sábado, 14 de junho de 2008

Uma pergunta um tudo-nada indiscreta


60.


Ainda se sentia abalada com o voo náutico que o estranho sonho lhe proporcionara. A água estava fresca e sabia-lhe bem. Alzira sentia o seu corpo a pisar pavimentos mais sólidos do que o convés daquele sonhado navio. Houve momentos em que não distinguiu se aquilo que observara era sonho ou a mais pura das realidades. A imensa queda. As palavras perfumadas de Gamélia, a doce sensação fresca das águas do mar da fantasia, a gélida escuridão dos seus profundos abismos. Tudo tão perto dos reais sentidos que não podia ter sido mero sonho, não podia! E que bela caixa aquela que Gamélia segurava em suas mãos! Lembra-se Alzira de, por instantes, as letras de um pequeno puzzle se moverem lentamente até formarem o desenho com o seu nome na tampa do objecto. Não podia ter sido tudo invenção do seu inconsciente! As lembranças dos sonhos desaparecem ligeiras como o nevoeiro cerrado com o sol das manhãs. Mas estas suas lembranças de sonhos recentes teimam em não lhe abandonarem a memória. E quanto mais se recorda desses acontecimentos em sonho experimentados, mais fortes se tornam as imagens, os sons e até os odores que neles viveu.
- Alzira. Minha querida Alzira! Anda por aqui descalça no chão da cozinha?
A menina moça jurou que, por instantes, estas palavras assim ouvidas sem ter delas dado conta lhe pareceram iguais às da fresca voz da mulher anjo dos sonhos. Mas logo o timbre se tornou familiar e distinto. Era a Tia Rosário que dando conta dos moderados ruídos de seus gestos, desceu para ver o que se estava por ali a passar.
- Tia! Não se preocupe! Estou apenas a beber um pouco de água. Sinto-me ligeiramente febril e vim até à cozinha descansar as ideias. Estes dias têm sido muito agitados. Tenho causado bastante embaraço às tias e a minha mãe. Nem eu própria sei bem o que se tem andado a passar comigo!
Rosarinho não quis puxar conversa com a sobrinha. Era muito tarde, quase três horas da manhã desenhava o grande relógio americano de parede que adornava a sala de jantar. Seguramente não faltariam momentos mais apropriados para poder falar com Alzira sobre estes e outros assuntos importantes. A semana, afinal de contas, ainda mal tinha começado. Motivos para conversas, esses, são já em número bastante desde que chegou na véspera pela hora do almoço com sua irmã.
- Vou acompanhar-te e beber também um pouco de água. A noite está muito bonita. Lá em cima as estrelas parecem mágicas. É tão tranquilo olhar o céu estrelado nestas amenas noites de Verão. A mim dá-me sempre a estranha sensação de que somos observados. Que todos os seres que já por este nosso planeta Terra existiram habitam algures no firmamento e zelam pelas vidas dos que por cá agora moram. Cada estrela no firmamento podia muito bem ser um deles. Será isso o que significa infinito?
Depois de ter considerado que este não seria o mais apropriado momento para conversações, o certo é que para Rosarinho elas acabam sempre por se parecer como cerejas, doces e consecutivas.
- Acho que vou novamente subir até ao meu quarto! Necessito de dar descanso ao corpo Tia Rosarinho. Doem-me um pouco as pernas. Não me vai levar a mal, pois não?
A tia percebeu imediatamente a forma inteligente como Alzira se escusou assim a dar-lhe condições para conversas mais demoradas.
- Não meu doce, claro que não! Vou eu ficar por aqui mais um pouco a observar as luzes deste céu. Até já e durma um resto de sono descansado que bem o merece!
Alzira enviou um beijo amigo na direcção da Tia, em forma de terno gesto com a mão. Avançou em direcção às escadas. Subiu dois degraus muito lentamente, olhou por instantes para os seus pés descalços e parou. Virou-se para trás, desceu novamente os degraus em direcção à cozinha, agora de forma mais expedita e espreitando para dentro desta, encostada à porta, perguntou assim a Rosarinho:
- Tia, posso fazer-lhe uma pergunta um tudo-nada indiscreta?
Rosarinho, como que antecipando esta possibilidade, manteve o seu corpo na exacta posição em que se encontrava, de frente para a janela que dava para o imenso alpendre, continuando a mirar as estrelas.
- Sim minha sobrinha. Qual é a sua questão?
Alzira hesitou por brevíssimos instantes, quase imperceptível esta sua indecisão. Depois continuou:
- A tia acredita em anjos? Acha mesmo possível que seja real a sua existência? Podem eles aparecer e ajudar-nos a acreditar que tudo na vida, afinal, faz algum sentido?
Rosarinho manteve-se tranquila a olhar as estrelas do céu, imóvel. Apenas o copo ia levando à boca de forma serena, como se estivesse a procurar em si as palavras correctas para responder a Alzira. Foi então que a resposta se fez ouvir por detrás da menina, quase que por magia, sem que esta tivesse à espera, pois a questão foi atirada para dentro da cozinha e era dali que aguardava a felicidade da solução.
- Mas é claro que sim minha bela sobrinha, mas é claro que sim! Basta olhar para o seu rosto perfeito e para a maneira tão doce como tudo de si parece desabrochar. Só alguém desprovido de razão não vê logo que os anjos são criaturas indispensáveis para toda a existência humana, e alguns como tu, Alzira, são mesmo a mais humana e perfeita forma de gente na Terra.
Alzira corou! Jurou a pés juntos que não tinha dado conta da Tia Berta. A sua súbita aparição causou-lhe embaraço e emoção. Deu-lhe um beijo na face, um sorriso de menina e subiu de forma ritmada as escadas em direcção ao quarto. Deitou-se na cama e apertou a segunda almofada bem tenra no meio dos braços. Fixava o tecto do quarto. A imagem de Gamélia, que não conseguia apagar da sua lembrança, apareceu tão perfeitamente desenhada no rosto de Berta que quase lhe segurou os braços com vontade em descobrir se, afinal, a caixa em forma de coração sempre tinha secretos segredos para revelar!
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