tinha dedicado as primeiras horas da manhã a terminar pequenas arrumações. Bolachas para apaziguar as vontades de mastigação, garrafas de água, dois mapas antigos, um casaco mais soalheiro e outras pequenas coisas das quais o cão já não sabia que uso lhes daria o amigo.
- Vamos lá Castro? Tudo pronto para arrancar daqui para fora? Vamos seguir em direcção a Sacavém mas em Vila Franca saímos pela estrada nacional pois de auto-estrada não se respira a paisagem.
O velho Taunus brilhava na luz desta manhã como se tivesse rejuvenescido das décadas que já possuía. Parecia também ele revigorado com esta viagem. Para que serve um automóvel se não for para viajar e prover os seus ocupantes com o conforto e a segurança necessária para alcançarem os destinos desejados. Não se pode calcular ou quantificar a alegria que neste momento ia na cabeça do cão! Uma criança antecipa com jovialidade incontida o nervosismo que uma simples mudança de ares comporta. Este passeio, sem que o conseguisse explicar, trazia a Castro imagens e reflexos de luz que na sua memória pareciam acordá-lo para recordações das quais não possuía noção.
A chave foi rodada na ignição. O motor acordou com firmeza e os olhares dos amigos cruzaram-se com satisfação. O dia estava azul e o trânsito ajudava à festa. Que mais poderiam estes novos camaradas desejar senão uma óptima jornada a caminho de uma esperança bem mais arejada. É destas pequenas coisas da vida que, sem nos apercebermos, se cravam as imagens e odores para memória futura como se os reflexos desses instantes permanecessem para sempre colados nesse álbum de perfumados cromos imemoriais.
A mudança foi engrenada e a estrada passava agora como um pacífico tapete rolante por debaixo da viatura. Castro não sabia se colocava já a cabeça de fora da janela ou se deveria manter-se ainda sereno, apesar de assistir a cores e desviantes maravilhas a chamarem pelo seu nome de todos os lados das janelas da viatura. A primeira paragem estava destinada para Santarém. Por volta das onze estava prevista a chegada à capital do distrito. Tó teve o cuidado de atestar o depósito do Taunus na véspera para evitar algum atraso na saída da capital.
- Então Castro, vamos lá sentir o pulsar deste nosso País. Quero ver até que ponto as paisagens me conseguirão dar o retorno em personagens para as novas histórias a construir.
O cão mantinha o corpo alegre nas reviravoltas que ia dando para trás e para a frente no carro. Ora espreitando pela janela da retaguarda da viatura, ora pelo vidro da traseira do condutor, ora pelo vidro da porta do pendura, Castro mantinha uma atenta vigilância a todos os detalhes da saída de Lisboa. Os ruídos dos pássaros de ferro a aproximarem o corpo da Portela, as sirenes das apressadas ambulâncias com escondidos destinos a socorrer, as árvores que desaparecem loucas numa corrida desfocada pelas beiras dos passeios da estrada, as crianças que lhe iam acenando festivamente dos carros onde habitavam, alguns outros cães que, como ele, se adaptavam como podiam àquele nervoso ambiente rolante, enormes viaturas com gigantescas rodas do tamanho de montanhas, enfim, a tudo naquele espantoso ecrã em movimento ritmado ele conseguia dar atenção. Toda esta intensa circulação ia dando sinais a Castro de que, afinal, os milagres também existem.
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