sábado, 31 de maio de 2008

Fim de tarde estranhamente arrepiante


40.

Raimundo e os seus tinham sofrido um contratempo. Havia já algum período que tudo parecia correr de feição nos intentos de dar morte às vidas de Cristo. Por terras do reino de Portugal estes diabos em forma de gente poucas contrariedades suportaram. Mas agora, ao virar de um mal afamada fraga, tombaram dois deles tendo montadas em igual número, mais um, ficado mal tratadas. A irritação com o sucedido não conseguia Raimundo evitar. O seu semblante em nada o fazia supor pois raras eram as vezes em que esse rosto reflectia as conversas da alma. Impávido e irreal. Olhava para os animais agora feridos, três montadas, sendo que uma delas era portadora de mantimentos, com pernas partidas e ossos à vista. Reh Ed Al Rashid tinha batido violentamente com a cabeça numa rocha ao fundo da fraga e a montada em cima dele acabara por pousar. Largava fios de sangue pelas orelhas e o seu olhar encontrava-se vidrado e inerte. O braço direito tinha ganho uma posição impossível de descrever. Parecia ter dado volta pelas costas depois de arrancado pelo ombro. O peso da montada caindo com o árabe pela fraga abaixo deu também ferimentos de importância extrema a Alfonso Manfredo, um nobre Leonês que secretamente os acompanhava desde os tempos em que o grupo se reunira com o rei de Leão. Desejava Afonso IX que Alfonso Manfredo lhe fosse fazendo chegar informações acerca das formas e andamentos da missão. Apesar de apenas ter ficado com os braços partidos e não correr perigo de vida, esta sua situação a Raimundo não convinha. Somando a esta conjuntura o facto de sempre ter olhado para este senhor de nobre estirpe como se um monte de esterco fosse, logo ali acabou com sua vida. Demoradamente e com requintes de alucinada psicopatia, foi escalpelando a cabeça do nobre ainda vivo. Cortou-lhe as orelhas, esbofeteou-o repetidas vezes e acabou com ele espetando-lhe a adaga pelo pescoço acima num ritual de refinada loucura. No fim do festim deu ordens aos restantes elementos do grupo para retirarem tudo o que pudesse fazer importância ou tivesse valor, para matarem os cavalos que de feridos para nada serviam e que aguardassem novas instruções. Estes acontecimentos alteraram-lhe as ideias anteriormente arquitectadas.
- De nada nos servirá continuar com os propósitos previamente planeados. Faltam-nos montadas e temos de arranjar maneira de repor mantimentos e outros haveres agora perdidos. O tempo sumido está e os homens parecem atordoados. Bando de inúteis! Para que servem as ordens dadas aos batedores para confirmarem os caminhos? Não fosse Al Rashid ter acabado por fenecer na queda e lhe daria igual trato ao do Leonês! Espero que não me causem mais atrasos ou embaraços desta natureza! Avancemos em direcção ao rio mais para oriente! O mosteiro de Ferreira ficará para mais tarde. Estamos necessitados de remanso.
Fosse Nosso Senhor ou apenas a altura escondida da fraga, o certo é que, por Ferreira, as almas ficaram serenas por via destas quedas não planeadas.
Por esta altura, Castro deixou de olhar para a menina que lhe acenava lá longe na segurança da mão da mãe. Correu como um louco em direcção a Tó, saltou-lhe para o colo onde bem se anichou. Sentiu nessa altura um frio cortante correr-lhe pelas costas até a ponta do seu rabo.
- Então Castro? Parece que viste um fantasma! E que tal irmos até casa darmos calma a este dia?
O bicho permaneceu imóvel mais uns segundos, ou minutos, nem sabe. Depois ergueu o pescoço suavemente. Saltou dos joelhos de Júlio até ao passeio e aí aguardou que este se levantasse e caminhasse em direcção ao prédio onde mora. Pensou por instantes que ia ser muito bom o passeio que Tó lhe havia proposto fazer até ao Norte. Mudar de ares. Este fim de tarde acabou por ser estranhamente arrepiante.
E tinha começado tão bem!
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