domingo, 22 de junho de 2008

As superiores forças do Mal


70.

Não eram só as palavras de insustentável destemperança que não permitiam trazer em descanso a cabeça de Sabiano Raimundo.
Apareciam-lhe agora imagens de cumes gelados, bárbaros guerreiros que bebiam directamente de crânios, negras habitações onde os que lá habitavam eram atacados e colocados numa espécie de cama, de olhos vendados. Em seguida, meia dúzia desses bárbaros reuniam-se em seu redor e conversavam entre si sem que de suas bocas saísse qualquer som. As cabeças eram depois vagarosamente cortadas com estranhos objectos até que os cérebros das vítimas ficavam expostos aos olhos de todos. Os bárbaros que lhe apareciam neste retrato tinham o seu rosto, todos eram Raimundo. Entre todos os vários Raimundos procediam a uma rigorosa examinação, para anteciparem quais os próximos actos cruéis que iriam fazer acontecer. Partilhar com o Mundo inteiro estes tratamentos secretos que processavam nos cérebros daquelas vítimas, que mais não eram que outros Raimundos necessitados daquele ritual de autorizados procedimentos cerebrais. A disponibilidade demonstrada por este estranho mundo de obcecadas imagens em se cancelar definitivamente do cérebro claramente perturbado de Sabiano Raimundo, que agora sofria de alucinações e alteradas formas de custear a razão, era muito reduzida. Alguém parecia ter encontrado neste berbere uma área virgem a explorar para propósitos de indiscriminada crueldade e espectaculares desumanidades. O método decisivo com que as ordens lhe eram comunicadas dotava-o de uma clareza quase apaixonada em formas e procedimentos de acção. Nunca nele se antecipava hesitação, dúvida, ambiguidade ou qualquer gota de mínimo arrependimento.
Sabiano acreditou que aquelas comichões sentidas em seus braços podiam ser confundidas com as desordens sentidas nos seus hemisférios cerebrais e não se continha no alívio que a si mesmo ia proporcionando, com a mesma intensidade das imagens que lhe vestiam as ideias. Admitiu que tantas imagens de si não podiam representar a realidade. Era extraordinariamente inteligente para acreditar naqueles enganos da alma. Ia compensando o forte formigueiro com o constante esgadanhar dos diversos cérebros que lhe apareciam em imagens e sem vergonha. Sentia que era inevitável e ao mesmo tempo errado. Como se podia dar ao luxo de ter Raimundo a dissecar Sabiano. Há meses que ouvia as vozes a gritar ordens dentro de si. Agora trazem-lhe também imagens-problema cuja resolução será o único alívio possível para tamanha paranóia. Alguém muito superior lhe criava padrões continuados, não em sons mas em imagens, que lhe mantinham as acções ordenadas como se Sabiano mais não fosse que um orientado fantoche programado por superiores forças do Mal.
Ao acordar deste seu sono agitado viu que as unhas e os dedos das mãos tinham namorado com quase todas as artérias de seus braços. Beijou depois os dedos, pensou em todas as vidas que já por si foram despedidas e sentiu pela primeira vez que era portador de uma estranha doença da alma que lhe aterroriza a existência desde que se lembra de ser Raimundo.
O sabor ferroso dos seus dedos, esse, continuou a saber-lhe ao mais delicioso de todos os doces sabores da vida.
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