quarta-feira, 11 de junho de 2008

As negras tonalidades da morte


55.


As imagens corriam demasiado dantescas. Sabiano dava calmaria às vozes que carregava em si. Ao fazê-lo tudo corria lento. Os movimentos e os sons soavam-lhe distorcidos. As preces e esgares de dor das vítimas não as ouvia. Transpirava abundantemente. Da testa caíam as gotas misturadas com o vermelho com que ia pintando a paleta. Os golpes de morte que ia aplicando eram controlados de maneira ritmada e com demónica frequência, um após outro, após outro, após outro e as vidas ao desbarato ia ceifando, sem critério. Dar alimento àquelas vozes e à sua necessidade de sentir, de sentir qualquer coisa que fosse, pois nenhuma dor terrena pelo seu corpo era experimentada. Os seus companheiros seguiam-lhe os gestos, as competentes formas de matar e infligir dores insensatas. Fazer sofrer física e psicologicamente as inocentes vítimas sem descanso, rindo, gritando, cantando, dando configuração expansiva a todo este banquete insano.
Os seus olhos inexpressivos. Dir-se-ia possuído, tão alheado de uma plausível realidade terrena se mostrava, tão ausente e tão compassado no infligir dos seus propósitos.
- Sentir, quero sentir, desejo sentir, desejo sentir desejo, qualquer coisa que me traga sustento e razão para a minha existência. Não vejo. Estou cego nesta dança de rosadas tonalidades de morte. Os olhos trago cerrados e as imagens continuam tão reais em mim, não consigo por isso acalmar estas vontades. Estão famintas de extinção, de mortes, muitas mortes para alimentar a voracidade das filhas destas vozes que me espetam os ferros na memória! Cumpria com todos os secretos rituais ao aplacar os últimos instantes de sopro de vida daquelas gentes de Gandra, onde Sabiano Raimundo descobriu o pasto para as suas alucinadas demências.
Não parava, não dava conta de cansaço, não existiam vivas gentes que escapassem às desvairadas formas de mortandade que ia exercitando. Juntou os escalpes em montes, as mãos decepadas num outro. Aplicava os cortes certeiros com um machado duplo nos tornozelos das ainda vivas vítimas, ceifando-lhes assim os pés que mandava colocar numa fogueira já ateada no centro da povoação por dois de seus serviçais. Os rostos dos restantes criminosos não podiam dar conta de benevolentes impulsos pois Raimundo sentiria neles esses propósitos e terminaria rapidamente com suas vidas.
Não se consegue entender no tempo a exacta medida daquele martírio. Foi de todos o mais perverso, bárbaro e pérfido que Raimundo e os seus alguma vez aplicaram até então. O rasto de destruição e sangue era tal que julgaríamos ter sido transportados para uma antecâmara do inferno.
Pegaram em mantimentos e em montadas de mortos, pilharam tudo o que por ali lhes deu proveito. Pegaram fogo aos casebres e outras habitações e de forma desesperantemente tranquila, como se este evento fosse absolutamente natural, abalaram sem certeza de destino.
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