terça-feira, 10 de junho de 2008

O voo do Drakkar


54.

Estavam as ondas do mar muito suaves. Navegava-se de forma tranquila e no horizonte, para qualquer lugar que se olhasse, só um imenso azul. Confundia-se com o próprio azul do céu. O cheiro do mar e a fresca brisa salgada enchiam os pulmões com este perfume aquático. Os ruídos do enorme navio Drakkar a rasgar o oceano soavam como uma música tranquila, melodiosa, quase hipnotizadora dos sentidos. No céu nem uma única nuvem a enfeitá-lo, nem uma só, para que se pudesse dizer que os celestes deuses das artes estavam em alerta naquele dia.
Neste solitário cenário onde a tranquilidade parecia ter encontrado refúgio, uma figura de menina respirava o panorama junta à beirada do navio, com os cabelos a produzirem aleatórias danças ao suave sabor da aragem do mar. Fixou o olhar nas brancas ondulações que o barco produzia ao cortar o mar como se nelas conseguisse ler histórias de encantar. Assim permaneceu por tempos infinitos como uma estátua de Tussauds.
Os remos batiam num ritmo seguro e perfeito produzindo acelerado compasso à embarcação o que provocou na menina estranheza. Não esperava esta alteração à anterior tranquilidade da viagem. A velocidade começou a aumentar de forma gradual. A brisa ligeira passou a ventania, castigando agora o rosto da jovem que recebia também repetidos perfumes salgados lançados pelos remos do navio. Aguardava uma refreada nestes ritmos quando o seu compasso começou a ganhar ainda mais vigor. A embarcação ganhou tamanha velocidade que a rapariga ficou com receio que esta começasse a voar. Os remos acabaram mesmo por se transformar em gigantescas asas amarelas, de um amarelo dourado como o sol dos fins de tarde de Verão. O Drakkar subia agora ligeiro em voo controlado, flectindo um pouco sobre o seu lado esquerdo, contornando as alvas marcas deixadas lá em baixo no imenso oceano. Ganhou uma velocidade tão surpreendente que obrigava ao cerrar de olhos constante para que o vento não fustigasse os instrumentos da visão. Só pela popa do navio se podia observar a paisagem que ganhava desfigurados contornos como as pinturas de Bacon, tal era a sua rapidez.
- Não posso voltar, mas o tempo também é meu amigo! Está tudo bem, está tudo bem….
Repetia estas palavras vezes sem conta como se disso dependesse a tentativa em encontrar respostas científicas ao que com ela se estava naquele momento a passar.
- Não posso voltar, mas o tempo também é meu amigo! Está tudo bem, está tudo bem…
O enorme pássaro acalmava a sua fúria desacelerando de forma gradual e serena, sentindo na miúda uma solidão gigantesca, uma confusão e uma inquietude que desejava fazer desaparecer. As receitas que o gigante dos céus lhe desejava passar para as mãos, dando-lhe assim repouso aos receios que a consumiam, estavam guardados numa pequena caixa em forma de coração. Por fora trazia gravado o nome Alzira em letras com forma de puzzle, o que deixou estupefacta a menina. Entendeu que aquela caixa seria um presente para si. Gamélia trazia-a segura nas mãos e dirigiu-se calmamente para junto de Alzira que pareceu não estranhar este regresso do anjo mulher.
- Olá! Sabes que temos uma enorme vontade em te dar a conhecer o conteúdo deste segredo? Afinal de contas, o que aqui está guardado só a ti diz respeito. É a tua herança futura. Tudo o que de ti e em ti desejas obter. O que estarás a fazer daqui a cinco, dez, vinte, cem anos. As receitas e as respostas aos teus secretos anseios e às dúvidas mais profundas. Os porquês das tuas lágrimas! Está tudo aqui ao abrir de uma pequena cobertura com o teu nome gravado. Só precisas de sentir em ti coragem em voltar!
Alzira ficou estática, sem palavras. Queria falar mas as palavras não saíam articuladas da boca. Gesticulava furiosamente e tentava alcançar Gamélia, abraçá-la, sentir o seu toque, mas parecia ter um peso gigante do mais denso metal a pesar-lhe nos pés. Esse peso ficou tão forte, tão inaceitável, que o navio começou a abrir brechas no convés mesmo por debaixo de Alzira. Uma enorme abertura formou-se e Alzira desapareceu, deixando Gamélia com o presente nas mãos, órfão de aniversariante.
A queda de Alzira foi brutal. Os braços nem conseguiam mover-se. O peso que a sugava na direcção do mar era verdadeiramente feroz e ao entrar com violência no oceano, este engoliu-a para bem fundo das suas entranhas até onde a luz jamais conseguiu penetrar.
Gamélia assistiu a tudo isto lá bem do alto no Drakkar e sorriu. Sabia que este sonho de Alzira, pois de um sonho se tratava, mais não era que um secreto ritual de iniciação que os futuros anjos mulher têm de suportar. Nada é aquilo que parece. As histórias não se despedaçam sempre em finais felizes, tudo é sentimento. Um dia saboreamos o sabor da vitória, noutro, precisamos das lições contidas nas derrotas das coisas banais da vida para a fortificação dos seus alicerces. Isto já Gamélia percebera nos seus curtos oitocentos anos de existência.
Alzira estava alagada em suor. A sua cama parecia ter sido resgatada de um naufrágio mesmo há instantes. Tinha acordado sobressaltada. Um estranho sonho transportou-a até ao chão do quarto onde acabou por dar por si mesmo junto à cabeceira da cama. Passou a mão no rosto transpirado. A testa ardia.
Este Agosto tem servido a Alzira histórias tocantes e susceptíveis de lhe moldarem o futuro mais próximo. A sede que tem leva-a a descer as escadas em direcção à cozinha. Descalça, alcança um copo na cristaleira da sala e enche-o com a fresca água do jarro que repousava junto ao balcão da cozinha. Ficou ali a saborear a frescura daquele descanso e vieram-lhe à cabeça as imagens do estranho sonho que desligou mesmo à instantes da alma.
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