quarta-feira, 4 de junho de 2008

Deus nos livre!


45.

A caminhada acelerada e desfocada de Alzira parecia interminável. A tarde era quase noitinha. Nem fome, só sede, aquela rapariga ia sentindo. Aguardou serena, olhando para o Ave depois da corrida tresloucada. As águas do rio seguiam seguras como se a eternidade daquele leito as segurasse em si, sempre serenas e tranquilas. Alzira chorava. Sabia que aquele local do rio, só ela e duas de suas colegas do liceu conheciam em magia. Ali podia dar asas ao seu infortúnio. A sua dor amansou com sonoros gritos, fazendo com que os pássaros levantassem voo sem destino ou direcção, só de susto. Sentiu as pernas doridas. Não tinha dado conta mas as horas e as aceleradas passadas com que foi fustigando as suas magras pernas acrescentaram-lhes quilómetros. A distância percorrida foi igual ao desespero e à raiva sentida. Alzira não desejava compreender estas coisas da vida. A solidão e tranquilidade que naquele lugar lhe iam fazendo companhia acalmaram-na um pouco. De quando em vez dava tréguas aos seus pensamentos mais cinzentos mas a melancolia do seu olhar continuava com configurações de infinito.
Por esta altura já as tias sentiam, com alguma estranheza, a ausência da menina. Não tinha aparecido para o lanche da tarde. Nessa hora não deram grande importância à situação pois estavam embrenhadas em conversas de manas, daquelas em que se necessita colocar a escrita em dia, de todas as novidades sabidas e a saber. Mas agora, quase jantar, começava a ser complicado arranjar explicação para este facto.
- Carmo, a mana não acha estranha esta ausência tão prolongada de Alzira? São já horas de jantar e desde o almoço que não a vemos!
A mãe desejava acalmar a pequena angústia já em si nascida e respondeu:
- Sabem que quando se põe a ler aquela miúda não é capaz de ter noção das horas, nem dá pelo passar do tempo. Parece que lhe desligam as ideias e acaba o tempo a desaparecer como areia entre os dedos das mãos. Espero que não demore muito mais pois caso isso aconteça temos sarilho!
As tias olharam uma para a outra e não conseguiram evitar uma estranha sensação a pairar naquele fim de tarde.
- A mana vai ter de nos desculpar, mas não me parece nada normal um atraso tão grande só por via de leituras. Alguma coisa se deve ter passado com a nossa sobrinha. Devemos ir ver se a encontramos por aí. Pode ter caído, estar magoada em algum ribanceira, sabemos lá nós o que lhe pode ter acontecido?
- É verdade! A filha de uma nossa vizinha, um dia, foi atropelada e só souberam da situação já tinham passado dois dias. A menina desmaiou com a queda e só depois de acordada é que disse quem era e como contactarem os pais.
Carmo ficou branca! Não teria sido aquela manhã de clausura infligida pela própria filha sinal de que algo de novo lhe estaria a passar pela cabeça?
- Meninas, não comecemos a pensar já o pior, Deus nos livre!
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