domingo, 1 de junho de 2008

Asas gigantes nas costas


41.

As tias de Alzira estavam impecáveis, como sempre. A viagem de táxi desde o Porto não lhes trouxera desalinho. A irmã mais velha logo deu ordens para que as bagagens fossem levadas para os quartos onde tudo estava já em perfeição desde que soube que as manas iam chegar.
- Queridas, minhas queridas, bom-dia! Que tal a viagem? Acabaram por chegar bem a tempo do almoço.
Maria do Carmo sempre tivera para com as manas gémeas um relacionamento maternal. Eram as únicas “meninas” na família e as gémeas foram as últimas a chegar. Muitas vezes sentiu mágoa por não conseguir controlar os seus pensamentos, principalmente aqueles que lhe davam conta dos primeiros dias da vida da filha. Não conseguia suportar as estranhas vontades em fazê-la desaparecer e nunca conseguiu carregar a ideia de que tinha sido sempre mais e melhor “mãe” para as irmãs do que alguma fez o foi para com Alzira.
- Mana! Bom-dia! – Responderam em sintonia, sem esconder os risinhos.
Alzira a tudo isto assistia da porta de entrada sem se mexer. Assistiu à corrida da mãe em direcção ao táxi que chegara, às ordens que dera às criadas para tratarem das bagagens das tias, aos apertados abraços e beijos de boas-vindas que repartiram de forma afectuosa e sentida, aos sorrisos e ternuras que aquelas senhoras, de forma ordeira e familiar, iam trocando enquanto se dirigiam em sua direcção.
- E tu querida sobrinha! Cada vez maior e mais bonita! Como é possível que cada dia que passa te traga mais e mais beleza! Dê um beijinho às suas tias que não a viam desde a Páscoa.
Alzira desenhou apenas um ligeiro sorriso no rosto e avançou para os cumprimentos da boa educação. Continuava ausente e o seu espírito encontrava-se bem longe dali, como se aquela cena pertencesse a um filme ao qual desejava não pertencer.
As tias gémeas não lhe deram outra alternativa que não fosse sentar-se à mesa no meio delas, tal como sempre gostaram de fazer quando mais novas a usavam como boneca. Perguntaram tantas e tantas coisas banais acerca dos dias, do colégio, do tempo, das férias, da bela sopa de espargos que a Antónia tinha preparado, do guisado com que apaladaram os espíritos, da saladinha e das variadas sobremesas que temperaram o final da refeição. A todos estes temas Alzira, de maneira sempre educada mas imperceptivelmente ausente, ia dando respostas monocórdicas procurando esconder a escuridão que carregava no peito.
A mãe continuava tão embrenhada nas conversas que ia mantendo com as irmãs que não fez questão em corrigir essas faltas de Alzira. Outro dia, outro Verão, e teria Alzira seguramente saboreado com diferente interesse a visita das tias vindas do Porto.
- Mãe, queridas tias, incomodar-se-iam se vos pedisse licença para me levantar? Gostaria de ir dar um pequeno passeio lá fora. Saborear um pouco o livro que tenho andado a ler.
A mãe, quase sem olhar para Alzira, consentiu. Continuou depois as conversas com as irmãs que tinham novidades dos namoros quase noivados, das peripécias da faculdade, de assuntos de senhoras mais velhas.
Alzira foi até ao hall de entrada e olhou para as escadas que davam acesso aos quartos lá em cima. Tinha como hábito não mentir. Pensou seriamente em ir buscar leitura. Virou-se sem mais pensar em direcção à porta de entrada, abriu-a com violência e correu com todas as forças contidas nas suas pernas de menina moça para bem longe de casa.
Ao correr sem destino sentiu o rosto a ganhar frescura salgada, a paisagem adquiriu contornos desfocados e desejou secretamente que lhe crescessem asas gigantes nas costas para poder levantar-se num voo sem meta e abalar veloz para bem longe dali.
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