domingo, 11 de maio de 2008

Na borla das boleias


14.


A ponte estava como o Cristo Rei, de braços abertos como que à espera de abraçar este passeio. Castro estava a dar ar à língua. Ia olhando lá para baixo e pensava que ser pássaro também tem as suas virtudes.
- Olha que sou capaz de encontrar algum trânsito ali à saída para a Caparica. O pessoal mal sente um dia assim como o de hoje e faz logo saltar a toalha de praia dos armários. Mas nós seguimos em frente. Havia rapazes e raparigas que se punham à boleia logo depois das portagens e que mostravam cartazes com nomes de muitos locais. Algarve e Albufeira tinham mais adeptos. O pessoal mais novo gosta de poupar os seus trocos para outras iguarias acabando por arriscar na borla das boleias.
A dimensão do risco era diferente quando Castro era gente. Era quase a idade da pedra destes pedidos. Os peregrinos arriscavam pedir auxílio e protecção a alguns cavaleiros para que os riscos de serem assaltados acabassem por ser afastados ou reduzidos. Famílias desesperadas eram também pedintes de tréguas aos possíveis assaltos dos caminheiros de Santiago. Por mais vezes do que se desejaria a vida destas almas acabava invariavelmente por conhecer outro destino que não o do norte desejado. Perdia-se o norte e tantas vezes a própria vida nestes pedidos de auxílio. Consta que uns monges que seguiam para Rates foram pedir auxílio a uns cavaleiros para os orientar até ao Mosteiro. De bom grado lhes pagariam em orações e bênçãos divinas tamanho feito cristão. Consta que as suas vestes foram encontradas atadas aos restos carbonizados de corpos desfigurados. O negrume da carne consumida pelas chamas infernais, que aos monges atiçou o criminoso bando de Sabiano Raimundo, marcava mais uma assinatura da sua cruel forma de existência. Diz quem encontrou esses corpos assim atados que lhes tinham seguramente cortado os membros antes de lhes fazer chegar o fogo. Os pés e mãos estavam pendurados num castanheiro a alguns metros dali. Apenas faltava em número a mão de um dos corpos encontrados naquela dantesca pintura. Era a mão de Frei Gil. A míngua no país era já tanta no ano 1202 da era de Cristo, tantas mortes pela tortura da fome, tanta miséria, e agora ainda esta infame escumalha infra humana a folgar com o terror dos feitos cruéis que atrás de si semeia.
Castro tirou a cabeça da janela, olhou para Tó assustado e deu-lhe uma carinhosa lambidela de amigo.
- Tas parvo ó quê? Nem penses que os teus beijos me convencem a dar boleia a alguma dessas beldades de dedo esticado. Sabe-se lá que gente é essa? Sabe-se lá ó Castro!
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