terça-feira, 20 de maio de 2008

Veneno de Alá


27.

O grupo que trazia a morte no seu peito, como se do coração se tratasse, encontrava-se seguro das suas intenções, embrenhado nos pensamentos que só almas desviadas e desprovidas de humanos sentimentos podem gerar. Sabiano Raimundo descansava mas num atento repouso, pois figura como a sua não se podia dar a grandes ócios. Seria um desacerto mortal. Nutria pelos restantes elementos do grupo uma quase indiferente sensação de asco. Eram como insectos negros rastejantes que esmaga de maneira mecânica debaixo dos pés. As únicas sensações de deleite que ainda é capaz de sentir provêm dos gritos torturados das suas vítimas, do sangue quente que sente quando lhes crava a adaga ao pescoço, das mães já viúvas que escorregam nas suas vestes lágrimas de desmedido sofrimento, suplicando-lhe pela vida dos seus filhos. Tem prazer nas sádicas e miseráveis sevícias que pela sua voz de comando os desgraçados que o seguem aplicam com insana e bárbara regularidade. Não se lembra de sonhar sonhos de gente. Todas as imagens são carregadas de negros tons, sonoridades intensas, cheiros a morte e a carnes consumidas pelas chamas. Corpos incompletos como se outra realidade pura e simplesmente não existisse.
Pensa tantas e tantas vezes através das vozes que lhe berram no interior das ideias. Nunca as conseguiu desligar. Nunca o disse a ninguém, pois de tolo nada tinha e era segredo que desejava em si arrecadado e cativo. Lembra-se como se fosse uma cicatriz cravada na sua memória, do cheiro intenso da podridão dos cadáveres. Tem mesmo a certeza que é essa a primeira de todas as suas lembranças. Disseram-lhe, quando foi gente pequena, que tinha sido descoberto no meio dos corpos dos mortos numa batalha e que era ele a única vida que por entre tamanha carnificina rastejava à procura de água para beber. E que tinha sido salvo pelos viajantes nómadas que daquele perdido oásis no meio do nada consigo o resgataram como lembrança dos deuses das areias.
As vozes continuam a sua faina no interior de Sabiano Raimundo. Os escravos, pois assim os entende, que o acompanham nesta busca insensata e desprovida de qualquer humano sentido ou razão, são mandados por si levantar. - Vamos! De pé! Chega de descanso inútil. Sinto falta de acção! Neste final de tarde continuaremos caminho pela orla daquela floresta. Experimento estranhas indicações de que devemos rapidamente dar trabalho aos cavalos e avançar pela segurança das copas das árvores. Vocês os dois, Berálio e Raschid, ide avante e seguindo os nossos secretos procedimentos, abram caminhos por entre os troncos em direcção ao centro desta terra. Farto já estou desta imensidão azul! Dali nenhuma vida humana pode ser acabada, pelo menos, segundo aqueles que me vão cravando as vozes na alma como veneno de Alá.
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