sábado, 7 de junho de 2008

Histórias de alvoradas atribuladas


50.


António Júlio tinha jurado a ele próprio que dificilmente se acharia com forças para procurar a sua inspiração em viagens, como em tantas outras ocasiões fizera. Eram esses passeios que lhe traziam as imagens das personagens que depois colava nos seus contos. Davam-lhe os locais sensações de pertença, de vidas por lá caminhadas, de sonhos ou anseios sentidos, outros perdidos. A sua escrita não procura transmitir verdades ou dar conta de romances. Era dura como tinha sido dura a guerra colonial que lhe servira as noites em lembranças. Utiliza a sua escrita para dar vazão aos pesadelos, às agruras e angústias sentidas pelas cinzentas memórias da Guiné, naqueles tempos em que esteve cativo, feito prisioneiro de guerra. Carrega em si como tantos outros camaradas, imagens marcadas a ferro quente nas memórias da juventude assim ceifada e que lhe permanecerão eternamente no espírito. Eram tempos onde os jovens, como tantos e tantos outros que por essa altura de Estado Novo defendiam os territórios Ultramarinos, acabavam por viver pesadelos sem esperança onde, num fugaz instante, a realidade se transformava voraz acabando por lhes ceifar a nobreza eterna da juventude.
O cão preto ali permanecia junto a si, carregando naquele corpo peludo uma imagem de amizade como só conseguem sentir os camaradas que dessas memórias de guerra beberam a vida pela mesma malga de dor.
- Castro, ajuda mas é aqui a fazer as malas! Não serão muitas as necessidades de arrumação mas se me pudesses dar uma ajuda. Talvez não me esqueça das coisas mais óbvias como sempre me dizia a Alzira. As cuecas, a máquina de barbear e o mapa que o ACP sempre renova na esperança de que não nos esqueçamos das curvas das estradas. Está tudo! E tu? Não tens trouxa? Vais esquecer-te das cuecas como eu?
O animal estava estupefacto pela forma quase adolescente como Tó ia dando alimento às malas. O rabo abanava ao som do seu contentamento. É bem verdade que possuir formas de dar vazão aos anseios da alma é ferramenta poderosa para a manutenção de rumo orientado nas direcções dos destinos de cada um.
António Júlio tinha descido para verificar o nível dos líquidos essenciais ao velho Taunus, não fosse este arreliar a viagem com súbita greve sem pré-aviso. Estava agora tudo pronto. Amanhã, bem pela manhãzinha, rumariam com destino às Beiras onde a infância, quer de António Júlio, quer desta nossa valente nação Lusitana, tantas histórias de alvoradas atribuladas têm para contar.
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