quinta-feira, 19 de junho de 2008

Perfume luminoso


66.

Fazia vento! Castro correu até lhe doerem as patas, a sorver aqueles odores de históricos locais. Os deuses que aos cães, de forma secreta e expedita, resolveram trabalhar as almas com tantos segredos infantis, deliciavam-se na observação das suas inocentes reinações. Lá andava o bicho, deliciado e retemperado, com a frescura da brisa que vestia aquele medieval lugar. Ao correr deliciava-se com o abrir de boca sorvendo, como água fresca, enormes garfadas de oxigénio que lhe abriam os pulmões em alegria. Observava Tó lá ao longe, sentado junto à muralha observando a paisagem, envolvido com o seu rabiscar. Travou a corrida. Sentou-se usando as patas traseiras para dar descanso ao negro corpo e ficou ali, afastado, a observar a figura daquela humana amizade novamente acordada para a delicada arte das palavras. Dava-lhe um real gozo verificar a maneira absorvida como António Júlio se dedicava à função. Conseguiu dar conta de um novo perfume trazido pelo vento Norte ao descrever invisível passagem pelo escritor. Fez-lhe chegar às narinas o ar carregado de brilhantes aromas. Deu-lhe vontade de ladrar, chamar pelo amigo, dar-lhe conta que ali estava a observá-lo. Travou essa sua vontade. Algo em si assim o avisou. Disse que não incomodasse Tó na sua renovada inspiração. Gostava de lhe sentir o semblante com novo brilho.
Recorda-se do odor da mão de Tó pendurada no banco de jardim. Nela farejou abatimento, desalento, a par de esperançosas doses de grande companheirismo. Foi este último sentir que em si guiou vontades em conhecer melhor esta figura. Nunca uma tão intensa fragrância a camaradagem suas células alguma vez tinham sentido.
Gostava de saber escrever. Deve ser bonito ter a capacidade de colocar em palavras e frases as ideias, os sonhos, aquilo que carregamos na alma. O rosto iluminado do amigo dava a Castro essa impressão. Os prazeres que sentia eram apenas de físicas performances. Agarrar mais rapidamente as latas escorregadias dos enfeites metálicos dos automóveis das senhoras. Correr, em ziguezagues fugidios, provas de velocidade e de fundo com amigos de quatro patas. Provocar humanas figuras de guarda, delas escapando com requintes de solidária e canina irresponsabilidade, alegrando as vontades com estes actos aventureiros de conquista ladina. Mas a alma dos cães não pode dar uso a humanos actos de criação.
Castro estava extasiado com a luz que descobria no perfume do escritor e desejou, de forma sincera, poder ser humano só por instantes. Queria dar conta do sabor dessa deliciosa magia que António Júlio voltara a descobrir dentro de si.
António Júlio gozava as suas novas palavras escritas em papel como límpido e saboroso fôlego dos sentidos. Deu lá ao longe conta de Castro que o observava serenamente. Sorriu. Castro pareceu retorquir. Um leve assobio saiu da boca do Tó, convocando desta forma ligeira o animal. O bicho levantou-se da sombra do seu retiro e foi andando em direcção do amigo, continuando a sentir nas ideias o perfume luminoso que o vento Norte continuava a carregar até junto de si.
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