quarta-feira, 4 de junho de 2008

Gamélia


46.

Na sombra daquele entardecer, a noite já sentida em frescura na pele, Alzira parecia adormecida junto à paisagem do rio. A cabeça tinha tranquilamente pousada nas mãos que tapavam o rosto. Os cotovelos assentavam bem-estar, dando as coxas o amparo. Foi nesta posição descansada que Alzira por instantes agarrou o sono. Os seus cabelos tapavam-lhe as mãos, as orelhas e desciam pelos ombros e cotovelos abaixo como cascatas douradas. Dir-se-ia que um pequeno anjo repousava agora ali, em meditação tranquila, aguardando respostas para os seus anseios. Os anjos são criaturas receosas. Possuem sexo, ao contrário de tudo o que querem fazer acreditar. São infantis. Gostam de passeios e de se ausentarem por períodos indeterminados de tempo. O tempo, por ser criação nada Divina, não os parece transtornar. Permanecem na sua candura translúcida, ocupados com as escritas de que são feitos os sonhos. Brincam quando e sempre que podem. Aparecem, se assim o entenderem, a quem tiver intenção de os receber como amigos. Nem sempre se deixam observar. Na maioria das vezes fazem-se entender por palavras no interior das ideias de cada um.
Alzira sonhava agora com a voz de um anjo amigo. Sentia a sua respiração bem perto do seu pescoço e o calor que as suas melodiosas palavras lhe faziam sentir.
- Menina, doce menina, sabe as cores das unhas das princesas? Sei que perdeu uma faz pouco tempo. As cores de princesas não são deste Mundo. Elas mudam de cor, mudam de formas, mudam de vidas. Transformam-se como as suas intenções comandarem. Sabe quem eu sou?
Desapareceu para novamente ecoar ao de leve no sonho de Alzira.
- Chamo-me Gamélia, sou um anjo mulher. Podemos escolher o destino das nossas formas. Tenho quase oitocentos anos. Não parece nada, pois não? Nem sei como continua minha voz a suar tão delicada. O tempo para vocês, humanos, é ironicamente cruel. Estes anos de existência que possuo são tão leves que uma qualquer brisa os pode sustentar! Dá-me um prazer tão incompreensível aparecer apenas a quem desejo, dando apenas resposta ao sabor dos meus desígnios. Queres temperos novos para as tuas andanças? Não me respondes? Eu sei que não és nada reservada. Conheço as palavras que escreves no teu secreto diário. Conheço os teus sonhos e pesadelos, conheço as tuas manias e as tuas vontades. És muito vaidosa! As meninas da tua idade sofrem horrores por te ter a natureza abençoado com tanta luz. Queres dar-me um bocadinho da tua luz? É que eu, apesar de ser anjo, não possuo nem a metade do teu brilho. Sorte a tua! Queres um bocadinho da minha idade? Troco-a por brilhos da tua luz. Verás que não é assim tão mau negócio. Ficas com a mesma bonita aparência mas muito mais sabida. Nunca ouviste dizer que a idade trás consigo a razão? Anda lá rapariga, responde-me. Eu só quero ser tua amiga, tua amiga,…t u a a m i g a…
Em Alzira, o anjo começou a transformar-se em formas visíveis, já não só voz quente na memória do sonho. O seu rosto desfocado começou a ganhar visíveis contornos, mais perceptíveis à medida que se aproxima de si. Já não sabia se era sonho ou realidade, pois por esta altura a cabeça é generosa na aplicação de partidas. Uma luz ténue começou a caminhar em sua direcção e foi ficando cada vez mais forte e intensa até que os olhos começaram a não mais poder suportar o seu vigor.
- Mana, Carmo, aqui! Encontrei-a! Depressa! Está sentada junto ao rio a dormitar!
Alzira, ainda atordoada com a luz forte da lanterna que a tia trazia e lhe apontava com a certeza da razão, virou a cara para o lado, levantou-se sem vontade lentamente e aceitou a mão da gémea que de forma tranquila a ergueu para junto do seu abraço!

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